NOTE RESEARCH NOTE

 

Estudo descritivo da estrutura populacional canina da área urbana de Araçatuba, São Paulo, Brasil, no período de 1994 a 2004

 

A descriptive profile of the canine population in Araçatuba, São Paulo State, Brazil, from 1994 to 2004

 

 

Andréa Maria AndradeI; Luzia Helena QueirozII; Sílvia Helena Venturoli PerriII; Cáris Maroni NunesII

IAgência Nacional de Vigilância Sanitária, Brasília, Brasil
IIDepartamento de Apoio, Produção e Saúde Animal, Universidade Estadual Paulista, Araçatuba, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

No período de 1994 a 2004, a população canina de Araçatuba, São Paulo, Brasil, registrou duas importantes zoonoses: a raiva e a leishmaniose visceral. Analisaram-se as mudanças ocorridas nessa população durante esse período, utilizando resultados de censos caninos e de coletas censitárias de sangue realizados em 1994, 1999 e 2004. A relação cão/10 habitantes variou significativamente, passando de 1,7 em 1994 para 2,0 em 1999 e para 1,8 em 2004. A porcentagem de cães com até um ano de idade passou de 20% para 32,5% e o número de eutanásias realizadas também aumentou após 1999, com a introdução da leishmaniose visceral. O número de cães e a estrutura etária variaram nos diversos setores do município e aqueles com maior porcentagem de animais com até dois anos de idade apresentaram maior ocorrência de casos de leishmaniose visceral humana e canina. Tais resultados decorrem de ações de controle adotadas nos setores com casos humanos de leishmaniose visceral, porém, o aumento da população canina mais jovem pode resultar em aumento da susceptibilidade destes cães à doença, favorecendo a manutenção da mesma na área.

Raiva; Leishmaniose Visceral; Eutanásia Animal; Cães


ABSTRACT

From 1994 to 2004, the canine population in Araçatuba, São Paulo State, Brazil, suffered two major canine zoonoses: rabies and visceral leishmaniasis. Changes in the dog population during this period were evaluated using canine census data from 1994 and 2004 and the results of blood samples for diagnosis of canine visceral leishmaniasis in 1999. The ratio of dogs per 10 inhabitants varied from 1.7 in 1994 to 2.0 in 1999 and 1.8 in 2004. The percentage of puppies less than 1 year of age increased from 20% to 32.5%, and the number of euthanized dogs also increased after 1999, when visceral leishmaniasis began to appear. The number of dogs and percentage of puppies varied between different areas of the city, and neighborhoods with a higher percentage of young animals showed more cases of both human and canine leishmaniasis. This result may be due to control measures applied in these areas in response to cases of human and canine visceral leishmaniasis, but the increase in the younger canine population can be accompanied by increased susceptibility in these animals, thus favoring maintenance of the disease in the area.

Rabies; Visceral Leishmaniasis; Animal Euthanasia; Dogs


 

 

Introdução

O conhecimento do tamanho e estrutura das populações de animais reservatórios de infecções tais como a raiva e a leishmaniose é fundamental no planejamento de ações de controle da saúde das populações 1,2,3.

O Município de Araçatuba, localizado a noroeste do Estado de São Paulo, apresentou dois tipos graves de zoonoses envolvendo cães nos últimos anos: a raiva e a leishmaniose visceral. A epizootia da raiva ocorreu de 1993 a 1996 e causou a morte de 273 cães e de uma pessoa (Direção Regional de Saúde de Araçatuba, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Boletins das atividades de controle da raiva, Município de Araçatuba, 1993 a 2004) 4. A leishmaniose visceral foi identificada no município pela primeira vez em 1998, na espécie canina, e em 1999, em humanos 5. Em um período de seis anos (1999 a 2004) 186 pessoas adoeceram e 20 óbitos foram registrados 6. Para o controle dessa doença o município segue as recomendações da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, que incluem a identificação e eliminação do reservatório canino 7. Devido a essas recomendações e ao temor da população pela leishmaniose visceral, milhares de cães têm sido eliminados desde 1999 (Centro de Controle de Zoonoses, Secretaria de Saúde e Higiene Pública. Boletins mensais das atividades de controle da leishmaniose visceral. Araçatuba, 1999-2004).

Este trabalho teve por objetivo analisar as mudanças ocorridas na estrutura e composição da população canina no período de 1994 a 2004, relacionando-as com a ocorrência de raiva e leishmaniose visceral canina.

 

Material e métodos

Foram utilizados os resultados do censo canino e felino realizado em 1994 8 e os dados da coleta censitária de sangue para diagnóstico da leishmaniose visceral canina realizada na área urbana do município, entre janeiro e dezembro de 1999 (Centro de Controle de Zoonoses, Secretaria de Saúde e Higiene Pública. Boletins mensais das atividades de controle da leishmaniose visceral. Araçatuba, 1999-2004). Os dados de 2004 também foram obtidos por meio de censo canino realizado pelo Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) da Secretaria de Saúde e Higiene Pública do município, no período de novembro de 2003 a março de 2004. Utilizou-se a divisão do município em oito áreas e 36 setores, divisão esta adotada pela Superintendência de Controle de Endemias (SUCEN) desde 1996, como padrão para as ações de saúde 9. Os dados de eutanásia canina foram obtidos dos boletins mensais das atividades de controle da raiva do Município de Araçatuba (Direção Regional de Saúde de Araçatuba, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Boletins das atividades de controle da raiva, Município de Araçatuba, 1993 a 2004).

