ARTIGO ARTICLE

 

Comparação do acesso aos serviços de saúde bucal em áreas cobertas e não cobertas pela Estratégia Saúde da Família em Campina Grande, Paraíba, Brasil

 

Comparison of access to Oral Health Services between areas covered and not covered by the Family Health Program in Campina Grande, Paraíba State, Brazil

 

 

Renata de Andrade Cardoso Pinto Rocha; Paulo Sávio Angeiras de Goes

Programa de Pós-graduação em Odontologia, Universidade de Pernambuco, Camaragibe, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Apesar de existirem vários trabalhos sobre o acesso aos serviços de saúde, poucos são os que tratam do acesso aos serviços de saúde bucal. O objetivo desta pesquisa foi avaliar fatores associados ao acesso aos serviços de saúde bucal em Campina Grande, Paraíba, Brasil, comparando as áreas cobertas e não cobertas pela Estratégia de Saúde da Família (ESF). Constituiu-se em um estudo transversal de base populacional, com uma amostra composta por pessoas acima de 18 anos (n = 827), oriundas de setores censitários urbanos que incluíam unidades de saúde do SUS, estratificados em áreas cobertas e não cobertas pela ESF. Na análise estatística, foram utilizados o qui-quadrado de Pearson e regressão logística. Aqueles que residiam em áreas não cobertas pela ESF obtiveram 1,5 vez mais chance de ter acesso (OR = 1,5; IC95%: 1,1-1,9; p = 0,004) aos serviços de saúde bucal quando comparados aos que residiam em áreas cobertas pela ESF. No entanto, essa probabilidade diminuiu, perdendo a sua significância (OR = 1,1; IC95%: 0,8-1,6; p = 0,337) após o resultado ser ajustado para sexo, idade, renda individual, escolaridade e autopercepção de saúde. Não foi evidenciada a associação entre residir em uma área coberta pela ESF ou não coberta com o acesso aos serviços de saúde bucal.

Acesso aos Serviços de Saúde; Saúde Bucal; Qualidade da Assistência à Saúde, Acesso e Avaliação; Programa Saúde da Família


ABSTRACT

Although there are various studies on access to health studies, few have dealt specifically with access to oral health services. The aim of the current study was to evaluate factors associated with access to oral health services in Campina Grande, Paraíba State, Brazil, comparing the areas covered versus not covered by the Family Health Program (FHP). This was a cross-sectional, population-based study with a sample consisting of individuals over 18 years of age (n = 827) from urban census tracts that included health units of the Unified National Health System (SUS), stratified in areas covered versus not covered by the FHP. The statistical analysis used Pearson's chi-square and logistic regression. Individuals living in areas not covered by the FHP had 1.5 times greater odds of having access to oral health services (OR = 1.5; 95%CI: 1.1-1.9; p = 0.004) when compared to those living in areas covered by the FHP. However, this probability decreased, losing its significance (OR = 1.1; 95%CI: 0.8-1.6; p = 0.337), after adjusting for gender, age, individual income, schooling, and self-perceived health. Thus, no association was proven between coverage versus non-coverage by the FHP and access to oral health services.

Health Services Accessibility; Oral Health; Health Care Quality, Access and Evaluation; Family Health Program


 

 

Introdução

A saúde bucal tem reconhecida importância como componente da qualidade de vida das pessoas, no entanto, uma parcela importante da população brasileira não tem acesso às ações e aos serviços odontológicos 1. Embora se tenha constatado uma redução no número de pessoas que nunca haviam ido ao dentista, que foi maior entre os residentes de áreas rurais, cujo percentual passou de 32% em 1998, comparando-se com 28% em 2003 e na classe de rendimento mensal familiar até um salário mínimo, que passou de 36% para 31% respectivamente 2, ficou também evidenciado, em 2003, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que 15,7% dos entrevistados nunca haviam ido ao dentista.

Apesar dos esforços feitos nos últimos anos, a disparidade entre ricos e pobres no acesso aos serviços de saúde bucal é alta. Enquanto 31% das pessoas com rendimento mensal familiar de até um salário mínimo afirmaram nunca ter feito uma consulta odontológica, essa proporção caiu para 3% entre os que tinham rendimento mensal familiar superior a vinte salários mínimos.

