DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Rigotto & Augusto

 

Debate on the paper by Rigotto & Augusto

 

 

José Augusto Drummond

Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. jaldrummond@uol.com.br

 

 

Em primeiro lugar, trata-se de um texto "engajado", ideológico, que "aborda" problemas com o fim de analisar as "perspectivas da luta social". Defende que movimentos sociais incorporem a questão ambiental a críticas radicais a uma ordem marcada pela "iniqüidade". Ou seja, não há investigação de um objeto à luz de teoria, conceitos e dados, nem se trata de uma peça metodológica, conceitual ou teórica. De outro lado, é mais do que uma peça de opinião. Nada disso é um "pecado", mas o texto não se presta a uma crítica de cunho científico, que é o tipo de crítica que eu, como cientista não-engajado, sou equipado para fazer. Não me alonguei na argumentação ideológica, que não é a minha seara, mas fazer uma crítica puramente científica não teria muito sentido, nem muita substância.

Em segundo lugar, o texto não informa qual é o seu objetivo. Isso dificulta sobremodo a leitura. Em vários trechos, o leitor precisa adivinhar para onde vão o texto e a sua multiplicidade de temas e contextualizações. É apenas no nono parágrafo que as autoras dizem que "urge (…) aprofundar o debate" em torno do polêmico conceito de "desenvolvimento sustentável". Terá sido esse o objetivo do texto?

Se é esse o objetivo, então, em terceiro lugar, o que elas têm a dizer se limita praticamente a afirmar que o conceito visa à "conciliação de conflitos". Ora, o conceito é criticado há 20 anos e esta é a mais óbvia das críticas. Cunhado por uma equipe a serviço de um organismo internacional, seria de admirar se o conceito não propusesse a "conciliação de conflitos". Organismos desse tipo não existem para acirrar conflitos. A crítica ao conceito de desenvolvimento sustentável é, portanto, repetitiva, limitada e óbvia.

Em quarto lugar, passando agora a alguns pontos substantivos do texto, é duvidosa a afirmação de que "a realização histórica do capitalismo" industrial moderno representou uma revolução sem precedentes em termos ambientais. Ela foi revolucionária, sim, mas exageros não ajudam. Ela não é mais revolucionária do que a invenção e o espalhamento da agricultura e da pecuária, ocorridos há milhares de anos – a "revolução neolítica". A domesticação de plantas e animais, em diferentes partes do planeta, e a expansão milenar da agricultura e da pecuária – processo que Alvin Toffler 1 chama de a "primeira onda" – trouxeram profundas mudanças na relação das culturas humanas com o ambiente natural. Criaram distinções rígidas entre plantas/animais "úteis" e "inúteis/nocivos", encolheram os habitats de incontáveis plantas e animais, desgastaram grandes quantidades de solos, florestas e águas, provocaram conflitos entre povos em torno de solos agricultáveis e outros recursos, e permitiram enorme crescimento populacional.

No plano da organização das sociedades humanas, a revolução neolítica propiciou o surgimento de sociedades estratificadas, dotadas de estados/governantes e de religiões organizadas/cleros, de contabilidade e escrita, e com ampla divisão social de trabalho. Além do mais, a plataforma tecnológica e cultural da agropecuária deu aos povos que a adotaram uma superioridade material/tecnológica à qual nenhum povo "tradicional" extrator de recursos naturais resistiu.

A revolução do moderno capitalismo industrial – que Toffler 1 chama de "segunda onda" – ocorreu, não coincidentemente, apenas em alguns poucos lugares onde a agropecuária se implantara. Além disso, ela se espalhou apenas por alguns outros poucos lugares que também passaram pela "primeira onda". Assim, a "segunda onda", além de muito mais recente, se propagou pelo planeta muito menos que a primeira, e afetou territórios milenarmente desgastados, mesmo criando novos tipos de desgaste.

