DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Rigotto & Augusto

 

Debate on the paper by Rigotto & Augusto

 

 

Eduardo Marandola Jr.

Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. eduardom@ige.unicamp.br

 

 

Novo olhar sobre o espaço: território e vulnerabilidade

O texto de Raquel Maria Rigotto & Lia Giraldo da Silva Augusto movimenta uma importante bibliografia em torno de uma temática fundamental para a reflexão das relações entre saúde e ambiente no Brasil. Partindo da discussão sobre desenvolvimento (sustentável), procura justificar a emergência do território no âmbito das políticas públicas e da compreensão da produção e enfrentamento das iniqüidades sociais. A argumentação passa por ligar a (in)justiça social à ambiental, revelando o aspecto mais nefasto da desigualdade sócio-espacial: a "coincidência" dos riscos de origem social e ambiental nas áreas de populações mais vulneráveis, fruto do modelo de desenvolvimento e racionalidade operado pelo atual processo de globalização, interferindo na gestão e produção territorial local, estabelecendo conexões escalares cada vez mais complexas.

Há várias portas entreabertas ou caminhos apenas insinuados no texto, que por ter abrangido um escopo amplo e complexo, não conseguiu desenvolver. Entre estes, talvez a própria discussão do território seja uma das mais significativas a ser feita. Nos debates ambientais, sociais e de saúde já temos acumulado um número considerável de questionamentos e pesquisas que tem nos ajudado a compreender a emergência de fortalecer os movimentos sociais e políticos que tenham como fundo a justiça ambiental, entendida como a ampliação do escopo discursivo e ideológico da justiça social. Já não temos dúvidas de que a questão ambiental é uma questão social, assim como não há dúvidas de sua relação direta com a problemática da saúde e da qualidade de vida. De outro lado, também já conseguimos avançar muito na compreensão da indissocialidade da dimensão espacial dos processos ligados ao tempo e à sociedade, e nesta mesma revista este tema tem sido constantemente resgatado. Contudo, o que é mais estimulante como ponto de debate no texto é justamente o uso de "território" em vez de "espaço", somando a uma tendência que já começa a se tornar visível 1.

Em nossa tradição científica ocidental, o tempo dominou por um longo período as formulações de compreensão do mundo. A guinada espacial que as ciências têm vivido nas últimas décadas tem possibilitado uma grande aproximação entre elas, sendo a temática ambiental uma das frentes que mais potencializou esta convergência. A Geografia tem sido resgatada, em diferentes contextos, justamente por sua tradição na abordagem da dimensão espacial dos fenômenos e seu tratamento da relação sociedade-natureza. Isso tudo é sabido. Nos estudos sobre saúde no Brasil, a obra de Milton Santos tem sido a principal referência, fornecendo um corpo teórico-metodológico que tem permitido avançar na aproximação da discussão num contexto espaço-temporal mais complexo e dinâmico. Isso também é sabido. Mas um aspecto interessante desta incorporação é que o conceito inicial que predomina é o de espaço. Embora mais geral, abstrato e complexo, é a partir dele que acontecem os primeiros avanços conceituais e de reformulação do escopo de análise. No entanto, ele não é operacional, ou seja, é difícil utilizá-lo enquanto categoria de análise em trabalhos empíricos, mesmo para os geógrafos. Nesse caso, as demais categorias da Geografia, como lugar, território, paisagem e região, que são, juntamente com o espaço, sua própria base de sustentação, permitem operacionalizar o olhar mais detido em diferentes aspectos da espacialidade, produzindo leituras específicas que enriquecem as possibilidades desse diálogo interdisciplinar. Entre essas, o território tem-se destacado nesta área de interface sociedade-ambiente-saúde.

Território carrega em si a idéia de domínio, de afetação, de controle 2. É mais do que recortes político-administrativos, como os Estados Nacionais. Podem-se desenhar com base em diferentes forças, sejam elas políticas, econômicas, culturais e até subjetivas. Sua escala é extremamente variável no tempo e no espaço. As territorialidades se cruzam, se completam, se sobrepõem ou entram em conflito. Sempre estão orientadas a um uso e a um significado. Não são gratuitas nem inocentes. São múltiplas, complexas, transitórias e permanentes, dependendo dos processos que as produzem e as sustêm 3.

