RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Luiz Gonzaga Godoi Trigo

Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. trigo@usp.br

 

 

TRAVESTI: PROSTITUIÇÃO, SEXO, GÊNERO E CULTURA NO BRASIL. Kulick D. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. 280 pp.

ISBN: 978-85-7541-151-3

O livro do antropólogo norte-americano Don Kulick, é uma profunda análise de campo sobre as travestis de Salvador, Bahia, Brasil, realizada em meados da década de 90. O livro foi inicialmente publicado nos Estados Unidos, e depois no Brasil pela Editora Fiocruz. O autor é professor de antropologia e diretor do Center for the Study of Gender and Sexuality, New York University.

O texto é importante por várias razões. As pessoas vêem as travestis nas ruas, na televisão e na mídia em geral, mas poucos fazem idéia de como estas pessoas vivem, o que pensam e qual a sua trajetória pessoal. Kulick viveu entre elas em uma humilde casa perto do Pelourinho, no centro de Salvador. Tornou-se um observador neutro, até mesmo confidente de algumas, e conseguiu observar seu modo de vida, conhecer suas idéias, sonhos e problemas, reais ou imaginários.

O livro é dividido em cinco partes: A Vida das Travestis em Contexto; Virando Travesti; Um Homem em Casa; O Prazer da Prostituição; e Travesti, Gênero, Subjetividade. O texto é claro, objetivo, respeita o vocabulário das entrevistadas e consegue, por meio de uma articulação entre argumentos, proposições e análises, tecer uma linha explicativa do mundo das travestis sem que preconceitos ou apologias o contaminem.

As travestis são homens, mas exigem ser tratadas no feminino. Vestem-se de mulheres, tomam hormônios ou aplicam silicone para parecer mais mulher, porém, no ato sexual com seus clientes muitas vezes fazem o papel ativo. São femininas na aparência e másculas em várias atitudes, podendo chegar à violência para se defender. Se o mundo homossexual masculino já foi razoavelmente estudado por sociólogos, educadores, psicólogos, historiadores, antropólogos, literatos e profissionais da área da saúde, as travestis permanecem uma incógnita contraditória para muitas pessoas, com poucos estudos científicos publicados no país. Elas são homossexuais, aliás, consideram-se os mais corajosos e genuínos, e não admitem mudar de sexo. Possuem ética e moral próprias, que desenvolvem em seus grupos de vivência. Prostituem-se e, por outro lado, "bancam" namorados para ter ao seu lado um homem, pagando-lhe casa, roupas, alimentação e diversão. Vivem na marginalidade social e no falso glamour existencial. Hoje, são símbolos em vários países europeus, ao lado das prostitutas e michês, da liberalidade e exuberância sexual brasileira.

Em vários pontos do livro (p. 151 e 196-202), Kulick avança na discussão conceitual e metodológica ao analisar um ponto freqüentemente escamoteado ou distorcido pelos analistas: a questão do prazer. A prostituição travesti é, além de uma fonte de renda, uma experiência prazerosa e recompensadora. É um trabalho visto como qualquer outro e é nesse campo que elas são reconhecidas socialmente. Há uma crítica lúcida e oportuna (p. 196) sobre a ausência de prazer que as prostitutas teriam em seu trabalho e que "o sexo colocado à venda torna-se necessariamente degradante e desagradável". Isso nem sempre pode ser considerado verdadeiro, seja com prostitutas, michês ou travestis, mas neste caso específico, o autor elabora de forma sólida a postura de que o prazer é uma possibilidade real no relacionamento entre travesti e cliente.

É importante analisar a dimensão do prazer para evitar moralismos e preconceitos em relação à atividade sexual profissionalizada, ou seja, a prostituição. Para os profissionais de educação, saúde pública, cientistas sociais e políticos, conhecer as nuances da vida desse segmento social ajuda a preparação de suas bases de trabalho junto a estas populações e diminui a resistência provocada pela ignorância ou discriminação.