"Culpar" o moderno capitalismo industrial por todos os problemas ambientais contemporâneos é conveniente para o tom denuncista do texto, pois os seus protagonistas (países desenvolvidos) ainda estão aí, identificáveis, para serem vilanizados como artífices da globalizacão perversa. Ignorar milhares de anos de transformações profundas nas relações entre humanos e entre estes e os ambientes naturais, desencadeadas pela revolução neolítica, é um erro analítico. Além do mais, sumérios, hititas e outros povos antigos criadores/absorvedores da tecnologia e dos valores neolíticos não estão mais disponíveis para serem responsabilizados por problemas contemporâneos.

Em quinto lugar, afirmar que o "moderno sistema industrial capitalista depende de recursos naturais numa dimensão desconhecida a qualquer outro sistema na história da humanidade" é impreciso, no mínimo. É ignorar aquilo que o mesmo Toffler 1 chamou de a "terceira onda". Esse sistema de fato consome enormes volumes e variedades de recursos, o que é preocupante, mas ele também gerou vastos setores produtivos (ligados aos serviços e à informação) que consomem pouco os recursos naturais. E mais, nos últimos 150 anos, são esses setores "desconectados" dos recursos naturais que produzem uma proporção cada vez maior de riqueza e empregam uma proporção cada vez maior de pessoas (questão retomada à frente). Nas sociedades "tradicionais" coletadoras, não existem/existiam setores produtivos "desconectados" dos recursos naturais. Elas, sim, portanto, é que dependem/dependiam inteiramente dos recursos naturais, em todos os seus segmentos e dimensões, mesmo que o consumo seja/fosse baixo, pelos padrões modernos.

Em sexto lugar, o texto se baseia em uma noção duvidosa – embora não inteiramente explicitada. Ela aparece desde o resumo, que menciona o "paradoxo" da convivência das "potencialidades naturais" com a "pobreza" no Brasil. Ou seja, as autoras supõem que o acesso mais igualitário aos recursos naturais eliminará a pobreza e reverterá as injustiças sociais, ou ao menos melhorará substancialmente a sorte dos mais pobres. As próprias autoras, no entanto, fazem mais à frente uma afirmação que vai em sentido contrário. Afirmam que a "revolução técnico-científica" criou uma "nova forma de produção cujo material bruto é a informação". Essa segunda noção é muito mais realista que a primeira, mas nega a primeira.

Basta examinar as estatísticas da produção econômica de vários países – desenvolvidos, emergentes ou não-desenvolvidos – ao longo das 15 últimas décadas para ver como encolhe relativamente o valor da produção agropecuária-pesqueira-florestal-mineral (ou seja, os segmentos intensivos de recursos naturais) e como se expande relativamente o valor das indústrias e dos serviços (intensivos de informação). Isso é tão evidente que alguns economistas sustentam há trinta anos a hipótese da "maldição dos recursos naturais". Dessa perspectiva, quanto mais um país, uma região, uma empresa ou um grupo social depender de recursos naturais, menos próspero ele será do que os países, regiões, empresas e grupos sociais que produzem com base principal na indústria e na informação.

As autoras não lidam, portanto, com o fenômeno recorrente de que existem terras ricas em recursos, habitadas por povos que são pobres, ou ao menos mais pobres do que os industrializados e dotados de serviços amplos. Evidentemente, é mais justo, por exemplo, que os agricultores pobres tenham acesso a bons solos, mas, enquanto trabalharem apenas com agricultura, eles tenderão a ser mais pobres do que quem transforma industrialmente ou faz o marketing dos seus produtos.

Nesse ponto, o Brasil, em vez de ser tão marcadamente distinto quanto pensam as autoras (que consideram a sua biodiversidade uma "fantástica fonte natural" de riqueza), confirma a regra da convivência da riqueza natural com a pobreza social. Temos ainda no Brasil um aparelho produtivo com forte participação da extração e transformação primária de recursos naturais. Isso vale inclusive para alguns dos seus principais setores exportadores (fato mencionado pelas autoras), que na verdade exportam fertilidade dos solos, água, flora e fauna nativas, energia solar, hídrica e de outras fontes e minérios, ou seja, recursos naturais de valor agregado baixo, ou que não são valorados devidamente pelo mercado. A nossa economia não é baseada na informação.