Mas nessa transição, nessa incorporação do território, que possui possibilidades analíticas muito promissoras, às vezes acabamos reduzindo-o ao espaço físico, como já aconteceu tantas vezes com o próprio conceito de espaço. Território torna-se assim um termo genérico para "chão", para "ambiente", para "espaço entre fronteiras". Em alguns momentos, o texto de Rigotto & Augusto traz um pouco dessa simplificação, usando território de maneira geral, utilizando-o como uma forma mais abrangente de se referir ao espaço. Em outros pontos, há a incorporação do território enquanto espaço de luta, de posse, de significado, onde ele é mais rico e possui elementos que têm muito a agregar à análise. Nesses casos, aproxima-se de utilizar território enquanto categoria de análise ou como um conceito fundamental de compreensão da relação sociedade-natureza, e não apenas uma dimensão "espacializante" dos fatos sociais ou ambientais. Territórios são construídos e mantidos, como as autoras apontam quando se referem à emergência da noção no contexto da revolução técnico-científica e da crise ambiental, ou quando levantam a vinculação dos movimentos sociais à luta e ao embate territorial. Mas ele vai além. É um conceito intencional, político no sentido amplo, que revela a natureza da organização espacial e de seus embates e significados, permitindo a compreensão das complexas relações de dependência, de distribuição e concentração de riquezas e, como as autoras também apontam, os quadros de vulnerabilidade específicos, nas diferentes escalas.

Esse é outro ponto importante que o texto levanta: a vinculação território-vulnerabilidade. Como a compreensão da vulnerabilidade passa pela multidimensionalidade dos processos sócio-espaciais, desde aqueles ligados à dinâmica demográfica, passando pelos ambientais até os geográficos de maneira mais ampla 4,5, territorializá-los é fundamental para podermos ter uma leitura mais completa dos processos que contribuem não só na produção e distribuição dos riscos e perigos, mas fundamentalmente para podermos identificar os elementos que desenham as diferentes vulnerabilidades, que podem variar mesmo entre pessoas de mesmo perfil demográfico, condição social ou que estejam na mesma situação geográfica. O território pode funcionar como um amálgama que nos permite associar os processos que o constroem para melhor compreender a própria iniqüidade social no campo da produção sócio-espacial, de um lado, e as alternativas e movimentos de contra-racionalidade que combatem a ordenação territorial hegemônica que criam outras territorialidades, não raro produzindo novas escalas geográficas de ação política 6, para diminuírem sua vulnerabilidade e enfrentar os perigos que são produzidos globalmente e distribuídos de maneira desigual no mundo.

As perspectivas que se abrem a partir da contribuição das autoras é o desafio que temos de enfrentar ao trabalhar nas áreas de interface, neste ambiente interdisciplinar. As interconexões escalares têm trazido elementos desencaixados produzidos globalmente 7 para serem enfrentados localmente, modificando territorialidades e produzindo situações de risco nas quais os recursos e conhecimentos disponíveis no lugar não são historico-geograficamente contextualizados, potencializando a vulnerabilidade. Isso se dá no campo da saúde de uma maneira especialmente significativa, já que junto com a importância das relações ecológicas (a exemplo do complexo patológico de Sorre), compreender a relação território-vulnerabilidade de um ponto de vista amplo (social, ambiental, cultural) envolve abarcar a produção e distribuição das iniqüidades sociais no mundo globalizado, de elevado desenvolvimento técnico e mobilidade, com construções territoriais cada vez mais complexas. Envolve também levar em conta as identidades territoriais e suas repercussões em termos de riscos e vulnerabilidades, bem como de segurança e insegurança ontológica. Território pode ser, portanto, uma categoria importante para operacionalizar as pesquisas que visem à espacialidade, indicando de forma mais direta e evidente, aspectos específicos da relação sociedade-natureza, ajudando a revelar de forma mais clara, como bem mostraram Rigotto & Augusto, as iniqüidades sociais e os riscos que atingem diretamente a qualidade de vida das pessoas, no seu lugar, no seu território.

 

 

1. Monken M, Barcellos C. Vigilância em saúde e território utilizado: possibilidades teóricas e metodológicas. Cad Saúde Pública 2005; 21:898-906.

2. Sack R. Human territoriality: its theory and history. Cambridge: Cambridge University Press; 1986.

3. Haesbaert R. O mito da desterritorialização: do "fim dos territórios" à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2004.

4. Cutter S. The vulnerability of science and the science of vulnerability. Ann Assoc Am Geogr 2003; 93:1-12.

5. Hogan DJ, Marandola Jr. E. Toward an interdisciplinary conceptualization of vulnerability. Population, Space and Place 2005; 11:455-71.

6. Cox K. Spaces of dependence, spaces of engagement and the politics of the scale, or: looking for local politics. Polit Geogr 1998; 179:1-23.

7. Giddens A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp; 1991.

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