Para a comparação entre as faixas etárias da população canina consideraram-se os anos de 1994 e 2004, adotando-se o critério previamente utilizado em 1994 (< 1 ano; de 1 a 4 anos; > 4 anos). Como na coleta censitária de sangue de 1999 não houve registro da idade dos animais, a mesma não foi considerada para análise.

Para a análise estatística utilizaram-se os testes do qui-quadrado e de duas proporções, adotando-se o nível de significância de 5% 10.

 

Resultados e discussão

A relação cão/habitante na área urbana de Araçatuba variou de 1,69 em 1994 para 2,03 cães em 1999, atingindo 1,79 cães para cada dez habitantes em 2004 (Tabela 1). O aumento observado no período pós-epidemia da raiva (1996 a 1998) reforça as observações de Beran & Frith 1 e Wandeler et al. 3 de que qualquer redução no tamanho da população canina por aumento na mortalidade é rapidamente compensada pelo aumento na reprodução e na taxa de sobrevivência.

 

 

Quanto à distribuição sexual, houve diferença estatisticamente significante entre os períodos (p < 0,0001) com 56,2% de machos e 43,8% de fêmeas em 1994, passando a 51% e 49%, respectivamente, em 1999 e 49,9% e 50,1% em 2004. Embora na maioria dos estudos observe-se a predominância de animais do sexo masculino 2, em Araçatuba a predominância de machos observada em 1994 evoluiu para uma similaridade na distribuição entre os sexos, em 2004. As preferências da população que resultam na seleção de cães machos ou fêmeas são variáveis e sofrem influência de vários fatores econômicos e culturais, podendo ter influenciado os resultados observados na presente pesquisa.

Observou-se também diferença estatisticamente significante (p < 0,0001) entre os anos de 1994 e 2004 para a distribuição da população canina segundo a faixa etária (Figura 1). A população de cães com até um ano de idade que representava 20,2% dos animais de 1994, passou a 32,5% em 2004 e a população de um a quatro anos de idade que era de 56,6% da população canina de 1994, diminuiu para 39,1% em 2004. Esse tipo de distribuição é típico de países do terceiro mundo e situações semelhantes foram observadas na Nigéria 11 e em Ibiúna, Estado de São Paulo 12. As implicações epidemiológicas dessa predominância de cães jovens incluem maior suscetibilidade a diferentes doenças e baixa resposta imunológica frente a diversas vacinas contra importantes enfermidades, como a raiva 2,13.

O número de eutanásias realizadas pelo CCZ declinou no período pós-raiva (1997 e 1998) e aumentou a partir de 1999 com a introdução da leishmaniose visceral (Figura 2). A taxa de eutanásia em 1994 foi de 8,8% (2.376/26.926); em 1999 foi de 14,9% (5.121/34.332) e em 2004 de 29,4% (9.364/31.793), diferenças estas estatisticamente significantes (p < 0,0001). Considerando-se o período de 11 anos, 49.380 cães foram submetidos à eutanásia no CCZ, sendo que deste total, 41.774 corresponderam ao período entre 1999 e 2004 (dados não apresentados). Ao contrário da raiva, cujas medidas de controle são amplamente eficazes, a enzootia de leishmaniose visceral no município não conta com meios de prevenção tão eficientes 14,15 e a alta taxa de eutanásia observada pode ter sido fator determinante para o decréscimo da população canina. Segundo Lima Júnior 2, elevadas taxas de mortalidade favorecem a renovação populacional o que pode resultar em população mais jovem e com maior tendência à prolificidade. Em Araçatuba, porém, a eliminação anual de um grande número de cães pode ter prejudicado seriamente o crescimento desta população uma vez que, mesmo havendo a reposição dos cães, muitos podem ter sido eliminados antes de atingirem a idade reprodutiva.

A distribuição dos animais pela área urbana de Araçatuba revelou uma densidade de cães variável entre os diversos setores. Em 2004, por exemplo, os cães jovens com menos de dois anos de idade representaram 49,6% dos cães da área urbana (Figura 3). Os setores mais periféricos, com população de poder aquisitivo mais baixo, com mais problemas sociais e de saneamento ambiental, além de animais sem acompanhamento médico-veterinário, apresentaram alto percentual de cães menores de dois anos de idade (62% a 68%). Por outro lado, em setores economicamente mais desenvolvidos (região central), a porcentagem de cães com menos de dois anos de idade variou de 32,7% a 37,7%, sugerindo que a expectativa de vida dos cães destes setores é superior à dos periféricos. Os setores com maior porcentagem de animais jovens também apresentaram maior número de casos humanos de leishmaniose visceral e prevalência canina da doença (Centro de Controle de Zoonoses, Secretaria de Saúde e Higiene Pública. Boletins mensais das atividades de controle da leishmaniose visceral. Araçatuba, 1999-2004). Tal resultado é influenciado pela maior freqüência de ações de controle desenvolvidas nesses locais em decorrência dos casos humanos, resultando em maior taxa de eutanásia. Porém, o aumento da população canina mais jovem pode resultar em aumento da susceptibilidade destes cães à leishmaniose visceral, mantendo a doença na área.

