DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Rigotto & Augusto

 

Debate on the paper by Rigotto & Augusto

 

 

Paulo Cesar Peiter

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. ppeiter@fiocruz.br

 

 

Território e sustentabilidade nas encruzilhadas do poder

O artigo de Raquel Maria Rigotto & Lia Giraldo da Silva Augusto é altamente oportuno porque procura trazer as grandes discussões sobre a crise ambiental, a crise social e o debate sobre a noção de sustentabilidade para o âmbito da saúde no Brasil.

A crise ambiental é um tema que emergiu de forma mais contundente na agenda internacional a partir da década de 1970, e com ele o conceito de desenvolvimento sustentável como "solução" ou nova "utopia" a ser perseguida.

Apesar da ampla aceitação e popularização desse conceito, sua grande imprecisão acabou por gerar uma série de definições muitas vezes contraditórias, servindo a um amplo espectro de atores com interesses e projetos de desenvolvimento altamente discordantes entre si.

O discurso da sustentabilidade, por ter suas raízes fortemente cravadas na ecologia, traz consigo um viés naturalizante da sociedade e coloca a crise social a reboque da crise ambiental 1.

O desenvolvimento é um fenômeno social e não natural, a tentativa de atrelá-lo aos processos naturais é no mínimo problemática, pois as relações sociedade/natureza são mediadas pela técnica e pelo mercado que são fenômenos sociais.

Outro problema é que o conceito de desenvolvimento sustentável enunciado pelas grandes conferências mundiais é um marco geral que tenta colocar todos os atores mundiais de acordo, mas não deixa de ser mais um vetor de transformação exógeno que carrega interesses externos que ganham estatuto de "universais", encobrindo interesses de governos e grupos econômicos internacionais poderosos. Há, portanto, uma contradição entre a suposta universalidade do conceito e a necessidade de adaptação do modelo de desenvolvimento sustentável a cada circunstância local.

São muitas as dificuldades para conseguir uma mudança de padrão de exploração dos recursos naturais na escala mundial, seja ela por parte das grandes corporações ou dos pequenos produtores, pois ainda não existem alternativas suficientemente poderosas e capazes de mudar o eixo do modelo de desenvolvimento.

As mudanças não são tão simples como o conceito quase "mágico" de desenvolvimento sustentável pode levar a crer, pois como coloca Brü 1, as relações de poder estão consolidadas, as pessoas corrompidas e os agentes não reorientam sua ação ao menos que não tenham perdas com isso, ou saibam bem para onde vão as coisas com a nova proposta. Prova disso é a escalada crescente de destruição ambiental das últimas duas décadas, apesar da popularidade da idéia do desenvolvimento sustentável.

As alternativas eminentemente locais (autóctones) não podem ser pensadas de forma isolada dos grandes processos econômicos mundiais, sob o risco de tornarem-se enclaves de experiências bem sucedidas, mas sem capacidade de generalização 1.

A "aposta" no território como um operador útil para a análise da expressão da ligação entre saúde, ambiente e desenvolvimento, vai na direção da mais promissora linha do pensamento geográfico contemporâneo. Segundo essa linha, o território é fruto da dimensão política de uma intencionalidade de atores, que atuando no espaço e através do espaço, procuram realizar e impor seus projetos políticos (e econômicos), suas intenções, utilizando-se do poder sobre uma determinada área 2. O território transforma-se, assim, numa "arena de conflitos" 3, uma arena da oposição entre o mercado e a sociedade (valor de troca e valor de uso) 4.

No território incidem intencionalidades dos atores locais, mas também, de atores extralocais, muitas vezes situados a milhares de quilômetros de distância, em outras palavras, é resultante de vetores locais e globais e por isso pode ser considerado uma síntese (temporária) dos processos locais e globais.

Poder, intenção, controle, apropriação e identidade são os fundamentos da territorialização e, portanto, da formação de territórios 2,5,6.

Considerando a definição de territorialidade de Sack 6, segundo a qual é uma estratégia espacial para afetar, influenciar ou controlar recursos e pessoas, pelo controle de uma área, podemos verificar a pertinência do conceito de território para se entender os processos que relacionam a saúde e o ambiente num determinado lugar.

No artigo em foco o ordenamento territorial é considerado a chave para a utilização sustentável dos recursos naturais nos territórios. Entretanto, são grandes as assimetrias de poder dos agentes atuantes nos territórios, o que torna mais difícil a tarefa. No mundo globalizado as grandes corporações transnacionais são agentes tão poderosos, ou mais, que os Estados Nacionais. Elas têm capacidade de atuar globalmente, no que Castells 7 chamou de "espaço dos fluxos", que caracteriza o mundo contemporâneo. A importância dos espaços dos fluxos e o seu crescente poder modelador sobre os "espaços dos lugares" é um elemento que não se pode desprezar.

