ARTIGO ARTICLE

 

Determinantes nas intoxicações medicamentosas agudas na zona urbana de um município do Sul do Brasil

 

Causes of acute poisoning with medication in a southern Brazilian city

 

 

Fabiana Burdini Margonato; Zuleika Thomson; Mônica Maria Bastos Paoliello

Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

As intoxicações medicamentosas no Brasil resultam entre diversos fatores os relacionados a uma frágil política de medicamentos em nosso país. Assim, o objetivo deste estudo foi analisar variáveis sócio-econômicas, tipos de indicação, formas de aquisição e armazenamento de medicamentos das pessoas acometidas por intoxicações medicamentosas agudas não-intencionais. Os dados foram coletados durante visitas domiciliares aos pacientes com registro de intoxicação medicamentosa aguda não-intencional pelo Centro de Controle de Intoxicações de Maringá, Paraná, em 2004. Foram estudadas variáveis relacionadas ao intoxicado, à intoxicação, ao medicamento e armazenamento doméstico de medicamentos. Dentre as 97 intoxicações registradas no período, foram entrevistadas 72 famílias, sendo a maioria de menores de 10 anos (73,6%), sexo masculino (54,2%), estratos econômicos C e D (63,9%). Muitos entrevistados referiram não ter recebido informações sobre o medicamento (76,5%). Houve associação significativa entre pessoas dos estratos econômicos C e D e armazenamento inadequado de medicamentos (p < 0,05). Entrevistados dos estratos econômicos A e B apresentaram medicamentos vencidos com maior freqüência (p < 0,05). Concluiu-se que condições inadequadas de aquisição e armazenamento domiciliar de medicamentos podem ter favorecido a ocorrência das intoxicações.

Uso de Medicamentos; Armazenagem de Medicamentos; Comercialização de Medicamentos; Envenenamento


ABSTRACT

Acute poisoning with medicines in Brazil has various causes, including a deficient national drug policy. The current study thus aimed to analyze socioeconomic variables, prescription characteristics, and forms of purchase or acquisition and storing of medicines by victims of acute unintentional poisoning. The data were collected during home visits to patients with a record of acute unintentional drug poisoning according to the Poison Control Center in Maringá, Paraná State, in 2004. The variables were related to the victim, the poisoning event, the product, and its household storage. For the 97 poisonings recorded during the study period, 72 families were interviewed, with the majority of the victims under 10 years of age (73.6%), males (54.2%), and from lower-income groups (63.9%). Many interviewees reported not having received information about the drug (76.5%). There was a significant association between lower-income status and inadequate drug storage (p < 0.05). A larger proportion of poisonings in higher-income families involved expired products (p < 0.05). Inadequate acquisition and storage of drugs may thus have facilitated the occurrence of poisonings.

Drug Utilization; Drug Storage; Drug Commerce; Poisoning


 

 

Introdução

As mudanças tecnológicas que ocorreram no século XX levaram ao desenvolvimento das indústrias como um todo, favorecendo a síntese de novos compostos para diversos fins 1. Nesse contexto, a indústria farmacêutica desenvolveu-se rapidamente, com a proliferação de seu mercado em todas as esferas, trazendo consigo um arsenal de novos produtos e mudanças importantes no perfil de utilização de medicamentos em todo o mundo.

A presença comum de uma extensa variedade de medicamentos no Brasil favorece o surgimento de problemas relacionados a estes produtos, que representam um desafio à saúde pública tanto em países em desenvolvimento como em países desenvolvidos.

Segundo diversos autores, os medicamentos ocupam o primeiro lugar nos acidentes resultantes da exposição a agentes tóxicos 2,3,4,5. Em 2002, foram responsáveis pela ocorrência de 26,9% das intoxicações registradas pela rede nacional brasileira de centros de controle de intoxicações 6. Segundo o mesmo levantamento, as intoxicações medicamentosas mais freqüentes decorreram de acidentes individuais e tentativas de suicídio.

