ARTIGO ARTICLE

 

Equivalência semântica da versão em português do instrumento Early Childhood Oral Health Impact Scale

 

Semantic equivalence of the Brazilian version of the Early Childhood Oral Health Impact Scale

 

 

Flávia Cariús TeschI; Branca Heloísa de OliveiraI; Anna LeãoII

IFaculdade de Odontologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
IIFaculdade de Odontologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O instrumento norte-americano Early Childhood Oral Health Impact Scale (ECOHIS) foi criado para avaliar a qualidade de vida relacionada à saúde bucal de crianças pré-escolares e seus familiares. Para que possa ser utilizado no Brasil é necessário fazer sua adaptação transcultural, sendo a equivalência semântica uma das etapas deste processo. O objetivo deste estudo foi avaliar a equivalência semântica entre o ECOHIS e a sua versão em português. A metodologia incluiu seis etapas: a tradução do ECOHIS, que envolveu duas tradutoras; um pré-teste, em que as duas traduções foram submetidas a vinte responsáveis por crianças de 2 a 5 anos de idade; a unificação das duas versões; duas retraduções feitas independentemente por dois tradutores; a revisão das traduções e retraduções e; a produção de um questionário final. As duas versões traduzidas mostraram-se bastante semelhantes e após a realização de todas as etapas obteve-se uma versão final do ECOHIS. O uso de traduções e retraduções que foram avaliadas por especialistas e incorporaram sugestões da população-alvo, permitiu obter uma versão brasileira do ECOHIS que possui equivalência semântica com o instrumento original.

Questionários; Qualidade de Vida; Pré-Escolar; Saúde Bucal


ABSTRACT

The North American instrument Early Childhood Oral Health Impact Scale (ECOHIS) was created to assess the oral health-related quality of life of preschool children and their families. Its use in Brazil requires prior cultural adaptation, and semantic equivalence is one step in this process. The objective of this study was to evaluate the semantic equivalence between the ECOHIS and its Brazilian version. The methodology included six steps: translation of the ECOHIS into Portuguese, done by two translators; a pre-test, in which the two translations were tested in a group of 20 parents/guardians of children 2-5 years of age; unification of the two versions; two back-translations done independently by two translators; review of the translations and back-translations; and production of a final version of the questionnaire. The two translated versions were very similar, and after completion of all steps a final version of the ECOHIS was obtained. The use of translations and back-translations carefully evaluated by experts and incorporating suggestions from the target population allowed the development of a Brazilian version of the ECOHIS that is semantically equivalent to the original instrument.

Questionnaires; Quality of Life; Preschool Children; Oral Health


 

 

Introdução

De acordo com o conceito ampliado de saúde adotado pela Organização Mundial da Saúde em 1948 1, "estado de completo bem-estar físico, mental e social e não, meramente, a ausência de doença ou enfermidade", ter saúde bucal não se restringe a estar livre de doenças dentais ou bucais, pois, deve-se considerar tanto a função quanto o bem-estar físico, psicológico e social relacionados aos dentes e à boca. Portanto, as repercussões dos problemas na cavidade bucal também devem ser avaliadas sob essa perspectiva, entendendo-se que, quando a saúde bucal está comprometida, a saúde geral e a qualidade de vida também podem ser adversamente afetadas 2.

Apesar dos avanços recentes na compreensão do significado da saúde bucal para a vida dos indivíduos e das comunidades nas quais eles vivem, a avaliação do estado de saúde bucal em níveis individual e coletivo ainda é predominantemente realizada pelo emprego de indicadores clínicos, que verificam apenas a presença/ausência de doença ou a sua gravidade. Já existem, entretanto, instrumentos de medida que permitem determinar os efeitos diretos e indiretos - que podem variar de uma deficiência até uma desvantagem social - dos problemas bucais sobre a vida das pessoas 3,4. Esses instrumentos, desenvolvidos sob a forma de questionários, complementam a informação obtida a partir da aplicação dos indicadores clínicos tradicionais, e são chamados de indicadores sócio-dentais ou de avaliação da qualidade de vida associada à saúde bucal 5.

