FÓRUM FORUM

 

Fórum. O desafio SUS: 20 anos do Sistema Único de Saúde. Posfácio

 

Forum. Twenty years of experience and the challenge with the Unified National Health System. Postscript

 

 

Silvia Gerschman

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 

Os 20 anos da Reforma Sanitária Brasileira nos predispõem não apenas a comemorar a histórica data em que o Sistema Único de Saúde (SUS) fica instituído por meio da Constituição Federal de 1988, mas também chamam à reflexão sobre o caráter complexo do capítulo da saúde da Carta e as suas condições de implementação na conjuntura destes últimos 20 anos, tão difícil e controversa, da vida política, econômica e social da Nação.

Os três trabalhos que vou debater a seguir - A Reforma Sanitária Brasileira Após 20 Anos do SUS: Reflexões 1; O Sistema Único de Saúde, 20 Anos: Balanço e Perspectivas 2; e Sistema Único de Saúde: Espaços Decisórios e a Arena Política de Saúde - expressam de maneiras diferentes e por vezes convergentes o alcance e percalços da implementação do SUS, sob a perspectiva da Reforma Sanitária, tal como estabelecido na Constituição. Nessa, o caráter da política de saúde se assemelha à retomada da tradição welfariana, não apenas sob uma perspectiva conceitual, mas também sob a perspectiva política da efetiva realização do direito social à saúde.

Depois de 20 anos desse processo, parece ser este o momento oportuno de estabelecer com clareza a distinção entre o SUS e a Reforma Sanitária Brasileira, e resignificar (Menicucci) o conteúdo político do SUS. Isso, como refere Cohn, não é apenas uma firula acadêmica, mas a real necessidade de se pensar politicamente o caminho percorrido e o que é necessário reformular no trajeto a percorrer na procura da Reforma Sanitária; fundamentalmente, readequar a dimensão técnica à social nos projetos para a saúde.

Poderíamos afirmar que o SUS é o instrumento/ferramenta que possibilitará, no desenho constitucional, aproximar o sistema de saúde brasileiro à cidadania social em saúde enquanto processo central para a consecução da Reforma Sanitária. O nosso melhor antídoto para a conjuntura política da globalização, leia-se o ajuste neoliberal que se impôs à soberania política das nações, é o caráter societário da Reforma Sanitária tal como consta na letra da Constituição de 1988.

Ao mesmo tempo, a Constituição expressa o mundo da vida real dos finais dos 80. Nesses, a existência consolidada politicamente do setor privado no sistema de saúde brasileiro é legitimada na Constituição, outorgando-se à provisão privada papel complementar ao sistema público, sem uma definição clara de papéis e atribuições que este ia desempenhar no SUS. Assim, no processo de implementação que se segue configura-se um sistema público e um subsistema privado de atenção à saúde. Menicucci sustenta que essa condição obedece à "fragilidade das suas bases de apoio... cujo resultado será a consolidação de um sistema híbrido - público e privado -, apesar da definição legal de um sistema único, público, universal e gratuito". Para Cohn, sob a perspectiva institucional a saúde, assim como a assistência e a previdência, formam parte de um sistema de proteção social híbrido tanto do ponto de vista da universalização como do ponto de vista do financiamento. Nos anos 90, houve um esvaziamento do papel do Estado no que se refere à sociedade e, tanto na análise/reflexão quanto na formulação de políticas e programas de saúde não se conseguiu diferenciar as dimensões do Estado enquanto "produtor de serviços, provedor do direito à saúde e regulador dos serviços públicos e privados".

Foi essa conjuntura da dominação neoliberal que imprimiu a sua marca na produção acadêmica e, pior ainda, na implementação e implantação do SUS. Como afirma Cohn, "não se trata de atribuir juízos de valor... mas resgatar o caráter reflexivo da produção do campo", que sob o rótulo de "tecnologia e inovação" possibilitou o obscurecimento do profundo conteúdo político da Reforma Sanitária. "O processo de implantação do SUS induziu... os militantes da área a abdicarem da Reforma Sanitária enquanto um projeto emancipatório, e que tem que ser retomado com urgência". Nesse processo, não apenas os conceitos foram subvertidos, mas o SUS se tornou refém das tecnologias e lógicas "inovadoras" na atenção e gestão do sistema de saúde.

Algumas das questões problematizadas em ambos os trabalhos, Cohn e Menicucci, se referem ao caráter universal do SUS, às relações entre público e privado e à regulação do setor privado por parte do setor público.

Os dois trabalhos, Cohn e Menicucci, abordam a universalização de formas bastante diferenciadas. Enquanto para Cohn a universalização não pode ser compreendida como simples expansão da oferta e se faz necessário encarar questões relativas ao conteúdo em termos de sua eficácia social, para Menicucci a fragmentação dos benefícios é um dos motivos pelos quais a reforma careceu do apoio e da mobilização do público alvo. Mas, para essa, ainda que os legados da trajetória política do SUS limitassem o exercício da universalização, não se conseguiu impedir que o sistema "venha se institucionalizando" ao longo desses anos e, por isto, deve-se comemorar o avanço do SUS.