A manutenção de índices elevados de intoxicações medicamentosas no Brasil é caracterizada por fatores importantes. Um deles é a existência de uma frágil política nacional de medicamentos, marcada por diversas formas de resistência ao uso racional de produtos da indústria farmacêutica, tais como a existência de uma imensa variedade de fármacos de segurança e eficácia duvidosas e ausência de iniciativas para formação de profissionais de saúde capazes de orientar adequadamente sobre o uso correto de medicamentos 7,8. Técnicas de marketing que atraem prescritores e usuários de medicamentos também favorecem a utilização inadequada desses produtos por uma parcela considerável da população. A utilização abusiva de embalagens atraentes, medicamentos coloridos e adocicados, com sabor de frutas e formato de bichinhos, colabora ainda mais para o aumento das intoxicações acidentais em crianças 9.

O uso desnecessário de fármacos prescritos, ou não prescritos, também é um fator de importância significativa que aumenta o risco de intoxicações 10. Torna-se evidente que os riscos estão correlacionados ao nível de informação sobre medicamentos, tanto de usuários como também de prescritores e dispensadores 11. A oferta de medicamentos, a venda pelo telefone e até mesmo pela internet, contribui para a má qualidade da informação sobre medicamentos 11,12.

A realização de um trabalho que identifique fatores pertencentes ao contexto das intoxicações medicamentosas favorece a criação e implementação de medidas voltadas à prevenção desses agravos. Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi analisar os fatores sócio-econômicos, tipo de indicação, formas de aquisição e armazenamento de medicamentos das pessoas acometidas por intoxicações medicamentosas agudas não-intencionais.

 

Metodologia

Este é um estudo transversal das intoxicações medicamentosas agudas não-intencionais atendidas e registradas pelo Centro de Controle de Intoxicações (CCI) de Maringá, Paraná, Brasil, no período de janeiro a dezembro de 2004. Foram excluídos os casos de intoxicações em moradores de zona rural do município, devido à dificuldade encontrada no acesso a tais domicílios.

A coleta de dados constou de visitas domiciliares para aplicação de formulário aos intoxicados, que foram realizadas após aprovação desta pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa, Universidade Estadual de Londrina, com emissão do Parecer nº. 305/04. Aos entrevistados, solicitou-se assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após explanação dos objetivos da pesquisa. Posteriormente à aplicação do questionário, foi entregue a cada entrevistado material informativo abrangendo questões sobre aquisição, utilização e armazenamento doméstico de medicamentos, preparado pela autora e submetido à apreciação de especialista.

As entrevistas foram realizadas por um dos autores, acompanhado de um auxiliar de pesquisa, previamente treinado, nos dias da semana e aos sábados de manhã e à tarde. Nos casos das intoxicações em menor de idade, a entrevista foi realizada com a mãe ou outro responsável. Em caso de intoxicação em adultos, realizou-se a entrevista com outro membro da família apenas quando o mesmo não estava presente no domicílio. Foram consideradas perdas os casos em que, após três visitas domiciliares, o indivíduo ou nenhum familiar foi encontrado, além das recusas.

Realizou-se um estudo pré-teste a partir de casos não-intencionais atendidos pelo CCI de Londrina em 2004. A realização desse estudo possibilitou modificar o conteúdo e a ordem de algumas questões no formulário de coleta de dados primários.