Uma conseqüência disso é o alarmante quadro epidemiológico em saúde bucal revelado pelo levantamento das condições de saúde bucal da população brasileira de 2002-2003 (Projeto SB Brasil) 3, em que quase 27% das crianças de 18 a 36 meses apresentaram, pelo menos, um dente decíduo com experiência de cárie dentária, sendo que a proporção chega a quase 60% aos de cinco anos de idade. Na idade de 12 anos, 70% delas apresentam experiência de cárie na dentição permanente, e dos adolescentes, de 15 a 19 anos, essa marca atinge cerca de 90%.

Na alta prevalência de cárie, ainda, estão presentes marcadas desigualdades regionais. Crianças brasileiras de 12 anos de idade e adolescentes de 15 a 19 anos apresentam, respectivamente, em média, 2,8 e 6,2 dentes com experiência de cárie dentária. Para essas idades, os menores índices encontram-se nas regiões Sudeste e Sul, enquanto médias mais elevadas foram encontradas nas regiões Nordeste e Centro-Oeste. No que se refere a adultos, o CPOD médio foi de 20,1 na faixa etária de 35 a 44 anos e 27,8 na de 65 a 74. Destaca-se o fato de que o componente perdido foi responsável por cerca de 66% do índice no grupo de 35 a 44 anos e quase 93% no grupo de 65 a 74 anos 3.

Apesar dos avanços recentes (gerados por políticas públicas implementadas nos últimos anos, tais como a inclusão da equipe de saúde bucal no Programa Saúde da Família, implantação dos Centros de Especialidades Odontológicas [CEOs], pelo Ministério da Saúde 3,4), ainda são necessários esforços para que seja efetivada uma política ampla capaz de reduzir desigualdades sociais no acesso, no processo do cuidado e na avaliação dos resultados epidemiológicos da área de saúde bucal. A problemática da demanda pública aos serviços odontológicos ainda é elevada 5, sendo o setor privado responsável por uma parcela significativa da cobertura a esses serviços 1,2,3,6.

Embora existam vários trabalhos na área do acesso aos serviços de saúde 7,8,9,10,11,12, são ainda escassas as pesquisas do acesso aos serviços de saúde bucal no Brasil 1,13,14,15, sendo praticamente raros os trabalhos publicados após a inserção da saúde bucal na Estratégia Saúde da Família (ESF) 16,17. Ante o exposto, este estudo pretendeu identificar os fatores que interferem no acesso dos serviços de saúde bucal no Município de Campina Grande, Paraíba, comparando as áreas cobertas e não cobertas pela ESF, utilizando, como modelo de análise, o proposto por Andersen & Newman 18.

 

Material e método

Este estudo pode ser classificado como quantitativo, no qual é usado o método epidemiológico, com um desenho do tipo transversal, de base populacional. Desenvolvido com uma amostra aleatória e representativa da população dos setores censitários urbanos que incluíam unidades de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) da cidade de Campina Grande.

Foram selecionadas, aleatoriamente, para compor a amostra, pessoas acima de 18 anos residentes na cidade de Campina Grande. Para o cálculo do tamanho da amostra, foi utilizada a fórmula de comparação de duas proporções, com um poder de 80% para detectar diferenças quando produzir uma odds ratio (OR) de 1,5, com um erro de 2%. Foi utilizada, como parâmetro para o cálculo, a prevalência de acesso encontrada em estudo anterior de Pinheiro et al. 9. Calculou-se uma amostra mínima de 626 indivíduos, sendo acrescidos a esse número 20% para dar conta das perdas e 20% para potencializar o efeito do estudo. Assim, o total da amostra desta pesquisa foi de 878 indivíduos, chegando-se a uma amostra final de 827 indivíduos, com 5,8% de perdas.

Foram utilizados os setores censitários, com base nas informações do programa Estatcart versão 2.0 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro, Brasil), com resultados do universo do Censo Demográfico de 2000.

Foram sorteados dez setores censitários a partir dos setores elegíveis (aqueles que incluíam, pelo menos, uma unidade de saúde do SUS em sua área), que, neste estudo, foram 63 setores censitários com unidades de saúde do SUS, porém, sem cobertura da ESF e 29 com ESF. Os setores censitários selecionados de áreas cobertas pela ESF tinham equipes de saúde bucal implantadas há, pelo menos, dois anos.

A fim de garantir a mesma proporção de indivíduos para a amostra para cada uma das áreas cobertas e não cobertas, a mesma foi obtida de forma estratificada de setores considerados cobertos (50%) e não cobertos pela ESF (50%).