Entretanto, dos instrumentos existentes para mensurar a qualidade de vida relacionada à saúde bucal, a maioria foi desenvolvida para adultos ou idosos, havendo assim, uma carência de instrumentos voltados para crianças, principalmente para as com idade pré-escolar. Crianças menores de seis anos de idade são afetadas, com relativa freqüência, por cárie dentária, traumatismos dentários, problemas de erupção dentária, patologias dos tecidos moles da boca e oclusopatias. Porém, praticamente não existe informação a respeito das possíveis conseqüências funcionais, emocionais, sociais e econômicas desses problemas para a vida dessas crianças e de suas famílias 6,7.

Bavhna Talekar Pahel, R. Gary Rozier e Gary D. Slade, pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte (Chapel Hill, Estados Unidos), criaram o instrumento Early Childhood Oral Health Impact Scale (ECOHIS) para avaliar a qualidade de vida relacionada à saúde bucal de crianças pré-escolares 8. O ECOHIS foi desenvolvido a partir da seleção de 13 itens, oriundos dos 36 que compõem o questionário Child Oral Health Quality of Life Instrument (COHQOL) 9. Esses itens foram considerados os mais relevantes para mensurar o impacto dos problemas bucais sobre a qualidade de vida de pré-escolares. Desses 13 itens, nove avaliam o impacto dos problemas bucais sobre a criança (subescala da criança) e quatro avaliam o impacto dos problemas bucais da criança sobre a sua família (subescala da família). O questionário foi testado em uma amostra de 295 responsáveis por crianças americanas de cinco anos de idade, e os pesquisadores verificaram que havia correlação entre o estado de saúde bucal das crianças, avaliado segundo a percepção dos entrevistados, e os escores da subescala da criança (rs = 0,41, p < 0,01) e os escores da subescala da família (rs = 0.30, p < 0,01) do ECOHIS. A consistência interna foi confirmada (alfa de Cronbach = 0,91 e 0,95 para as subescalas da criança e da família, respectivamente), e o instrumento mostrou boa estabilidade no teste-reteste (ICC = 0,84). O teste-reteste foi administrado em uma amostra selecionada por conveniência (N = 55) e o intervalo entre as aplicações do questionário foi de 3 semanas. Assim, foi demonstrado que o instrumento ECOHIS americano era válido e confiável 8.

As bases de dados MEDLINE e LILACS não registram, até o presente momento, nenhum questionário de qualidade de vida relacionado à saúde bucal para crianças com idade pré-escolar na língua portuguesa. Dentro desse contexto, e diante da necessidade de avaliar o impacto dos problemas bucais sobre a qualidade de vida das crianças brasileiras com idades entre dois e cinco anos e de suas famílias, considerou-se pertinente realizar a tradução e adaptação para a língua portuguesa do ECOHIS.

Segundo Guillemin et al. 10, a adaptação de sistemas de medidas preexistentes apresenta vantagens como:

• Fornecer um sistema de medidas comum para a investigação dos problemas relacionados à qualidade de vida dentro de diferentes contextos culturais;

• Oferecer um sistema de medida padrão para ser utilizado em estudos internacionais;

• Permitir a comparação entre grupos nacionais/culturais utilizando um sistema de medida padrão projetado e adaptado para medir o fenômeno transcultural.

Herdman et al. 11 elaboraram um modelo de avaliação da equivalência transcultural de instrumentos de mensuração da qualidade de vida associada à saúde a partir da perspectiva universalista, e propuseram que seis tipos de equivalência (conceitual, de itens, semântica, operacional, de mensuração e funcional) deveriam ser sempre examinados.

A equivalência semântica diz respeito à transferência de significados entre idiomas com a obtenção de efeitos similares sobre os indivíduos pertencentes a diferentes culturas 11. Geralmente, para obtê-la, recomendam-se os seguintes procedimentos: tradução, retradução, comparação da retradução com a versão original e revisão por júris e comitês de especialistas 10,12.

O presente estudo enfoca o processo de avaliação da equivalência semântica entre os itens constituintes do questionário ECOHIS norte-americano, em inglês, e a versão em português proposta para ser aplicada no Brasil.