Foram estudadas as variáveis: (a) relacionadas ao intoxicado: sexo, idade na ocasião da intoxicação e poder de compra da família 13. Tal classificação é feita após a aplicação de um questionário, em que o pesquisador faz um levantamento dos bens de consumo pertencentes à família e questiona o entrevistado quanto ao nível de escolaridade dos membros familiares. Esse método foi utilizado para a classificação econômica das famílias; (b) relacionada à intoxicação: circunstância, de acordo com os registros do CCI; (c) relacionadas à aquisição do(s) medicamento(s) envolvido(s) na intoxicação: indicação (com ou sem prescrição médica), local de aquisição do medicamento e recebimento ou não de informações durante a aquisição do medicamento; e (d) relacionadas ao armazenamento domiciliar de medicamentos: local de armazenamento, avaliação do local do armazenamento (com critérios definidos pelos autores deste estudo), presença de medicamento(s) sem identificação, presença de medicamento(s) com prazo de validade vencido e quantidade de medicamentos armazenados no domicílio, que foi considerada exagerada quando havia mais de um produto para a mesma indicação. O poder de compra da família e as variáveis descritas no item (d) foram obtidos durante a visita domiciliar, com observação no local, pelo pesquisador entrevistador. Para avaliar o local de armazenamento, o entrevistador considerou os seguintes critérios de adequação: altura do local de guarda de medicamentos (considerada inadequada, se inferior a 1,5m); local no domicílio do recipiente que continha os medicamentos no momento da entrevista (considerado inadequado se o recipiente com medicamentos estivesse visível a crianças); tipo de recipiente (inadequado se o recipiente não tivesse tampa e se o mesmo fosse de material transparente).

Os dados foram inseridos no programa Epi Info para Windows na versão 3.2.2 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos). Foram construídas figuras e tabelas de freqüência simples e percentual para ilustração dos resultados. As associações entre as variáveis foram analisadas com o teste de qui-quadrado com correção de Yates ou o teste exato de Fisher nos casos em que ocorreram freqüência esperada menor do que 5. Foram considerados significativos os testes que apresentaram valores de p < 0,05.

 

Resultados

No período de janeiro a dezembro de 2004 foram registrados 106 casos de intoxicações medicamentosas não-intencionais pelo CCI de Maringá. Para a realização das visitas domiciliares foram excluídos inicialmente dois casos de residentes em zona rural. Foram excluídos, posteriormente, sete casos durante as visitas domiciliares, sendo um em que o agente causador não foi medicamento e seis de abuso de medicamentos que estavam registrados na ficha de ocorrência toxicológica como acidente coletivo, perfazendo um total de nove exclusões (8,5%).

Dentre os 97 casos restantes, ocorreram 25 perdas (25,8%), sendo oito (8,2%) referentes a casos em que não havia registro de endereço na ficha de ocorrência toxicológica. Assim, foram realizadas 89 visitas domiciliares (91,8%), entre as quais foram entrevistadas 72 famílias (80,9%). As 17 perdas subseqüentes ocorreram pelos seguintes motivos: duas ausências (2,1%), duas recusas (2,1%), sete mudanças de endereço (7,2%) e seis casos de endereço incorreto (6,2%). Como já referido, foram considerados ausentes os casos em que se realizaram três visitas em horários diferentes sem que o intoxicado fosse encontrado. Cabe salientar que entre os 74 casos encontrados no domicílio, apenas dois (2,7%) recusaram-se a participar da pesquisa. Não foi encontrado domicílio com mais de um intoxicado.

Na Tabela 1, são apresentadas as características sócio-demográficas dos pacientes intoxicados entrevistados. Ressalta-se que a maioria dos indivíduos foi do sexo masculino, com idades situadas entre 0 e 4 anos, de baixo poder aquisitivo e que sofreram acidentes individuais.

 

 

Em relação ao tipo de indicação do medicamento envolvido na intoxicação, 72,2% dos entrevistados referiram tê-lo adquirido mediante prescrição médica ou odontológica. Quanto ao local da aquisição do(s) medicamento(s) envolvido(s) na intoxicação, verifica-se na Tabela 2 que a maioria dos pacientes referiu ter adquirido o medicamento em farmácia de dispensação. Observa-se ainda que houve associação estatística do local de aquisição do medicamento aos estratos econômicos, uma vez que a maioria dos entrevistados das classes A e B afirmaram ter adquirido o medicamento em farmácia de dispensação, enquanto este porcentual diminuiu entre indivíduos das classes C e D.

