ARTIGO ARTICLE

 

Fatores sócio-econômicos relacionados ao risco nutricional e sua associação com a freqüência de defeitos do esmalte em crianças da cidade de João Pessoa, Paraíba, Brasil

 

Socioeconomic factors, nutritional risk, and enamel defects in children from João Pessoa, Paraíba State, Brazil

 

 

Andreza Cristina de Lima Targino MassoniI; Andressa Feitosa Bezerra de OliveiraII; Ana Maria Barros ChavesII; Fábio Correia SampaioI; Aronita RosenblattIII

IDepartamento de Clínica e Odontologia Social, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil
IIDepartamento de Morfologia, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil
IIIDepartamento de Odontologia Preventiva e Social, Faculdade de Odontologia de Pernambuco, Camaragibe, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi verificar fatores associados ao risco nutricional ao longo do primeiro ano de vida em crianças de baixo nível sócio-econômico de João Pessoa, Paraíba, Região Nordeste do Brasil. E determinar a freqüência de defeitos do esmalte, associando-a ao risco nutricional. O estudo foi realizado com 117 crianças, 56 com risco nutricional e 61 eutróficas. Em domicílio, realizaram-se avaliação nutricional, exame clínico dos elementos dentais e entrevistas com as mães. Na maternidade, registraram-se informações dos períodos gestacional e de nascimento. Utilizaram-se os testes qui-quadrado, exato de Fisher e modelos de regressão logística. Os defeitos do esmalte estiveram associados ao risco nutricional após o primeiro ano de vida. O risco nutricional esteve associado à renda per capita, condições de peso ao nascimento e índice de crescimento intra-uterino. Conclui-se que na amostra investigada os defeitos do esmalte estiveram associados ao risco nutricional e este às condições sócio-econômicas desfavoráveis durante a gestação e o nascimento, sugerindo que estes são fatores relevantes na programação nutricional do indivíduo e na formação do esmalte dentário.

Transtornos da Nutrição Infantil; Fatores Sócio-Econômicos; Esmalte Dentário


ABSTRACT

This study focused on factors related to nutritional risk in children over one year of age from low-income families in João Pessoa, Paraíba State, Northeast Brazil, and the frequency of related enamel defects. The study included 117 children, 56 at nutritional risk and 61 with normal growth. Nutritional evaluation, clinical dental examination, and interviews with mothers were conducted at the homes. Gestational and birth records were examined in the maternity hospital. Data were analyzed using the chi-square, Fisher's exact tests, and logistic regression. Enamel defects were associated with nutritional risk after the first year of life. Nutritional risk was associated with per capita family income, birth weight, and intrauterine growth index. These are relevant factors for individual nutritional planning and formation of dental enamel.

Child Nutrition Disorders; Socioeconomic Factors; Dental Enamel


 

 

Introdução

Quando se considera o desenvolvimento do concepto, ressalta-se a importância do crescimento intra-uterino como forma de refletir características populacionais, ligadas às questões nutricionais e de condições de vida, associadas a fatores genéticos 1. O indicador que melhor retrata o que ocorre durante a fase fetal é o peso ao nascimento 2, pois reflete as condições nutricionais do recém-nascido e da mãe durante a gestação, repercutindo no desenvolvimento da criança, e em longo prazo, nas condições de saúde do adulto 3.

Crianças, nascidas com o peso inferior a 2.500g, são caracterizadas como de baixo peso e formam um grupo heterogêneo, pois encontram etiologia em duas condições adversas: prematuridade e/ou crescimento intra-uterino restrito 2,4. Em países desenvolvidos, o baixo peso ao nascer decorre principalmente da prematuridade; enquanto que, nos países em desenvolvimento, como o Brasil, do crescimento intra-uterino restrito 5.

O primeiro ano de vida corresponde a uma época de maior vulnerabilidade a agravos nutricionais, infecciosos e ambientais, portanto, o monitoramento do crescimento infantil, em países em desenvolvimento, durante este período torna-se relevante 4. No Brasil, cerca de 10% das crianças abaixo de cinco anos, bem como aquelas que ao nascimento apresentam crescimento inadequado, 30% apresentam crescimento intra-uterino restrito 6.

O período que segue o nascimento destaca-se por ser determinante nas demais fases de desenvolvimento do indivíduo. Aspectos como a desnutrição durante a infância estão relacionados principalmente ao consumo alimentar inadequado e às infecções de repetição, condições freqüentemente relacionadas com o padrão de vida da população 2,7.