 

Métodos

Antes de iniciar o processo de equivalência semântica procurou-se estabelecer a adequação do modelo conceitual, além da pertinência e relevância dos itens do questionário no contexto cultural brasileiro conforme recomendado por Herdman et al. 11. Uma equipe composta por cinco odontopediatras e um profissional com experiência em elaboração e adaptação de instrumentos de qualidade de vida, analisou o questionário quanto aos aspectos mencionados anteriormente. Cada item do instrumento original, em inglês, foi lido e debatido. As dúvidas remanescentes foram anotadas e posteriormente discutidas por um dos membros da equipe de pesquisa com os autores do instrumento original. Em seguida, foram entrevistadas quatro mães de crianças com idades entre 2 e 5 anos visando a identificar os principais efeitos dos problemas bucais para a vida das crianças e de suas famílias, e captar palavras empregadas pelas entrevistadas para descrever tais problemas. Procurou-se também verificar o entendimento de itens do questionário considerados de difícil compreensão pelo painel de especialistas. As entrevistas foram realizadas em uma unidade de saúde do setor público da cidade do Rio de Janeiro, empregando-se a metodologia de grupo focal. Os resultados da reunião realizada com os especialistas, os esclarecimentos dos autores do questionário original e as informações obtidas com base nas entrevistas com as mães foram discutidos pela equipe de pesquisa.

A metodologia empregada para a avaliação da equivalência semântica do ECOHIS foi baseada nas recomendações de Guillemin et al. 10, Ruperto et al. 13 e Tubert-Jeannin et al. 14, e incluiu as seguintes etapas (Figura 1): (i) tradução; (ii) pré-teste dos questionários traduzidos; (iii) unificação do questionário; (iv) retradução; (v) revisão das traduções e retraduções; e (vi) produção de um questionário síntese.

Tradução

A tradução do questionário para o português foi realizada de forma independente por duas brasileiras, cujo idioma materno era o português e que possuíam um amplo domínio da língua inglesa. As duas tradutoras foram informadas sobre os objetivos do questionário e instruídas a utilizarem termos que pudessem ser compreendidos por pessoas com poucos anos de estudo (nível elementar), ou seja, termos usados na vida cotidiana da população brasileira. A primeira versão (T1) foi realizada por uma tradutora profissional e a segunda (T2) por uma odontopediatra fluente no idioma inglês.

Pré-teste dos questionários traduzidos

Um pré-teste do questionário traduzido foi realizado com 20 responsáveis por crianças de 2 a 5 anos de idade, sendo que em 10 foi aplicada a versão do questionário da tradutora 1 (T1) e nos outros 10 a versão da tradutora 2 (T2). A amostra foi composta por mulheres com idade média de 31 anos e escolaridade média de 8 anos completos de estudo. A pesquisadora principal foi a única entrevistadora. Nesse pré-teste foi verificado se as perguntas do questionário captavam o impacto dos problemas bucais, investigando-se as causas dos impactos relatados. Além disso, foi indagado o significado de algumas palavras e expressões utilizadas no questionário, para saber se estas estavam sendo compreendidas e/ou se os entrevistados consideravam necessário substituir alguma palavra ou expressão para que a pergunta viesse a ser melhor compreendida pela população-alvo.

Unificação do questionário

Um grupo de especialistas, composto por cinco odontopediatras e um profissional com experiência em elaboração e adaptação de instrumentos de qualidade de vida, discutiu as duas versões traduzidas do questionário com base nos resultados das entrevistas realizadas com a população-alvo (pré-teste do questionário) e definiu como os itens seriam redigidos na versão unificada do instrumento em português.

Retradução

A versão unificada do instrumento em português foi retraduzida para o inglês por dois tradutores independentes, um britânico (R1) e outro americano (R2), os quais, apesar de terem como idioma materno o inglês, apresentavam um amplo domínio do português. Ao contrário das primeiras tradutoras, os retradutores não foram informados sobre os objetivos e conceitos envolvidos no questionário.

Revisão das traduções e retraduções

As duas versões retraduzidas do questionário ECOHIS foram enviadas por correio eletrônico para a apreciação dos autores do questionário original.