Um outro ponto importante é a análise do momento de entrada na atividade de prostituição e o processo para que os meninos ou adolescentes assumam a vida, corpo e mente de uma travesti. Os diálogos reproduzidos mostram a visão desses meninos, extasiados e amedrontados frente a uma nova dimensão existencial. O prazer e o dinheiro, a possibilidade de ganhar a vida vendendo seu corpo, as ilusões ao lado da realidade brutal do cotidiano são mostrados pelo ponto de vista e palavras das travestis.

O tópico sobre Os Clientes (p. 171-180) toca em um assunto comentado mas geralmente visto como "lenda urbana" ou curiosidade: os clientes das travestis são homossexuais enrustidos que não querem sair com um homem e procuram uma "fêmea fálica" ou buscam prazeres estranhos ao serem penetrados por um homem com corpo de mulher? O relato aponta que esses clientes, em sua maioria, gostam de se relacionar de todas as maneiras com as travestis, inclusive como agentes passivos no sexo. Esse imaginário fica evidenciado junto à população, especialmente quando há escândalos envolvendo celebridades e travestis, o que garante espaço privilegiado na mídia. Se o homossexual que se prostitui, o michê, é alvo de diversas pesquisas, textos literários, filmes e peças de teatro e sensibiliza o imaginário de algumas pessoas, a figura da travesti eleva esta sensibilidade a patamares mais altos.

A comparação que as travestis fazem entre si e as mulheres é outro tópico que envolve as questões de gênero e de sexualidade comercial. "As idéias sobre travestis e mulheres também se manifestam em uma relação tensa, problemática e antagônica; uma relação em que as travestis são o reflexo, mas as mulheres são o espelho" (p. 214). Outra comparação é com os homens heterossexuais e homossexuais. Um parágrafo fundamental é: "Assim como as travestis não estão lutando para conquistar a condição de mulher, elas também não rejeitam a identidade e também não desejam a ambigüidade. Sua luta é pela homossexualidade. Elas almejam incorporar a homossexualidade. E desejam fazer isso da maneira mais completa, mais perfeita e mais bela possível. Ao passo que outros indivíduos do sexo masculino denegam e disfarçam o desejo pelo mesmo sexo, as travestis abraçam esse desejo e se deliciam com ele" (p. 233).

Desejo, prazer, identidade e subjetividade são amplamente comentados no livro. Se a questão "por que alguns homossexuais viram travestis?" não é claramente respondida - e talvez nem possa - a reflexão e descrição desse estilo de vida tão marcante no Brasil alcança novos saberes no texto de Kulick. Apesar de passados dez anos da pesquisa de campo, a temática mantém sua relevância, inclusive discutindo o trabalho dessas travestis na Europa, especialmente na Itália, onde são marcas registradas da exportação sexual brasileira.

Atingindo maior visibilidade social no contexto das lutas das lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros (LGBT) no Brasil e em vários países do mundo, as travestis são um segmento social que incorpora um preconceito ainda maior, graças à sua visibilidade e exposição pública (afinal um homossexual masculino ou feminino pode disfarçar sua opção, o que é quase impossível para uma travesti). Entender sua mente e vida é importante para as questões que envolvem cidadania, luta contra o preconceito, inserção social e estudos sobre sexualidade e saúde pública. Mas um dos pontos principais está no subtítulo do livro: cultura. A cultura LGBT no Brasil ainda possui traços não devidamente explorados e discutidos, e Kulick se propõe a contribuir para que estas lacunas sejam minimizadas. Entender a cultura dos diversos segmentos sociais implica ampliar seu espaço de cidadania e participação social e política. Ao lado, é claro, do prazer em viver de acordo com suas convicções, algo importante em uma sociedade pluralista e democrática e uma prática constante, para garantir esses espaços e manter a dignidade própria de cada grupo social.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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