Após a seleção de cada setor, foram listados todos os domicílios, e, sorteado o número de domicílios a ser visitado, sendo o início da seleção do primeiro domicílio aleatório e, a partir daí, os demais de forma sistemática: sim, não. Em cada domicílio, foram listados os maiores de 18 anos, e, sorteado um indivíduo para responder ao formulário.

Os dados foram coletados no período de 10 de março de 2006 a 18 de maio de 2006. A técnica foi a de observação direta intensiva por meio de formulário. Todos os indivíduos que participaram do estudo assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, com base na Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

Os dados foram coletados a partir da agregação de formulários previamente validados 2,19,20. Foi realizado um estudo piloto com o objetivo de estabelecer a calibração intra-examinador e avaliar a adequação do instrumento de pesquisa. O controle de qualidade dos dados foi realizado pela análise de reprodutibilidade (reteste). Para realizar esta avaliação, 27 indivíduos foram re-entrevistados, utilizando-se, para isso, o coeficiente de correlação intraclasse para avaliação de concordância entre variáveis ordinais, tendo os valores variado de 0,64 a 1,00, e a aplicação do teste Kappa, para variáveis dicotômicas, tendo sido obtido o valor de 0,7, que segundo Landis & Koch 21 é uma concordância substancial.

Considerando o tempo de implantação das equipes de saúde bucal nos últimos dois anos, foi criada a variável acesso aos serviços de saúde, sendo considerado positivo quando houvesse uma afirmativa de ter consultado o dentista nos últimos dois anos.

Neste estudo, o conceito de acesso aos serviços de saúde foi considerado como sendo a entrada do usuário no serviço 22.

O modelo proposto por Andersen & Newman 18 tem sido o mais aplicado nos estudos de utilização e acesso. Nesse modelo, cuja origem é o trabalho de Andersen de 1968 23, o uso de serviços é dependente de determinantes individuais agrupados nos fatores de predisposição, fatores de facilitação (capacitantes) e necessidades de saúde. As variáveis de predisposição compreendem aquelas que descrevem a propensão dos indivíduos a utilizarem os serviços (idade, sexo, estado civil/estado marital, escolaridade), as de facilitação/capacidade referem-se aos meios com que os indivíduos contam para utilizar os serviços (renda do respondente, renda familiar, existência de plano de saúde, acesso à fonte regular de cuidado), e as de necessidade referem-se ao nível de enfermidade, que são uma das principais causas imediatas da utilização e busca pelos serviços (percepção do indivíduo em relação a sua condição de saúde).

As variáveis independentes foram agrupadas nos seguintes blocos: (i) fatores demográficos (sexo, idade, estado marital, local de residência/distrito sanitário, cobertura do PSF); (ii) fatores sócio-econômicos (escolaridade, casa/moradia, renda do respondente/individual, renda familiar); (iii) fatores da organização dos serviços (tipo de serviço); e (iv) fatores da condição de saúde bucal (autopercepção da saúde bucal, dor e grau de severidade da dor).

A análise dos dados foi realizada através do programa estatístico Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 11.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos), tendo ocorrido em duas etapas: uma descritiva e outra analítica. Na fase descritiva, foram feitas as distribuições de freqüência das variáveis quantitativas. Na fase analítica, primeiro, foram testadas as associações, utilizando-se o qui-quadrado de Pearson. Na segunda etapa da análise, dado a necessidade de se obter uma análise multivariada que permitisse o ajuste para o efeito de confundimento, as variáveis que foram estatisticamente significantes na primeira etapa foram levadas para uma análise de regressão logística. Devendo-se levar em conta que as medidas de OR produzidas por essa técnica podem superestimar as associações. Para todas as análises, foi considerado como significante o nível de 5%.

Esta pesquisa foi submetida à análise do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade de Pernambuco (UPE), com a finalidade de obtenção de um parecer favorável ao desenvolvimento do estudo em questão (parecer concedido sob nº. 002/2006). Os princípios éticos contidos na Declaração de Helsinki foram cumpridos nesta pesquisa.

 

Resultados

Foi observado que 49,9% (413) dos indivíduos estavam em área coberta pela ESF, enquanto que 50,1% (414) pertenciam à área não coberta pela ESF, mas dispunham de, pelo menos, alguma unidade de saúde vinculada ao SUS. Com as variáveis demográficas, verificou-se que 58,6% pertenciam ao sexo feminino. A idade média dos respondentes foi de 41 anos (desvio-padrão - DP= 17,79), e 61,8% eram casados ou tinham uma "união estável".