O grupo de especialistas foi novamente reunido para comparar a versão original do questionário ECOHIS com as versões retraduzidas, levando em consideração a opinião dos autores do questionário original, e para produzir uma versão final em português. Cada membro do grupo realizou uma avaliação independente e, posteriormente, as discrepâncias e os problemas detectados foram debatidos. O grupo de especialistas também revisou as opções de resposta que são apresentadas sob a forma de uma escala do tipo Likert.

Produção do questionário final

Com base nos resultados do debate, o grupo de especialistas propôs uma versão final do questionário em português para ser aplicada em um estudo piloto visando a avaliar outros tipos de equivalência.

 

Resultados

Equivalência conceitual e de itens

Com relação à pertinência e relevância dos 13 itens do questionário, o grupo de especialistas concluiu que os mesmos eram adequados à cultura brasileira, mas sugeriu que os autores do instrumento original fossem consultados para saber que tipos de problema pretendiam investigar ao utilizar o termo "jaws". Além disso, o grupo aconselhou que se pesquisasse junto à população-alvo os termos empregados para designar essa região anatômica. Foi sugerido também que se investigasse a necessidade de um novo item que permitisse captar o impacto dos problemas bucais sobre as atividades diárias das crianças que não freqüentam creche, jardim de infância ou escola. Os autores do questionário original esclareceram que ao utilizarem a palavra "jaws" pretendiam avaliar problemas associados aos ossos maxila e mandíbula. Em relação a testar um novo item, os autores concordaram, mas recomendaram que nenhum item do questionário original fosse excluído antes do estabelecimento da equivalência de mensuração. Durante a reunião com as mães verificou-se que a região anatômica correspondente ao termo "jaws" era compreendida como maxila e mandíbula pela população-alvo.

A equipe de pesquisa discutiu os resultados da reunião realizada com os especialistas, os esclarecimentos dos autores do questionário original e as informações obtidas baseando-se nas entrevistas com as mães. A conclusão foi de que seria conveniente manter todos os itens do questionário original e testar o novo item sugerido pelos especialistas na fase de avaliação da equivalência de mensuração.

Equivalência semântica

Na Tabela 1 estão apresentados os itens do questionário ECOHIS original, em inglês, os resultados provenientes das traduções e da unificação do questionário, e ainda os resultados provenientes das retraduções da versão unificada do questionário.

Tradução

As duas traduções demonstraram ser semelhantes entre si, apresentando apenas algumas pequenas discrepâncias com relação a termos específicos, como por exemplo, enquanto um tradutor traduziu "has your child" como "o seu filho(a)", o outro traduziu como "sua criança" (Tabela 1).

Pré-teste dos questionários traduzidos e unificação do questionário

As informações obtidas sobre a compreensão e aceitação de palavras e expressões utilizadas no questionário foram consideradas no processo de unificação.

Na unificação do questionário, optou-se por utilizar o termo "sua criança" em todas as perguntas, pois, diferentemente de "seu filho", o mesmo contemplaria também crianças órfãs e aquelas criadas pelos avós ou outros parentes.

Concluiu-se que as questões que perguntavam sobre o impacto dos problemas bucais da criança sobre os membros da família (itens 10, 11 e 12) seriam melhor compreendidas se a palavra "membro" fosse substituída por "pessoa" e a pergunta fosse formulada da seguinte forma: "você ou outra pessoa da família...".

Com relação às opções de resposta, decidiu-se utilizar a versão do questionário na qual os termos "often" e "very often" foram traduzidos respectivamente como "com freqüência" e "com muita freqüência". A palavra "sempre" foi considerada muito forte, uma vez que poderia ser entendida como "ter experimentado o impacto continuamente, por toda a vida, desde o nascimento".

Outras conclusões do grupo de especialistas, após a análise dos resultados do pré-teste em relação a cada item, são apresentadas a seguir.