Condições sócio-econômicas desfavoráveis e todas as suas repercussões são refletidas não apenas no baixo peso ao nascimento ou no risco nutricional, mas também no desenvolvimento de estruturas do organismo, como os elementos dentais. Em uma observação mais específica, o esmalte dentário, pela sua impossibilidade de reabsorção e remodelação 8, torna-se bastante vulnerável a alterações estruturais durante a sua formação, que passam a representar marcas permanentes, definidas como defeitos do esmalte 9.

Os defeitos do esmalte decorrem de distúrbios que acontecem durante o período gestacional e da infância, entre os quais a desnutrição pré-natal e infantil 10,11. Os mesmos consistem em sítios que podem predispor ao surgimento de cárie precoce de infância diante de uma dieta cariogênica e de baixos níveis de flúor 12.

Entre as conseqüências da cárie precoce de infância, o comprometimento da qualidade de vida é notório – quadros de insônia, dificuldades durante a alimentação e comportamento negativo são verificados e podem estar associados à ocorrência de dor 13,14. Os primeiros autores 13 ainda acrescentaram que crianças entre três e cinco anos de idade com cárie precoce na infância apresentam comprometimento no crescimento corpóreo, tanto em estatura quanto em peso, quando comparadas a crianças da mesma faixa etária, livres de cárie, situação possivelmente associada à sintomatologia dolorosa durante a alimentação.

Como visto, as conseqüências do comprometimento nutricional durante a infância, bem como das alterações no esmalte dentário constituem um problema significativo, pois representam principalmente um risco potencial à saúde da criança a longo prazo. O reconhecimento da complexidade da etiologia desses fatores, além da associação entre eles, permitirá desenvolver intervenções baseadas na promoção de saúde.

Dessa forma, este estudo se propõe a verificar o risco nutricional após o primeiro ano de vida (16 a 18 meses) em crianças de baixo nível sócio-econômico do Município de João Pessoa, Paraíba, Brasil, além de determinar a freqüência de defeitos do esmalte na população estudada, associando-os ao risco nutricional.

 

Material e métodos

Foi realizado um estudo observacional e prospectivo, com crianças nascidas na Maternidade Cândida Vargas, localizada no Município de João Pessoa, Estado da Paraíba, Nordeste do Brasil, conveniada com o Sistema Único de Saúde (SUS). Uma instituição reconhecida como "Hospital Amigo da Criança" pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), e referência no estado por assistir gestantes provenientes dos setores mais carentes da população.

A população do estudo foi constituída por 117 crianças de ambos os gêneros entre 16 e 18 meses de idade, nascidas entre os meses de julho e dezembro de 2003, residentes no Município de João Pessoa, onde não há sistema de fluoretação nas águas de abastecimento. Os critérios de inclusão foram: autorização dos pais para participar do estudo, após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; residência permanente da família no Município de João Pessoa; e a presença de todos os incisivos centrais decíduos. Entre os critérios de exclusão consideramos: crianças com lesão cariosa cavitada ou restaurações nos incisivos decíduos ao exame, e presença de alterações lábio-palatais.

O tamanho amostral considerou o número de recém-nascidos da Maternidade Cândida Vargas com crescimento intra-uterino restrito, ou seja, pequenos para a idade gestacional, residentes no Município de João Pessoa. Foram registrados 3.664 nascimentos naquela instituição, nos meses de referência para o estudo. Ao se aplicar os critérios de elegibilidade, verificou-se um total de 1.558 crianças nascidas de mães residentes em João Pessoa. Destas, 42 foram classificadas como pequenas para a idade gestacional, sendo codificadas como expostas. Em relação ao grupo de não-expostos, foi considerada uma proporção de 1 exposto para 2 não-expostos, sorteados de maneira proporcional, perfazendo um total de 126 crianças. Porém, nove do grupo dos expostos não foram encontradas, o que levou ao exame de 117 crianças.

As informações sobre o nascimento foram obtidas no prontuário do recém-nascido em ambiente hospitalar. O número de semanas e o peso ao nascimento foram determinados pelo obstetra na sala de parto. Para a determinação das condições de peso e do índice de crescimento intra-uterino consideraram-se os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS) 15 e de Williams et al. 16, respectivamente. Foram classificados como recém-nascidos de baixo peso aqueles nascidos com menos de 2.500g; recém-nascidos de muito baixo peso os que ao nascimento pesavam menos de 1.500g (até 1.499g, inclusive) 15. Os bebês nascidos com peso igual ou superior a 2.500g foram considerados como de peso normal.