 

 

Quanto ao recebimento ou não de informações sobre uso do medicamento envolvido na intoxicação durante sua aquisição, poucos intoxicados (23,5%) e/ou seus responsáveis relataram ter recebido informações. Não houve associação estatisticamente significativa entre o local da aquisição e o recebimento ou não de informação.

Em relação ao armazenamento domiciliar de medicamentos, em 51,4% dos domicílios visitados os produtos eram guardados na cozinha, enquanto em 33,3% das residências o local de armazenamento era um dos quartos. Sala e outro cômodo qualquer perfizeram um total de 12,5%. Quanto à avaliação do local de armazenamento (Tabela 3), salienta-se o valor pouco expressivo referente a local de armazenamento considerado como muito bom. Ainda assim, observa-se que, mesmo somando-se os valores de locais considerados bom e muito bom, o valor obtido é próximo de um terço. Salienta-se nessa tabela que, em domicílios de entrevistados pertencentes aos estratos A e B, a maioria dos locais de armazenamento foi considerada bom ou muito bom (p = 0,009).

 

 

Em relação à presença de medicamentos sem identificação entre os armazenados, em pouco mais da metade dos domicílios visitados (52,9%) havia medicamento não identificado. Não houve associação estatisticamente significativa dessa variável com o estrato econômico nos domicílios visitados.

Em relação à quantidade de medicamentos armazenados, em 50% dos domicílios encontrou-se quantidade exagerada nos estoques domésticos. Além disso, observa-se, na Tabela 4, que em número expressivo de domicílios visitados foi encontrado pelo menos um medicamento fora do prazo de validade. Verifica-se ainda que nos domicílios de entrevistados dos estratos A e B a presença de medicamentos vencidos foi mais comum que nos C e D (p = 0,002).

 

 

Discussão

O maior porcentual de pessoas pertencentes aos estratos econômicos C e D na população de estudo desta pesquisa pode estar relacionado ao fato de que pessoas economicamente desfavorecidas tendem a procurar com maior freqüência serviços públicos de saúde, como aqueles prestados por hospitais universitários. Ao lembrar que o único local de notificação de intoxicações em Maringá é o CCI, que fica no hospital universitário da cidade, supõe-se que casos ocorridos com indivíduos dos estratos econômicos A e B podem ter sido subnotificados.

Cabe ressaltar a escassez de referências encontradas na literatura quanto à relação entre o estrato econômico e as intoxicações por medicamentos, o que sugere a necessidade da realização de novos estudos pertinentes a essa temática. Salienta-se ainda que, nas bases de dados consultadas (MEDLINE, LILACS e SciELO), um único trabalho 14 com metodologia semelhante à do presente estudo foi encontrado, o que expressa a necessidade de novos estudos para possibilitar comparações.

O baixo percentual de referência de utilização de medicamento sem prescrição antes da intoxicação talvez possa ser explicado avaliando-se os dados apresentados na Tabela 1, na qual verifica-se que a maioria das entrevistas foi realizada com pessoas de famílias de intoxicados menores de dez anos. Como já descrito, nessas entrevistas o respondente foi sempre mãe, avó ou outro responsável. Em pesquisa qualitativa desenvolvida em Maringá acerca de crianças intoxicadas em 1999, Aleixo & Itinose 15 observaram que, em vários casos, os pais apresentaram sentimento de culpa em relação ao agravo. Assim, acredita-se que alguns entrevistados podem não ter referido a aquisição de medicamento sem prescrição por dificuldade em assumir a responsabilidade relativa ao acidente com o medicamento.

Embora no presente estudo nenhum dos entrevistados tenha relatado aquisição de medicamentos em local diferente de serviços de saúde e farmácias, Schenkel et al. 16 verificaram, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, a venda de medicamentos em bares e frutarias. Essa informação subsidia a hipótese de que o medicamento é considerado um mero bem de consumo por uma parcela da população. No entanto, outros estudos demonstraram que mesmo em farmácias o atendimento em relação ao fornecimento de medicamentos é muitas vezes de qualidade questionável 17,18.