A "fantástica" biodiversidade está nesse mesmo barco, pois o seu valor de troca é proporcional não à riqueza biológica incidentalmente situada no território que hoje é brasileiro, mas sim à capacidade científica e técnica instalada no país para transformá-la. Exportar genes e comprar sementes e organismos geneticamente modificados é um remake futurista de filmes antigos – como exportar ferro para importar aço, ou exportar borracha para importar pneus. Nenhum observador que seja a favor de qualquer tipo de desenvolvimento quer ver esses filmes de novo. Dessa forma, a realização da "fantástica" riqueza da biodiversidade depende de que o Brasil detenha e aplique "informação" de alta qualidade – na forma de quadros científicos e tecnológicos e de processos de pesquisa e de produção – para se materializar. É nisso que reside o principal potencial de desenvolvimento brasileiro baseado em recursos naturais, e não na "democratização" do acesso aos recursos naturais, mesmo que tal "democratização" seja desejável.

Em sétimo lugar, as autoras acertam ao caracterizar parte importante do aparelho produtivo brasileiro como gerador de "forte carga de impacto sobre o meio ambiente" e sobre a sociedade – indústrias químicas e petroquímicas, papel e celulose, siderurgia, veículos, têxteis etc. Elas não informam, porém, que outros tipos de atividades produtivas poderiam compor um quadro aceitável/desejável para termos no Brasil uma sociedade próspera, autônoma, competitiva. No entanto, mais grave é que elas exageram ao atribuir isso a um processo um tanto "conspiratório" ou unilateral pelo qual poderosos países desenvolvidos estariam "exportando riscos" para fragilizados ou equivocados países não-desenvolvidos.

Isso é errado, ou incompleto. Existem, há décadas, nos países receptores desses riscos, correntes políticas poderosas que compram avidamente os pacotes industriais "poluentes". Eles têm tido muito apoio popular, aliás, inclusive nas urnas. O nome que essas correntes e os seus apoiadores dão a esses pacotes é "desenvolvimento". A coalizão petista atualmente no poder é apenas a mais nova protagonista no Brasil dessa atitude favorável ao industrialismo capitalista – "mandem-nos as suas indústrias poluidoras e construiremos o espetáculo do crescimento".

Outros pontos mereceriam comentários, mas o meu espaço praticamente acabou. Vou apenas mencioná-los:

• A proposição obsoleta, inexeqüível e moralista de "limitar novos padrões de consumo";

• A sugestão de que a queda da fecundidade, o aumento da expectativa de vida e a queda do crescimento populacional no Brasil seriam mudanças indesejáveis ou preocupantes;

• A enigmática inserção de dados sobre desigualdades entre brancos e negros num texto sobre questões ambientais;

• A redução da complexa crise do recurso água na Amazônia a uma querela sobre a privatização do seu fornecimento em Manaus;

• O quadro de "galeria de horrores" desenhado sobre o Brasil, constante na seção O Contexto da Globalização no Brasil, apresentado como se não houvesse dezenas de dimensões da vida social brasileira que passaram por melhorias substanciais.

Enfim, o texto está mais afinado com (i) a defesa de uma certa modalidade de reforma social, radical, antiglobalizante e anticapitalista e (ii) com a divulgação de um diagnóstico catastrofista, e não com a análise acurada de questões sócio-ambientais. No seu gênero, ele é eficaz, pois deve provocar na maioria dos que o lêem indignação e perplexidade. Possivelmente, gera também uma indesejada paralisia perante um quadro tão completamente desastroso. O texto expressa muito pouco os resultados de uma investigação científica e muito mais um sentimento difuso de revolta, de "mal-estar com a globalização", de que "um outro mundo é possível".

 

 

1. Toffler A. A terceira onda. 26ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Record; 2001.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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