Em relação aos indicadores sócio-econômicos de renda, observou-se que a amostra é predominantemente de baixa renda: quase metade da amostra, 48,2%, apresentou rendimento familiar de até um salário mínimo. Quando a renda foi investigada individualmente, isto é, apenas a renda do respondente, 82,3% da população estudada apresenta renda individual de até um salário mínimo, e apenas 3,8% dos entrevistados apresentam renda superior a cinco salários. Quanto ao nível de escolaridade, sua maioria (58,9%) é formada por pessoas sem escolaridade (analfabetas) ou com menos de sete anos de estudo (Ensino Fundamental/1º grau incompleto). Apenas 10,8% fazem universidade ou possuem pós-graduação. No que se refere à moradia, 71,8% possuem casa própria.

Levando em consideração a morbidade referida analisada neste estudo, 51% dos indivíduos responderam que essa saúde bucal estava comprometida, isto é, apresentava-se "mais ou menos" ou "ruim" no aspecto da autopercepção da saúde bucal. Quanto à satisfação com a aparência dos dentes, 51,5% consideram "aceitável" ou "insatisfeito" com essa aparência, 24% (166 pessoas) sentiram dor nos últimos seis meses, e o grau de severidade dessa dor ficou nos dois opostos "leve" 24,7% e "horrível" 22,3%.

Um percentual de 40,6% só visitou o dentista há três ou mais anos, e 2,3% da amostra nunca foi ao dentista. Em relação ao tipo de serviço utilizado, o percentual de indivíduos que procuram dentistas do serviço público (34,5%) ficou bem aquém daqueles que procuram dentistas particulares ou de convênios/planos de saúde (64,3%). Daqueles que utilizam o serviço público, apenas 6,8% tiveram acesso ao dentista do PSF, enquanto que 27,7% usaram o serviço odontológico público de outros setores, como: centros de saúde, unidades básicas de saúde, faculdade de odontologia, hospital universitário.

O percentual de indivíduos que tiveram acesso aos serviços de saúde bucal, nos últimos dois anos, encontrado nesta pesquisa, foi de 57,07%; percentual esse que, ao ser avaliado por tipo de serviços recebido, constatou-se que 64,3% desse acesso ocorreram no setor privado.

O modelo de estudo proposto e a ser testado mostrou que as variáveis "indivíduos que têm cobertura de PSF"; "distrito sanitário ao qual o indivíduo reside/local de residência"; "renda do respondente" e a "renda familiar", que se enquadram nas variáveis de facilitação, dentro do modelo de estudo, apresentaram associação positiva e estatisticamente significante com o acesso obtido aos serviços públicos de saúde bucal (Tabela 1).

Além dessas, as variáveis "idade"; "estado marital/estado civil" e "escolaridade", que pertencem à categoria das variáveis de predisposição ao uso e acesso aos serviços de saúde, no modelo de estudo deste trabalho, também se mostraram associadas ao acesso aos serviços públicos de saúde bucal, como pode ser verificado pelo nível de significância (ver valor de p na Tabela 1).

Entre as variáveis ligadas à condição de saúde, à dor de dente referida nos últimos seis meses e à autopercepção da saúde bucal também se mostraram associadas ao acesso (p < 0,001) respectivamente.

Dentro do modelo proposto, ainda foi encontrada uma outra variável estatisticamente significante em relação ao acesso obtido aos serviços públicos de saúde bucal: o tipo de serviço utilizado/dentista que geralmente os indivíduos usam. Variável essa diretamente relacionada aos fatores de organização dos serviços, tidos como fatores que se enquadram nas características de facilitação do acesso/utilização dos serviços de saúde (Tabela 2).