Em pesquisa realizada em 40 farmácias da cidade de São Paulo, Brasil na qual os autores criaram um caso hipotético de uma criança de 4 anos com rinite alérgica e solicitaram atendimento dos profissionais (farmacêuticos e auxiliares de farmácia), Balbani et al. 17 observaram que apenas 35% dos atendentes orientaram o encaminhamento da criança ao médico, enquanto a maioria instituiu algum tipo de tratamento. Ademais, relataram que menos de 10% dos atendentes ressaltaram os possíveis efeitos adversos da medicação prescrita. Em outro estudo realizado em farmácias, também com o objetivo de avaliar as condutas dos atendentes (farmacêuticos e auxiliares), Campos et al. 18 verificaram prescrição predominante de medicamentos sintomáticos e antibióticos. Os mesmos autores relataram ainda prescrição polimedicamentosa, com custo médio por receita de 3,8% do salário mínimo vigente. Nesse estudo, observou-se que a freqüência de prescrição de fármacos foi maior entre os auxiliares de farmácia que entre os farmacêuticos, desconsiderando a ilegalidade de tal prática.

Em investigação sobre os erros de medicação cometidos em farmácias nos Estados Unidos, os autores concluíram que a maioria dos erros de dispensação relacionou-se à substituição incorreta de medicamentos. Outros tipos freqüentes de erros foram o repasse de instruções incorretas aos pacientes e informações errôneas sobre o preparo da medicação 19. É possível que os estudos citados retratem realidades diferentes da recomendada pela Organização Mundial da Saúde, que preconiza como tempo adequado de dispensação de medicamentos um período de três minutos, a fim de que sejam fornecidas orientações suficientes que garantam a utilização e armazenamento adequado de medicamentos 20.

O baixo percentual referido de recebimento de informações sobre medicamentos requer atenção especial, tendo em vista que a falta de instruções pode ter sido indevidamente referida pelo entrevistado, com o objetivo de transferir a culpa do acidente para o profissional/atendente ou instituição/estabelecimento responsável pela entrega do medicamento envolvido na intoxicação.

Embora exista a possibilidade de omissão de informação decorrente de sentimento de culpa pelos entrevistados, não se pode ignorar o fato de que a ausência de informações pode trazer conseqüências negativas que podem resultar na utilização inadequada de medicamentos. Em pesquisa realizada em Londrina, a autora, que avaliou o nível de informação de usuários de unidades básicas de saúde a respeito dos medicamentos recebidos, verificou que apenas 46,6% dos entrevistados deram respostas corretas sobre o nome, posologia e duração do tratamento recomendado 21. Ressalta-se ainda que, em estudo realizado em Fortaleza, Ceará, Brasil, no qual foram realizadas visitas domiciliares a pacientes hipertensos, a autora observou que a dificuldade de entendimento da orientação médica durante a consulta é um fator associado à não adesão ao tratamento medicamentoso 22.

Cabe salientar que, ao iniciar um tratamento, tão importante quanto o próprio medicamento é a informação fornecida na sua dispensação para que este não cause danos à saúde de quem for utilizar. Assim, segundo Heineck et al. 23, a falta de conhecimento da população a respeito dos medicamentos evidencia a necessidade de profissionais habilitados para orientar em relação à sua utilização. Ressalta-se que os profissionais de saúde não necessitam estar apenas habilitados a fornecer informações, mas necessitam também de condições, como adequada capacitação, para exercer tal função de forma eficiente.

Uma estratégia que poderia ser útil na prevenção das intoxicações agudas não-intencionais seria o aprimoramento das atividades da equipe de saúde da família, no direcionamento de ações preventivas, como a orientação sobre os riscos de intoxicações e local de armazenamento de medicamentos onde moram crianças. Seria interessante a inserção de períodos, como por exemplo, uma semana periodicamente para checagem e orientações sobre medicamentos pela equipe de saúde da família. Para Heineck et al. 23, o trabalho multiprofissional, em especial a interação entre prescritores e dispensadores, poderia garantir ao paciente assistência farmacêutica com prestação de informações necessárias para a utilização e armazenamento adequados de medicamentos. Os autores afirmam também que esse trabalho em conjunto ajudaria a reduzir os efeitos da publicidade utilizada por fabricantes de medicamentos a fim de estimular a automedicação irracional na população.