Para avaliar o estado nutricional do recém-nascido foi utilizada a relação peso ao nascer e idade gestacional, sendo os bebês classificados em: pequenos para a idade gestacional, quando abaixo do percentil 10; adequados para a idade gestacional, quando entre os percentis 10 a 90; e grandes para a idade gestacional quando acima do percentil 90 16.

Com relação à categorização da condição sócio-econômica familiar, considerou-se o padrão das variáveis definido pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que é realizada anualmente e retrata a situação sócio-econômica da população brasileira 17, e pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento 18.

Entre as variáveis definidas pela PNAD, utilizou-se: família (conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, que residissem na mesma unidade domiciliar); pessoa alfabetizada (aquela capaz de ler e escrever pelo menos um bilhete simples no idioma que conhecesse); série de estudo ou anos de estudo (série e o nível escolar – fundamental, médio ou superior – freqüentado, considerando a última série concluída com aprovação); rendimento mensal familiar per capita (rendimento mensal familiar dividido pelo número de componentes da família). Para a apuração dos rendimentos, considerou-se o valor do salário mínimo que vigorava nos meses de referência da pesquisa – R$ 260,00. A partir desse último indicador, as famílias foram classificadas como na linha de indigência (renda domiciliar per capita inferior a 1/4 do salário mínimo) ou na linha de pobreza (renda domiciliar per capita inferior a 1/2 do salário mínimo) 18.

Acerca da coleta de dados domiciliar, quando as crianças estavam entre 16 e 18 meses, esta foi constituída por entrevista com as mães (para obter informações referentes à prática de aleitamento materno, à morbidade por infecções e às práticas de higiene bucal), exame clínico dental e avaliação nutricional infantil.

Para a realização do exame clínico foi utilizado espelho bucal, sonda periodontal, gaze, luvas, gorro e máscaras descartáveis. Cada criança foi examinada sob luz natural e refletida, sendo adotada a técnica joelho a joelho, e os dentes foram limpos com gaze 15. O dente foi considerado como presente quando qualquer parte da sua coroa clínica estivesse exposta na cavidade bucal.

Na ausência de alterações superficiais visíveis, para se evitar a subestimação de defeitos, caso presente na metade gengival, considerou-se o dente como não irrompido. Quando da existência de dúvida em relação à presença do defeito, considerou-se o dente como normal.

Para o diagnóstico dos defeitos do esmalte foram utilizados códigos, segundo os critérios do Índice Modificado para o Desenvolvimento dos Defeitos do Esmalte (Modified DDE Index) 19.

Após o exame, as mães foram orientadas quanto aos cuidados com a saúde bucal dos filhos e prática de amamentação. Em dependência das condições de higiene bucal e do risco de desenvolver cárie da criança, aplicou-se fluoreto de sódio a 0,05%, nos elementos dentais.

Para o estabelecimento do grau de concordância intra-examinador em relação aos defeitos do esmalte utilizou-se o coeficiente kappa, por meio do reexame de 10% das crianças, no intervalo de uma semana, após a realização do último exame (kappa = 0,86).

As medidas antropométricas empregadas na avaliação do estado nutricional, neste estudo, foram: peso e estatura. Porém, ressalta-se que esses índices antropométricos fornecem uma indicação de risco nutricional, e não necessariamente da desnutrição, visto que esta é decorrente de um processo patológico basal, impossível de ser confirmado apenas por aferição antropométrica 20.

Para a aferição do peso utilizou-se balança do tipo pêndulo, previamente calibrada, com capacidade máxima de 25kg e precisão de 250g. A balança foi aferida semanalmente, utilizando-se peso de 20kg, nivelando-a diariamente. A criança foi pesada com mínima indumentária e não foram levadas em consideração a ingestão de alimentos e a eliminação de excretas. Para obtenção da estatura utilizou-se régua antropométrica de 100cm, com escala de divisão em milímetros, apoiada em superfície plana.