• Na subescala da criança (itens de 1 a 9)

a) Itens 2, 3, 4, 6 e 8: não foram detectados problemas, os itens foram construídos utilizando-se as partes das duas traduções que demonstraram ser melhor compreendidas pela população-alvo, no pré-teste.

b) Item 1: a palavra "jaws" foi traduzida como arcadas e maxilares, porém como o grupo de especialistas havia mencionado a possibilidade de ambas não serem entendidas pela população-alvo, as duas formas foram empregadas no pré-teste. Constatou-se que a palavra "maxilares" foi melhor compreendida, embora nem todas as entrevistadas tenham identificado corretamente a região da boca comprometida por "dor nos maxilares". Resolveu-se empregar a palavra "maxilares" e colocar entre parênteses uma explicação: ossos da boca. O painel sugeriu ainda que, ao utilizar-se o questionário sob a forma de entrevista, o entrevistador deveria ser instruído a apontar para a região correta ao formular a pergunta.

c) Item 5: a ordem das palavras foi alterada para ficar coerente com a seqüência escolar no Brasil (creche, jardim de infância e escola). A palavra "pré-escola", embora tenha sido compreendida pela maioria das entrevistadas no pré-teste, foi trocada por "jardim de infância", pois, no Brasil, este é o nome pelo qual as pessoas se referem mais freqüentemente à pré-escola. Essa modificação foi sugerida pelas próprias entrevistadas na fase do pré-teste.

d) Item 7: a palavra "frustrated" foi traduzida como frustrada por ambas as tradutoras, porém, no pré-teste, as mães demonstraram não compreender o significado correto desta palavra. Foi explicado às entrevistadas o que se pretendia dizer com o termo "frustrado", tendo sido sugerido por uma delas a substituição de "frustrado" por "decepcionado". Então, após debate e consulta ao dicionário 15,16, resolveu-se trocar a palavra "frustrada" por "decepcionada".

• Na subescala da família (itens de 10 a 13)

a) Itens 10, 11, 12 e 13: os itens foram construídos utilizando-se as partes das duas traduções que demonstraram ser melhor compreendidas pela população-alvo, no pré-teste, porém, como citado anteriormente, resolveu-se apenas trocar a palavra "membro" por "pessoa". Após a modificação, os itens 10, 11 e 12 passaram a ser formulados da seguinte maneira: "você ou outra pessoa da família...".

Retradução

As duas retraduções foram semelhantes entre si, apresentando apenas algumas pequenas discrepâncias com relação a termos específicos, como por exemplo, enquanto um tradutor retraduziu "sua criança já faltou à creche, jardim de infância ou escola..." como "has your child missed creche, kindergarten or school" o outro retraduziu como "has your child ever missed daycare, nursery school or regular school".

Revisão das traduções e retraduções

As duas retraduções foram avaliadas pelos autores do questionário original. Eles recomendaram não substituir a palavra "frustado/frustrated" por "decepcionado/disappointed", no item sete, pelo fato destas palavras não possuírem significados idênticos na língua inglesa. Porém, como argumentamos que a palavra "frustrado" não foi bem compreendida pela população estudada, os autores do questionário americano sugeriram que o termo fosse omitido e que se mantivesse na redação do item apenas o termo "irritado".

Ao realizar a revisão das traduções e retraduções, o grupo de especialistas detectou diferenças entre algumas palavras do questionário original e as versões retraduzidas devido às alterações efetuadas nas etapas anteriores. Ao revisar as opções de resposta, o grupo de especialistas considerou que existia equivalência com as respostas do questionário original (Tabela 1).

Produção do questionário final

Obteve-se, portanto, uma versão final do questionário ECOHIS em português a ser testada em relação à validade e à confiabilidade (Tabela 2).

 

Discussão

Um instrumento só pode ser considerado válido se for capaz de captar adequadamente determinado conceito subjacente. Assim, um instrumento traduzido deve ser capaz de obter na cultura para a qual está sendo adaptado o mesmo efeito que o instrumento original tem no contexto em que foi criado. A falta de equivalência transcultural compromete a validade das informações coletadas, impossibilitando a utilização do instrumento para estudar um conceito corretamente 17.