Ainda que os dados demonstrem a importância da adequação do local de armazenamento doméstico de medicamentos, pouco se discute sobre o impacto de tal ação. A escassez de pesquisas que descrevam a realidade brasileira em relação ao tema é um indicativo de que pouco valor se atribui à prática de cuidados domiciliares como forma de prevenção de acidentes tóxicos relacionados a medicamentos.

Ramos et al. 14 analisaram intoxicações em crianças causadas por agentes tóxicos em geral; num estudo desenvolvido em Porto Alegre utilizou-se tal estudo como parâmetro para comparação e observaram que os locais mais comuns de armazenamento de agentes tóxicos foram sala-de-estar e quarto, diferente do observado no presente estudo.

O elevado percentual de medicamentos sem identificação entre os armazenados no domicílio pode ser reflexo da falta de informação e da própria negligência em relação à importância de informações sobre medicamentos. Se a população tivesse noções adequadas sobre a toxicidade potencial de alguns medicamentos, provavelmente não guardaria preparações farmacêuticas sem rótulo ou caixa e sem identificação.

O acúmulo de medicamentos armazenados nos domicílios pode ser atribuído à dependência dos serviços de saúde. O sentimento de passividade e medo em relação às doenças, contrário a tomadas de atitudes preventivas, são determinantes na formação e manutenção das polifarmácias domésticas. Segundo Marcondes Filho et al. 24, a fragilidade da assistência farmacêutica primária, a prescrição médica indiscriminada de drogas, o armazenamento caseiro inadequado e embalagens inapropriadas, favorecem a má utilização de medicamentos pela população.

Outro fator que pode estar relacionado à elevada quantidade de medicamentos armazenados nos domicílios é a inconstância na disponibilidade de medicamentos nos estoques das unidades básicas de saúde. Tal fato pode ocasionar o armazenamento em exagero para garantir o medicamento quando o serviço público de saúde não pode oferecer.

O elevado porcentual de medicamentos vencidos indica a falta de cuidado e o desconhecimento inerente aos riscos da má utilização e armazenamento doméstico de medicamentos. Para comparação com esses dados, sugere-se a realização de estudos de base populacional mais específicos, a fim de se traçar um perfil mais aprofundado das condições de armazenamento de medicamentos pela população.

O predomínio de medicamentos vencidos em domicílios com melhores condições econômicas pode ser decorrente da maior facilidade em adquirir estes produtos em farmácias, o que possivelmente explicaria a pouca motivação em verificar prazos de validade nos estoques domésticos. Já nos estratos menos favorecidos, as dificuldades na obtenção de medicamentos talvez possam levar a uma maior atenção relacionada ao vencimento dos medicamentos.

Os resultados do presente estudo permitiram concluir que a maioria dos entrevistados referiu ter adquirido o medicamento sob prescrição e em farmácia, no entanto a freqüência de aquisição em unidades básicas de saúde e hospitais aumentou nos estratos econômicos C e D. Quanto ao recebimento de informações, a grande maioria dos entrevistados referiu não ter sido instruída para o uso correto de medicamentos. Em relação ao armazenamento domiciliar desses produtos, na maioria das residências encontrou-se medicamentos na cozinha e sem identificação, quase a metade com prazo de validade vencido.

Embora tenham sido entrevistados todos os indivíduos encontrados e que aceitaram fazer parte da população deste estudo, a casuística obtida para a análise dos dados primários (n = 72) foi relativamente pequena, dificultando um estudo estatístico mais aprofundado. Sugere-se a realização de estudos com casuísticas maiores para que correlações sejam obtidas com maior precisão.