O estado nutricional foi determinado comparando-se as medidas antropométricas ao padrão de referência do National Center for Health Statistics (NCHS) 21. Neste estudo, o diagnóstico do estado nutricional teve como base os indicadores de estatura/idade (E/I; crescimento linear) e peso/estatura (P/E; harmonia corporal) 7, e as crianças foram classificadas em: (a) eutrófico – E/I superior a 95% e P/E superior a 90% do p50 do padrão de referência; (b) desnutrido atual ou agudo (wasting) – E/I superior a 95% e P/E inferior ou igual a 90% do p50 do padrão de referência; (c) desnutrido crônico (wasting and stunting) – E/I inferior ou igual a 95% e P/E inferior ou igual a 90% do p50 do padrão de referência; (d) desnutrido pregresso (stunting) – E/I inferior ou igual a 95% e P/E superior a 90% do p50 do padrão de referência.

Após análise antropométrica, realizada entre os 16 e 18 meses de idade, foram constituídos dois grupos, sendo um com crianças eutróficas (n = 61) e outro em risco nutricional (n = 56).

No primeiro plano de análise, as exposições, ou seja, as variáveis independentes analisadas foram: escolaridade materna, renda per capita da família, condições de peso ao nascimento, índice de crescimento intra-uterino, prática de aleitamento materno, infecções neonatal e infecções dos 2 aos 6 meses. O desfecho, ou seja, a variável dependente foi o estado nutricional após o primeiro ano de vida. No segundo plano de análise, essa variável passou a representar um fator de exposição (variável independente) para o estudo etiológico dos defeitos do esmalte (variável dependente).

A análise estatística foi realizada com o programa SPSS 14.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos). Valores do odds ratio (OR) e intervalos de confiança para estes parâmetros foram obtidos no estudo da associação entre as variáveis independentes com a variável dependente no estudo. Para avaliar o efeito isolado dos fatores de exposição sobre o desenvolvimento do evento (risco de desnutrição), foi realizada a análise multivariada com a técnica de regressão logística. No estudo bivariado, consideraram-se as variáveis que foram significantes com a variável dependente em nível de 20% (p < 0,20). O nível de confiança utilizado para a obtenção dos intervalos foi de 95% (IC95%) e a margem de erro (nível de significância) considerada nos testes estatísticos foi de 5%.

Este estudo foi submetido à apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde, da Universidade Federal da Paraíba.

 

Resultados

A Tabela 1 apresenta os dados utilizados para determinar o nível sócio-econômico das famílias às quais as crianças pertenciam – escolaridade e renda per capita. A maior parte das mães tinha cursado até o ensino fundamental (45,3%) e foram incluídas na linha da pobreza (42,7%).

 

 

Na Tabela 2 observam-se as variáveis que explicaram o risco nutricional entre 16 e 18 meses na análise bivariada, bem como o OR – medida de associação que determina quantas vezes as chances de um evento ocorrer é maior em uma e em outra situação, quando se faz a observação em determinado número de indivíduos; além do intervalo de confiança, que determina o grau de incerteza sobre o real valor da estimativa que fazemos ao realizarmos um estudo utilizando uma fração da população. Estiveram associados de forma significativa ao risco nutricional, o peso ao nascimento, o índice de crescimento intra-uterino e a amamentação natural.

Quanto à avaliação odontológica, 876 dentes foram examinados, entre incisivos centrais e laterais decíduos, enquanto 60 elementos não haviam irrompido, ou seja, 6,4% do total de dentes possíveis de serem examinados, correspondendo, exclusivamente, aos incisivos laterais. A Tabela 3 retrata a freqüência de defeitos do esmalte na população estudada, associando a sua ocorrência ao risco nutricional entre 16 e 18 meses de vida, demonstrando uma associação significativa em nível de 5%.

O modelo de regressão logística utilizado para determinar o efeito de cada variável sobre o risco nutricional entre 16 e 18 meses de idade pode ser observado na Tabela 4.

 

Discussão

A população deste estudo caracterizou-se, de acordo com a renda per capita e a escolaridade materna, como de baixo nível sócio-econômico, no qual a maioria das mães possuía apenas o ensino fundamental e pertencia a famílias incluídas na linha de pobreza e na linha de indigência. Um aspecto relevante, pois condições sócio-econômicas inadequadas predispõem à deficiência nutricional 22,23, decorrente do difícil acesso aos serviços de saúde, que contribuem para o estabelecimento do desequilíbrio nutricional; bem como da alimentação de má qualidade, que afeta o desenvolvimento e maturação dos tecidos orgânicos, inclusive do esmalte dentário 10,24.