Para se obter uma versão brasileira, em português, válida e confiável do questionário ECOHIS, há que se percorrer uma série de etapas e a avaliação da equivalência semântica é apenas uma delas. Apesar deste trabalho ter como objetivo principal relatar o processo utilizado para se alcançar a equivalência semântica entre o ECOHIS brasileiro e o original norte-americano, não deve-se desconsiderar a pertinência de verificar-se também a equivalência conceitual e de itens no processo de adaptação transcultural de um instrumento. Um mesmo grupo de especialistas participou das avaliações desses três tipos de equivalência e só partiu-se para a equivalência semântica depois de concluir-se que as equivalências conceitual e de itens estavam asseguradas. Em virtude de ter permanecido a dúvida com relação à possibilidade de captação do impacto produzido pelos problemas bucais e tratamentos odontológicos sobre a rotina diária de crianças que não freqüentam escola, um novo item foi adicionado após a obtenção da concordância dos autores do instrumento original. Vale ressaltar ainda que nessa etapa os aspectos de operacionalização do questionário também foram analisados, tendo-se observado a necessidade de realizar-se algumas alterações. O questionário original foi desenvolvido para ser autopreenchido pelo respondente. Porém, considerando-se o baixo nível de escolaridade de grande parte da população brasileira, optou-se por preparar o questionário para ser aplicado sob a forma de entrevista. Em função disso, as instruções do questionário brasileiro foram modificadas para proporcionar aos entrevistados orientação adequada ao novo método operacional. O questionário final com os 13 itens originais e mais um sugerido pelo grupo de especialistas foi avaliado quanto à equivalência de mensuração em um outro estudo, no qual se buscou verificar as propriedades psicométricas (consistência interna, validade de construto, e confiabilidade teste-reteste) do ECOHIS brasileiro. Os resultados desse estudo serão objeto de uma publicação futura.

Apesar de termos obtido duas traduções do ECOHIS semelhantes, consideramos muito importante que no processo de adaptação transcultural de instrumentos de qualidade de vida associada à saúde bucal seja produzida mais de uma versão traduzida, e que estas versões sejam pré-testadas antes de serem unificadas. Essa estratégia permite confrontar a opinião de especialistas com a percepção da população leiga na qual se pretende que instrumento seja realmente aplicado, viabilizando a utilização de expressões mais apropriadas ao contexto de utilização do instrumento. Também é razoável que se consulte os idealizadores do instrumento original, caso alguma modificação importante pareça ser necessária. No presente trabalho, esse recurso evitou que se introduzisse em um dos itens do questionário a palavra "desapontado" em substituição a "frustrado", porque, no julgamento dos autores do ECOHIS original, tal modificação despertaria nos respondentes brasileiros um sentimento diferente daquele que seria obtido entre os norte-americanos com o termo original em inglês, "frustrated".

Finalizando, deve-se enfatizar que o processo de avaliação da equivalência semântica na adaptação transcultural de instrumentos de qualidade de vida associada à saúde bucal deve ter uma base conceitual e se apoiar em metodologias criteriosamente definidas. Apesar de ser trabalhoso e dispendioso, esse processo proporciona benefícios indiscutíveis ao gerar um instrumento que permite obter informações, de fato, válidas.

 

Colaboradores

F. C. Tesch realizou a busca bibliográfica e participou da organização, redação e edição final do artigo e da pesquisa de campo. B. H. Oliveira e A. Leão contribuíram para a escolha do tema, organização, redação, correção e edição final do artigo.

 

Agradecimentos

F. C. Tesch foi parcialmente apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os autores agradecem a Fernanda Barja-Fidalgo, Gisele Caldas Alexandre, Maria Angelina Oliveira, Sônia Marçal e Marly Miller pelas valiosas contribuições como participantes do grupo de especialistas ou tradutores no processo de avaliação da equivalência semântica do ECOHIS brasileiro.

 

Referências

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Correspondência
F. C. Tesch
Departamento de Odontologia Preventiva e Comunitária
Faculdade de Odontologia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Boulevard 28 de Setembro 157
Rio de Janeiro, RJ - 20551-030, Brasil
fatesch@hotmail.com

Recebido em 13/Set/2007
Versão final reapresentada em 28/Nov/2007
Aprovado em 21/Dez/2007

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br