Diante da realidade observada, acredita-se que a formação de profissionais de saúde capacitados a orientar a correta utilização e armazenamento de medicamentos possa reduzir consideravelmente os índices de intoxicações medicamentosas agudas na população em geral. A atuação multiprofissional efetiva que possibilite o intercâmbio de informações entre esses profissionais é fundamental na prevenção, detecção, tratamento, notificação e acompanhamento das intoxicações.

Faz-se necessária a realização de novos estudos acerca das intoxicações medicamentosas, tendo em vista que a maioria dos trabalhos encontrados refere-se às intoxicações em geral, sem abordar as peculiaridades inerentes aos medicamentos. Tornam-se pertinentes investigações específicas para diferentes sexos, faixas etárias, circunstâncias e classes farmacológicas, de forma a estabelecer metas específicas de prevenção.

Em relação à aquisição e utilização de medicamentos, são cabíveis estudos que avaliem a qualidade da informação sobre medicamentos fornecida pelos profissionais. Destaca-se a importância de trabalhos que abordem as causas e conseqüências da informação/desinformação.

Quanto ao armazenamento domiciliar de medicamentos, inquéritos de base populacional, com casuísticas que possibilitem elaborar correlações, tornam-se necessários para verificar os cuidados da população quanto ao manuseio desses produtos.

A realização de pesquisas que aprofundem questões relacionadas à temática das intoxicações medicamentosas possibilitaria a ampliação de discussões voltadas a este problema. Sugere-se ainda a elaboração e distribuição de material educativo para prevenção de acidentes domésticos. Ressalta-se a importância da distribuição desse material à população em escolas, creches, serviços de saúde, e em especial pelas equipes de saúde da família.

Estudos acadêmicos são o primeiro passo da longa jornada quando se deseja mudar uma realidade. No entanto, para que o ideal se aproxime do real, são fundamentais diversos fatores que estão além dos muros da academia. No caso das intoxicações medicamentosas, a mobilização de profissionais de saúde, da indústria farmacêutica e a vontade política para a efetivação das ações propostas são tão importantes quanto os achados científicos obtidos nas investigações.

 

Colaboradores

F. B. Margonato foi responsável pela elaboração do projeto de pesquisa, coleta, tabulação e análise dos dados, além da redação do artigo. Z. Thomson foi responsável pela elaboração do projeto de pesquisa, análise dos dados, além da redação do artigo. M. M. B. Paoliello contribui significativamente nas fases de análise dos dados e redação do artigo.

 

Agradecimentos

Esta pesquisa recebeu auxílio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por meio da concessão de uma bolsa de estudo de Mestrado.

 

Referências

1. Amaral da, Barcia as. Intoxicações por medicamentos. In: Oga S, organizador. Fundamentos de toxicologia. São Paulo: Editora Varella; 2003. p. 367-79.        

2. Andrade Filho A, Campolina D, Dias MB. Toxicologia na prática clínica. Belo Horizonte: Editora Folium; 2001.        

3. Bortoletto ME. Tóxicos, civilização e saúde: contribuição à análise dos sistemas de informações tóxico-farmacológicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 1990.        

4. Klaassen CD. Princípios da toxicologia e tratamento do envenenamento. In: Gilman AG, Hardman JG, Limbird LE, organizadores. Goodman & Gilman: as bases farmacológicas da terapêutica. São Paulo: Editora McGraw-Hill Interamericana do Brasil; 2003. p. 51-62.        

5. Schvarzsman S. Intoxicações agudas. São Paulo: Editora Sarvier; 1991.        

6. Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas. Envenenamento doméstico, 2004. http://www.fiocruz.br/sinitox/envenenamento domestico.htm. (acessado em 15/Jun/2005).        

7. Cosendey MA, Hartz ZM, Bermudez JAZ. Validation of a tool for assessing the quality of pharmaceutical services. Cad Saúde Pública 2003; 19:395-406.        

8. Silva CDC, Coelho HLL, Arrais PSD, Cabral FR. Centro de informação sobre medicamentos: contribuição para o uso racional de fármacos. Cad Saúde Pública 1997; 13:531-5.        