O crescimento físico, indicador de estado nutricional, pode ser influenciado durante a infância por uma série de fatores pré ou pós-natais 20,25. Neste estudo, 47,9% das crianças apresentaram algum desequilíbrio nutricional, entre as quais 36,8% mostraram déficit de estatura (desnutridos crônicos e pregressos), o que indica retardo do crescimento ósseo, detectado apenas após longas exposições a condições nutricionais desfavoráveis.

A desnutrição pré-natal ou infantil foi associada por muitos autores ao baixo nível sócio-econômico 22,23,26. Observou-se que a renda per capita não apresentou associação ao risco nutricional de forma significativa, todavia a maior freqüência de crianças com eventos de desnutrição ocorreu entre aquelas nascidas de mães incluídas abaixo da linha de indigência/pobreza (52,2%). Andrade & Szwarcwald 22 e Andrade et al. 23, verificaram que a renda foi o indicador que captou mais intensamente as desigualdades do baixo peso, sendo este, um reflexo da precária ingestão de nutrientes e, conseqüente desnutrição.

Em relação à escolaridade materna, foi observado um elevado percentual de eventos de desnutrição (51,3%) entre aquelas crianças filhas de mães que freqüentaram até o ensino fundamental, porém não de forma significativa. Essa situação está diretamente relacionada às desigualdades sociais e merece destaque, pois causa importante impacto na qualidade de vida, já que é um dos determinantes da renda familiar e influencia diretamente no seu consumo; além de atuar no conhecimento de cuidados preventivos (alimentação e higiene) e curativos (manejo doméstico das doenças e busca precoce de atendimento) 25. Tal achado é corroborado pelos estudos de Almeida & Mello-Jorge 26 e Andrade et al. 23, nos quais o nível de escolaridade inferior ao ensino fundamental completo foi um fator de risco para o baixo peso.

Baixo peso ao nascimento e crescimento intra-uterino restrito representam indicadores de desnutrição fetal 20 e foram considerados por Motta et al. 27 como colaboradores para o risco nutricional ao final do primeiro ano de vida. Os achados desta pesquisa demonstram forte associação entre o risco nutricional após o primeiro ano de vida e as condições de peso ao nascimento (p < 0,001) – 65% para as crianças desnutridas. Esses dados confirmam os achados de Victora et al. 3, Olinto et al. 25, Lima et al. 28 e Motta et al. 27, que observaram que a maioria das crianças com baixo peso apresentou risco nutricional ao longo do primeiro ano de vida. Segundo o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, do Ministério da Saúde 6, toda criança com história de baixo peso ao nascer deve ser considerada como criança de risco nutricional e acompanhada com maior atenção, principalmente no primeiro ano de vida.

O índice de crescimento intra-uterino é um parâmetro fidedigno para se mensurar a desnutrição durante o desenvolvimento fetal, pois o baixo peso ao nascer pode estar associado não apenas a déficits nutricionais, mas também ao número de semanas ao nascimento, podendo a criança de baixo peso apresentar um quadro nutricional em conformidade com a sua idade gestacional. Neste estudo, apesar do grande número de recém-nascidos com baixo peso (n = 60), o número de crianças nascidas pequenas para a idade gestacional (n = 34) foi bem menor que o número de crianças nascidas adequadas para a idade gestacional (n = 83). Assim, a associação significativa (p < 0,001) entre aquelas crianças nascidas pequenas para a idade gestacional e o risco nutricional entre 16 e 18 meses de vida (79,4%), ratifica a ligação deste último evento com o baixo peso ao nascimento.

Além dos fatores pré-natais, variáveis pós-natais também podem influenciar os vários padrões de crescimento físico durante a infância 25. Uma maior freqüência de crianças com comprometimento nutricional após o primeiro ano de vida foi verificada entre aquelas cuja ausência de amamentação natural foi relatada pelas mães (p = 0,025). Afirma-se que a hipocalcemia neonatal é um fator que pode ser intensificado com a falta do leite materno durante os primeiros seis meses de vida e esta ausência compromete, por longo período, o desenvolvimento corporal do indivíduo 29.