Conclui-se que a ocorrência de raiva e leishmaniose visceral influenciou na estrutura e composição da população canina da área urbana de Araçatuba, em decorrência das ações de controle aplicadas ao reservatório canino.

 

Colaboradores

A. M. Andrade contribuiu na coleta de dados, análise e interpretação dos resultados e elaboração do manuscrito. S. H. V. Perri colaborou na análise estatística e correção do texto. L. H. Queiroz e C. M. Nunes contribuíram na concepção e planejamento, análise e interpretação dos dados e correção do texto.

 

Agradecimentos

À Prefeitura Municipal de Araçatuba, por meio da Secretaria de Saúde e Higiene Pública e do Centro de Controle de Zoonoses, e ao relator (anônimo) pelas correções e sugestões.

 

Referências

1. Beran GW, Frith M. Domestic animal rabies control: an overview. Rev Infect Dis 1988; 10(4 Suppl): 672-7.        

2. Lima Júnior AD. Caracterização da população canina para o controle da raiva e outros problemas de saúde pública. Ciência Veterinária Tropical 1999; 2:65-78.        

3. Wandeler AI, Budde A, Capt S, Kappeler A, Matter H. Dog ecology and dog rabies control. Rev Infect Dis 1988; 10(4 Suppl):684-8.        

4. Silva LHQ, Bissoto CE, Delbem ACB, Ferrari CIL, Perri SHV, Nunes CM. Canine rabies epidemiology in Araçatuba and neighborhood, Northwestern São Paulo State – Brazil. Rev Soc Bras Med Trop 2004; 36:139-42.        

5. Galimbertti MZ, Katz G, Camargo-Neves VLF, Rodas LAC, Casanova C, Costa IP, et al. Leishmaniose visceral americana no Estado de São Paulo. Rev Soc Bras Med Trop 1999; 32(1 Suppl):217-8.        

6. Centro de Vigilância Epidemiológica "Prof. Alexandre Vranjac", Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Leishmaniose visceral americana humana – casos autóctones e óbitos de leishmaniose visceral americana, segundo município de residência, 1999-2005. http://www.cve.saude.sp.gov.br/htm/zoo/lvah_auto9904.htm (acessado em 24/Ago/2007).        

7. Coordenadoria de Controle de Doenças, Superintendência de Controle de Endemias, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral americana do Estado de São Paulo. São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo; 2006.        

8. Nunes CM, Martines DA, Fikaris S, Queiroz LH. Avaliação da população canina da zona urbana do Município de Araçatuba, São Paulo, SP, Brasil. Rev Saúde Pública 1997; 31:308-9.        

9. Glasser CM, Fonseca Junior DPF. Guia de instruções do plano de erradicação de Aedes aegypti. São Paulo: Superintendência de Controle de Endemias, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo; 1998.        

10. Zar JH. Biostatistical analysis. 4th Ed. New Jersey: Prentice-Hall; 1998.        

11. Oboegbulem SI, Nwakonobi IE. Population density and ecology of dogs in Nigeria: a pilot study. Revue Scientifique et Technique 1989; 8:733-45.        

12. Soto FRM. Dinâmica populacional canina no Município de Ibiúna-SP: estudo retrospectivo de 1998 a 2002 referente a animais recolhidos, eutanasiados e adotados [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, Universidade de São Paulo; 2003.        

13. Silva LHQ. Produção de anticorpos e determinação da resistência adquirida à raiva canina [Tese de Doutorado]. São Paulo: Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade de São Paulo; 1999.        

14. Costa CHN, Vieira JBF. Mudanças no controle da leishmaniose visceral no Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 2001; 34:223-8.        

15. Palatinik-de-Souza CB, Santos VR, França-Silva JC, Costa RT, Reis AB, Palatinik M, et al. Impact of canine control on the epidemiology of canine and human visceral leishmaniasis in Brazil. Am J Trop Med Hyg 2001; 65:510-7.        

 

 

Correspondência:
L. H. Queiroz
Departamento de Apoio
Produção e Saúde Animal
Universidade Estadual Paulista
Rua Clóvis Pestana 793, Araçatuba, SP
16050-680, Brasil
lhqueiroz@fmva.unesp.br

Recebido em 19/Set/2007
Versão final reapresentada em 08/Jan/2008
Aprovado em 15/Jan/2008

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br