O modelo de regressão logística múltipla demonstrou que os indivíduos que residiam em áreas não cobertas pela ESF obtiveram 1,5 vez mais chance de ter acesso (OR = 1,5; IC95%: 1,1-1,9; p = 0,004) aos serviços de saúde bucal que os indivíduos que residiam em áreas cobertas. Essa probabilidade diminuiu, perdendo sua significância (OR = 1,1; IC95%: 0,8-1,6; p = 0,337) após o resultado ser ajustado para sexo, idade, renda individual, escolaridade e autopercepção de saúde. Os resultados finais desta análise demonstraram que o acesso à saúde bucal está fortemente associado ao sexo feminino (OR = 1,6; IC95%: 1,1-2,3; p = 0,004); menor idade - adolescentes (OR = 5,9; IC95%: 3,3-10,7; p < 0,001); renda individual igual ou maior a dois salários (OR = 2,8; IC95%: 1,5-5,2; p = 0,001) e escolaridade equivalente ao 2º Grau completo (OR = 2,6; IC95%: 1,6-4,3; p < 0,001) (Tabela 3).

 

Discussão

Assim como nos estudos de acesso aos serviços de saúde geral 7,8,9,10,11,12, as variáveis de predisposição, facilitação/capacidade e necessidade contribuíram para explicar o acesso aos serviços de saúde bucal neste trabalho.

No entanto, não foi evidenciada, pelo presente estudo, a associação entre residir em uma área coberta pela ESF ou não coberta com o acesso aos serviços de saúde bucal. O que não era de se esperar pela territorialidade das ações do programa 24.

As técnicas multivariadas de ajuste dos fatores de confusão, possibilitadas pelo emprego da regressão logística, permitiram demonstrar que a proporção de acesso maior nas áreas não cobertas pela ESF, detectada na análise bivariada, deixou de sê-la na medida em que foram ajustadas por renda e escolaridade. O que evidencia, dessa forma, que esse acesso, supostamente maior nas áreas não cobertas pela ESF, poderia ser fortemente explicado pelo sexo do indivíduo, renda e escolaridade e não propriamente uma limitação do programa (ESF), caracterizada, seja pela oferta organizada/programada dos serviços, seja pela recomendação do tratamento concluído adequador ou restaurador (TCA ou TCR) 24.

No entanto, ao refletir sobre o papel das equipes de saúde bucal da ESF na ampliação do acesso aos serviços de saúde, esse menor acesso às áreas cobertas pode ser explicado pela não adequação da formação profissional, pela influência dos fatores sócio-demográficos, como idade e renda e o direcionamento das políticas para grupos prioritários, principalmente crianças em idade escolar. Com relação à formação, pode-se considerar que a mesma está baseada fortemente no tecnicismo, no modelo biomédico 25, podendo comprometer essa estratégia, reduzindo o acesso, devido à inadequação no preparo dos recursos humanos que, em nível superior, são formados de maneira desvinculada das reais necessidades do país, precocemente direcionados para as especialidades e totalmente dissociados das características dos serviços em que deverão atuar 26.

No que concerne aos fatores sócio-demográficos, existiu forte associação entre "renda do respondente" e "renda familiar", encontradas neste estudo, o que tem sido confirmado em vários outros estudos que analisaram o acesso aos serviços de saúde 13,27,28, bem como a utilização dos mesmos 29,30 demonstrando uma associação positiva de que quanto maior a escolaridade, maior o acesso ou utilização dos serviços.

No Brasil, os estudos de acesso aos serviços de saúde geral têm mostrado a existência de iniqüidades, apesar dos caminhos já percorridos com a consolidação do SUS. Costa & Facchini 31, em Pelotas, no Sul do Brasil, constataram que as classes sociais mais baixas têm 25% menos chance de consultar o médico. Da mesma forma, Pinheiro & Travassos 7, no Rio de Janeiro, encontraram que o ingresso familiar per capita se associou positivamente com a utilização dos serviços de saúde na população de 60 anos ou mais.

No estudo de Barros & Bertoldi 1, foi verificado um diferencial considerável entre acesso aos serviços de saúde bucal e os diferentes grupos de renda, sendo identificado que a proporção de atendimentos odontológicos pelo SUS foi 16 vezes maior entre os mais pobres, porém esses utilizaram três vezes menos os serviços do que os mais ricos.

No entanto, não podemos deixar de considerar o fato de que os serviços privados ainda respondem por boa parcela do acesso aos serviços de saúde bucal, como encontrado também em outros inquéritos populacionais, a exemplo das PNADs 2,6 do Projeto SB Brasil 3, o estudo de Bambuí 13 e o de Barros & Bertoldi 1.

Apesar dos esforços feitos pela inserção da equipe de saúde bucal na ESF, de modo a ampliar o acesso aos serviços de saúde a partir de 2001, indicadores utilizados para avaliar a efetividade desses serviços em termos de acesso têm sido contraditórios 17.