Em relação aos episódios infecciosos neonatais e pós-natais, não foi possível verificar relação significativa destes com o risco nutricional, porém este achado pode estar associado à baixa freqüência de quadros de infecção relatados pelas mães, representando desta forma, uma limitação do estudo, pelo viés de informação. Sendo relevante ressaltar que não apenas a ingestão inadequada de nutrientes, mas também as doenças infecciosas, contribuem para a instalação dos déficits nutricionais, devido à possibilidade de estas exporem a criança a repetidos eventos patológicos, capazes de levar à perda de peso e à morbidade de conseqüências significativas, dentro de um ciclo de repetição 28.

Deficiências nutricionais são capazes de repercutir no desenvolvimento de estruturas do organismo, entre as quais, os elementos dentais – tanto em seu processo de formação, quanto na sua cronologia de erupção 8. Conforme foi verificado, 6,4% dos incisivos decíduos possíveis de serem avaliados não haviam irrompido, situação justificada pelos desequilíbrios nutricionais observados, e corroborada por estudos anteriores 10,30.

As deficiências nutricionais foram associadas ao aparecimento de defeitos do esmalte por muitos estudos 24,31,32,33. No presente trabalho, o fator nutricional também exerceu uma forte influência no desenvolvimento de alterações no esmalte (p = 0,0006), o que pode estar ligado ao comprometimento dos ameloblastos, nos casos de desnutrição generalizada, pela deficiência de elementos minerais que estão diretamente associados com a sua função. Assim, essas células são extremamente sensíveis às flutuações dos níveis de cálcio, ocorridas quando do desequilíbrio nutricional, e que podem diminuir ou interromper o processo de mineralização dos tecidos dentários 32.

Em geral, as variáveis observadas na análise bivariada costumam ocorrer simultaneamente, podendo resultar em confundimento quanto ao entendimento do risco nutricional. Etiologicamente, não é possível separar todas as variáveis, visto que elas podem interagir ou ocorrer simultaneamente. A deficiência nutricional, portanto, pode resultar mais de alterações que atuam de maneira cumulativa do que de fatores isolados ou de natureza específica. Assim, após a análise multivariada a renda per capita (OR = 2,33), as condições de peso ao nascimento (OR = 2,09) e o índice de crescimento intra-uterino (OR = 4,59) foram selecionados para explicar a ocorrência de risco nutricional entre 16 e 18 meses.

Entre as variáveis selecionadas pelo modelo, a renda per capita e as condições de peso ao nascimento corroboram o estudo de Motta et al. 27 no qual, além do peso ao nascer, também a ausência de sanitário no domicílio, indicador de baixo nível sócio-econômico, se associou significativamente à deficiência nutricional. Gianini et al. 34 ratificaram a associação entre o crescimento intra-uterino restrito e o risco nutricional constatada neste estudo, quando verificaram que as crianças nascidas pequenas para a idade gestacional apresentaram um risco 12 vezes maior de desnutrição ao termo. Nessa temática, percebe-se que as condições de vida às quais os indivíduos estão expostos desde o início do seu desenvolvimento são expressas biologicamente mesmo após certo período de tempo, tendo então, uma importante função sobre o menor crescimento físico das crianças, que se estende por anos.

A associação entre risco nutricional e certos aspectos que determinam as condições de vida do indivíduo, desde a sua gestação, e deste com a ocorrência de defeitos do esmalte, enfatiza a necessidade de programas de promoção em saúde que visem a uma melhor qualidade de vida para a população. Tal achado reflete as condições sócio-econômicas subjacentes, às quais essas famílias estão expostas, podendo essas alterações ser consideradas expressões biológicas de fatores macrossociais, como dificuldades financeira e cultural, dificuldade no acesso aos serviços de saúde e ao saneamento básico.

 

Colaboradores

A. C. L. T Massoni, A. F. B. Oliveira, A. M. B. Chaves trabalharam na coleta dos dados, na pesquisa bibliográfica e na redação do artigo. F. C. Sampaio e A. Rosenblatt participaram da redação, revisão do texto e orientação da pesquisa.

 

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Correspondência:
A. C. L. T. Massoni
Departamento de Clínica e Odontologia Social
Universidade Federal da Paraíba
Av. Beira Mar 520, apto. 61
Jaboatão dos Guararapes, PE 54410-100, Brasil
andrezatargino@gmail.com

Recebido em 06/Set/2006
Versão final reapresentada em 16/Abr/2007
Aprovado em 19/Abr/2007

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br