9. Bortoletto ME, Bochner R. Impacto dos medicamentos nas intoxicações humanas no Brasil. Cad Saúde Pública 1999; 15:859-69.        

10. Arrais PSD. O uso irracional de medicamentos e a farmacovigilância no Brasil. Cad Saúde Pública 2002; 18:1478-9.        

11. Arrais PSD, Coelho HLL, Batista MCDS, Carvalho ML, Righi RE, Arnau JM. Perfil da automedicação no Brasil. Rev Saúde Pública 1997; 31:71-7.        

12. Pepe VLE, Castro CGSO. A interação entre prescritores, dispensadores e pacientes: informação compartilhada como possível benefício terapêutico. Cad Saúde Pública 2000; 16:815-22.        

13. Associação Brasileira de Empresas e Pesquisa. Critério de classificação econômica Brasil. 2000. http:// www.abep.org.br/codigosguias/ABEP-CCEB.pdf (acessado em 24/Set/2004).        

14. Ramos CLJ, Targa MBM, Stein AT. Perfil das intoxicações na infância atendidas pelo Centro de Informação Toxicológica do Rio Grande do Sul (CIT/RS), Brasil. Cad Saúde Pública 2005; 21:1134-41.        

15. Aleixo ECS, Itinose AM. A experiência de familiares durante a ocorrência da intoxicação infantil no Município de Maringá (PR). Rev Espaço Saúde 2001; 3(1). http://www.ccs.uel.br/espacoparasaude/ v3n1/download_artigos1.htm (acessado em 10/Jul/2005)        

16. Costa TCTD, Kerber LM, Volpato NM, Canduro A, Machado Junior HN, Pasa TBC, et al. Comercialização de medicamentos em bares/lancherias e armazéns/fruterias em Porto Alegre. Ciênc Cult (São Paulo) 1988; 20:285-8.        

17. Balbani APS, Duarte JG, Mello Junior JF, Sanchez TG, Butugan O. Intoxicações por medicamentos utilizados no tratamento das rinites. Revista Brasileira de Alergia e Imunopatologia 1997; 20:228-34.        

18. Campo JA, Oliveira JS, Costa DM, Machado CD, Alvarenga JR, Torres LO, et al. Prescrição de medicamentos por balconistas de 72 farmácias de Belo Horizonte, MG em maio de 1983. J Pediatr (Rio J) 1985; 59:307-12.        

19. Seifert SA, Jacobitz K. Pharmacy prescription dispensing errors reported to a regional poison control center. J Toxicol Clin Toxicol 2002; 40:919-23.        

20. Organización Mundial de la Salud. Como investigar el uso de medicamentos em los servicios de salud: indicadores selecionados del uso de medicamentos. Genebra: Organización Mundial de la Salud; 1993.        

21. Silva PV. Uso de medicamentos na atenção básica em Londrina, PR [Dissertação de Mestrado]. Londrina: Universidade Estadual de Londrina; 2004.        

22. Teixeira ACA. Adesão ao tratamento farmacológico da hipertensão arterial e seus determinantes em pacientes de ambulatório [Dissertação de Mestrado]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará;1998.        

23. Heineck I, Schenkel EP, Vidal X. Medicamentos de venta libre em el Brasil. Rev Panam Salud Pública 1998; 3:385-91.        

24. Marcondes Filho W, Mezzaroba L, Turini CA, Koike A, Motomatsu Junior A, Shibayama EE, et al. Tentativas de suicídio por substâncias químicas na adolescência e juventude. Adolec Latinoam 2002; 3:0-0.        

 

 

Correspondência:
F. B. Margonato
Centro de Ciências da Saúde
Universidade Estadual de Londrina
Rua José Clemente 1193, Maringá
PR 87020-070, Brasil
fabianamargonato@yahoo.com.br

Recebido em 14/Fev/2007
Versão final reapresentada em 02/Jul/2007
Aprovado em 30/Jul/2007

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br