Um outro fator fortemente associado ao acesso aos serviços de saúde bucal, no presente estudo, foi a idade, fato já evidenciado em outros estudos de saúde bucal 1,13,32, reforçando a teoria de que, com o avançar da idade, ocorre uma redução do acesso dessas pessoas aos serviços. Existem algumas explicações para esse fato. Para Barros & Bertoldi 1, esse quadro pode ser justificado pela diferença no financiamento do atendimento, pois, enquanto, nos grupos mais favorecidos, uma idade maior propicia mais recursos para o pagamento do atendimento; no grupo mais pobre, esse avanço na idade acaba por reduzir a oportunidade de acesso ao sistema público. O que faz dessa variável, ou seja, a idade, um importante fator de confusão entre a relação acesso aos serviços de saúde bucal e renda.

Justifica-se, ainda, o menor acesso da população adulta aos serviços odontológicos pela priorização da atenção às crianças em idade escolar mantida pelos serviços de saúde, excluindo da assistência odontológica grupos populacionais considerados "não prioritários", como os bebês de 0 a 3 anos, adultos, gestantes e idosos. Várias críticas são feitas a esse sistema de atendimento, dentre elas, o caráter excludente, pois se ocupa exclusivamente da população-alvo e não do conjunto da população exposta ao risco de adoecer 33.

Dois aspectos que conferem validade ao presente estudo podem ser ressaltados: a ratificação da associação entre o acesso aos serviços de saúde bucal e o sexo feminino, o que está em consonância com outros estudos da literatura 7,31,33,34,35, e a aproximação dos resultados desta pesquisa aos encontrados no Projeto SB Brasil. Apesar de os dados sobre acesso aos serviços de saúde bucal no Brasil terem variado de estudo para estudo, de acordo com a metodologia adotada, os dados disponíveis incluídos no Projeto SB Brasil, no qual é analisado o tempo de referência dos últimos dois anos, mostram que os dados do presente estudo possuem pequenas diferenças para a idade de 35 a 44 anos, em que o acesso foi menor no Projeto SB Brasil (60,37%), enquanto, neste estudo, foi de (65,7%). Na idade de 65 a 74 anos, o SB Brasil também foi menor (28,49%), enquanto que, neste estudo, foi de (32,5%). Porém, na idade de 15 a 19 anos, praticamente o acesso foi o mesmo, com diferença de menos de 1% entre as duas pesquisas.

Neste estudo, apesar de ser dada uma contribuição relevante ao modelo de atenção à saúde bucal do Município de Campina Grande, os resultados devem ser analisados considerando suas especificidades e limitações metodológicas.

Os estudos de utilização de serviços de base populacional, como este, apresentam vantagens sobre os de demanda, tendo em vista não só a possibilidade de se aferir a demanda espontânea real e a utilização dos serviços programados de forma organizada, como obter informações acerca daquele segmento que não é usuário dos serviços de saúde estudados 36,37.

Um problema que pode ocorrer quando se utiliza morbidade referida nos inquéritos domiciliares de saúde é a confiabilidade da informação, que depende da proporção de informantes secundários 38. O tamanho muito grande da amostra dificulta a volta do pesquisador ao domicílio, e a avaliação acaba sendo feita por moradores presentes no momento da entrevista 39. Neste estudo, foi feito um esforço no sentido de que o próprio respondente referisse suas afirmativas aos instrumentos propostos. Os fatores sócio-demográficos foram considerados os principais preditores do acesso aos serviços de saúde bucal em Campina Grande, entre os quais estão: sexo, idade, renda e escolaridade. Não existiu diferença no acesso aos serviços de saúde bucal de residentes em áreas cobertas e não cobertas pela ESF.

 

Colaboradores

R. A. C. P. Rocha participou da coleta, elaborou o banco de dados, participou da análise e redigiu o artigo. P. S. A. Goes delineou o estudo, realizou a análise dos dados e fez a revisão do artigo.

 

Agradecimentos

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

 

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Correspondência:
P. S. A. Goes
Programa de Pós-graduação em Odontologia
Universidade de Pernambuco
Rua Esmeraldino Bandeira 110
Recife, PE 52011-090, Brasil
psagoes@uol.com.br

Recebido em 19/Set/2007
Versão final reapresentada em 30/Abr/2008
Aprovado em 19/Mai/2008

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br