Com a perda de parte do poder dos Estados Nacionais na globalização é preciso relativizar o seu papel e poder efetivo sobre o ordenamento territorial. Sua ação está cada vez mais limitada, a uma reação, a posteriori, aos usos do território implementados pelos diversos agentes sociais (locais e extralocais). Sem deixar de considerar a importância do Estado no ordenamento territorial, é preciso estar atento para a crise de governabilidade, que incide fortemente sobre a gestão estatal no mundo contemporâneo, principalmente nos países menos desenvolvidos com sistemas políticos mais frágeis, o que traz problemas para a sua ação como mediador do desenvolvimento sustentável.

A gestão do território também se dá em diferentes escalas e os atores sociais distinguem-se em termos de poder e capacidade de gestão, pois a globalização acirra a competitividade espacial e aumenta as diferenças de poder entre agentes e territórios sobre os processos gerais da economia.

A idéia de sustentabilidade originária da ecologia encara a relação entre populações e território em analogia com o mundo animal, onde o nexo é dado pela idéia de "capacidade de carga" do meio. Decorrem daí as idéias de superpopulação e de pressão populacional sobre os recursos naturais, tão caras às antigas teorias malthusianas. Uma noção de território bem distinta daquela da geografia política. Entretanto, o esgotamento dos recursos naturais do planeta é decorrente mais da atuação das corporações transnacionais e a forma como estas gerem e exploram estes recursos, que da pressão de populações empobrecidas dos países subdesenvolvidos. Essas corporações, além de serem as maiores responsáveis pela pressão sobre o ambiente, produzem os padrões de consumo mundiais (utilizando a mídia).

As populações que "superpovoam" o planeta pouca ingerência têm sobre o modelo de desenvolvimento ao qual são submetidas, frutos de negociações fechadas em que participam seletos grupos econômicos e governos dos países ricos.

As camadas da população mais pobres, compostas por trabalhadores pouco qualificados e excluídos pelo mercado de trabalho formal, além de serem mais vulneráveis aos danos ocasionados pela degradação ambiental, são impelidos pelo mercado à exploração dos recursos naturais, de forma predatória e prejudicial à sua própria existência. Esses grupos, para a sua sobrevivência, buscam atividades muitas vezes clandestinas, mal remuneradas e arriscadas. A crueldade e cinismo do processo é tal que os produtos dessas atividades "informais" muitas vezes são absorvidos por grandes empresas "legais", como é o caso da exploração ilegal de madeira na Amazônia.

Não existe dilema ético que se sustente quando a própria sobrevivência está em jogo. A ética do desenvolvimento sustentável depende das condições de sobrevivência e reprodução dos grupos sociais nos territórios onde vivem, e que não são determinadas exclusivamente nos lugares de forma autônoma. O que nos leva a perguntar: Como atuar coerentemente com os contextos territoriais particulares se as possibilidades de sobrevivência não são determinadas exclusivamente nos territórios?

A situação de iniqüidades observadas no território nacional e entre os diversos segmentos sociais do país, é em última instância resultante da lógica da globalização e da inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho (de forma subalterna e dependente), mediada pelo Estado Nacional e que toma feições concretas nos lugares onde são absorvidas e reprocessadas com maior ou menor resistência.

 

Concluindo

Quando se trata do conceito de desenvolvimento sustentável é preciso estar atento à tendência de "naturalização" da crise social e a sua perda de importância diante de uma agenda "ambiental" ditada em grande parte por interesses exógenos dos países desenvolvidos.

Não existem soluções únicas e generalizáveis, mas uma tensão permanente entre as escalas dos processos, ou como diria Santos 4, um processo dialético entre o local e o global.

É preciso continuar a buscar um outro desenvolvimento mais igualitário, socialmente justo e que permita às populações dos países em desenvolvimento alcançarem melhores condições de vida e bem-estar, e isto passa por uma alternativa de desenvolvimento endógeno e menos dependente.

 

 

1. Brü J. Medio ambiente: poder y espetáculo. Barcelona: Icaria Editorial; 1997.

2. Raffestin C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Editora Ática; 1993.

3. Cox KR. Redefining "territory". Political Geography Quarterly 1991; 10:5-7.

4. Santos M. A natureza do espaço. São Paulo: Editora Hucitec; 1997.

5. Soja E. Geografias pós-modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1993.

6. Sack R. Human territoriality. Cambridge: Cambridge University Press; 1986.

7. Castells M. A sociedade em rede. São Paulo: Editora Paz e Terra; 1999.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br