A perspectiva da institucionalização do SUS é compartilhada por Côrtes que no seu trabalho enfatiza o papel das instituições de saúde criadas pelo SUS, assim como o papel dos atores e as suas estratégias de ação. Os órgãos analisados por Côrtes são o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e a atuação dos atores que nelas têm assento, a saber: o Movimento Sanitário, no CIT, e os gestores federais, estaduais e municipais da saúde nas Comissões. Em ambas as instâncias, tinham assento e agiam como lobby os atores do mercado. O objetivo do trabalho é chamar a atenção para a atuação histórica desses órgãos e atores no SUS. O SUS é marcado pela atuação das instituições e atores que o influenciam. Esse fenômeno novo e original do SUS foi um exemplo seguido por outras áreas de política social, o que é bem apreciado pela autora. A incorporação por Côrtes de novos conceitos, tais como "comunidades e rede de política", parece bastante promissora para o desenvolvimento de estudos futuros sobre participação e controle social.

A relação público/privado foi desenvolvida por Cohn, Menicucci e indiretamente por Côrtes. Para Cohn essa equivale à relação Estado/Sociedade - Esfera Pública/Esfera Privada, questão desenvolvida por importante leque de pensadores que vão de Rousseau, passando por Marx e chegando a Habermas, e que é central para se pensar o Estado e suas políticas sociais. Em diversos sentidos, a autora destaca como tem valor essencial o que se refere à "tessitura da rede das relações sociais propriamente ditas" e o necessário desprendimento do convívio promíscuo do SUS com os planos privados de saúde suplementar. Convergindo com Cohn, para Menicucci o maior desafio para a institucionalização plena do sistema de saúde no SUS estaria relacionado à articulação do mix privado - público que se cristalizou ao longo do tempo e que desembocou na existência hoje de "um sistema dual". A saída, para a autora, é uma regulação governamental forte para efetivamente publicizar a rede privada, "fazendo valer o interesse público em função do imperativo legal de garantir o acesso universal". De maneira também convergente, para Cohn, a regulação ainda que estatal, quando ela existe, se dá "segundo a fórmula comumente usada da regulação do setor privado da saúde pela própria lógica desse setor", quando o setor privado deveria ser regulado de acordo com os princípios da Reforma Sanitária que, diferentemente do modelo americano de regulação, envolveria emitir regras para o funcionamento dos planos de saúde de forma que estes não interfiram com os princípios e o desenvolvimento do sistema público de saúde.

Um ponto que me parece bastante relevante é a idéia de Cohn de se pensar tempos diferentes na elaboração de projetos para o setor da saúde. Os projetos governamentais de curto prazo seriam formulados considerando o médio prazo e, por sua vez, estes se inscreveriam no longo prazo. A autora chama a atenção para a necessidade de sair das amarras do SUS dos anos 80 e reconquistar a dimensão emancipatória da Reforma Sanitária no novo contexto social e político da presente conjuntura, ainda que existam "profundas mudanças no perfil da atuação do Estado na área social". Está ausente da arena política da saúde (Côrtes) a verbalização política que coloque no centro da disputa o enfrentamento de interesses, quando do que se trata não é apenas a retomada dos princípios da Reforma, mas a desconstrução e reconstrução dos caminhos percorridos e os que estão pela frente para a efetiva realização dos direitos sociais de cidadania.

Finalizando o debate sobre os 20 anos do jovem SUS, parece-me instigante interpelar as autoras e suas visões sobre os aspectos que não foram suficientemente explicitados nos trabalhos debatidos.

No caso de Cohn o intento por nomear processos contribui para o escurecimento da idéia sustentada de resignificar, impregnar de novos conteúdos, a Reforma Sanitária. Será que nomear conduz à compreensão do que essa foi, é ou venha a ser? Qual a diferença substantiva entre a "Reforma da Reforma" ou a "Contra-reforma" da Reforma Sanitária? Que trilhas deveriam ser abandonadas e quais percorridas em um caso e no outro? Será que o problema reside no esgotamento do SUS? Qual o significado de acumular projetos incompletamente realizados? Ou, em definitivo, para que "formular um novo projeto para a saúde" se a "dimensão emancipatória" do projeto da Reforma Sanitária, da Carta, ainda não aconteceu?

Menicucci, ao se referir à relação público/privado na trajetória do SUS, afirma a "necessidade de regulação governamental mais forte", de modo a "publicizar a rede privada". A afirmação denota um imperativo categórico difícil de ser efetivado. De fato, regular, no campo da saúde, é uma forma por meio da qual o Estado agiria de modo a disciplinar as modalidades de operação do setor privado. Não entanto, não é o que ocorre. Dados de pesquisa recente 4 mostram que dos hospitais privados prestadores de operadoras de planos de saúde, 70% deste parque hospitalar privado são conveniados ao SUS, sendo que a qualidade da atenção, instalações e equipamentos é consideravelmente baixa. Essa situação, a que se agregam as filas para atendimento, é semelhante nos hospitais públicos que compõem o SUS. Ora, se considerarmos as falhas de regulação do próprio setor público, que não se dirá da rede privada, cuja busca por vocação e orientação são os negócios. Cabe indagar da autora: quais as propostas e de que maneira a regulação poderia ser desenvolvida, para essa área de atenção médica hospitalar, pelo SUS? De fato esse é um tema bastante recente no setor saúde e acredito não haver experiências, no país, nesse sentido. Precisamente, por isso, pode não ser necessária uma agenda "radicalmente inovadora", seria suficiente que a regulação atenda às necessidades de atenção hospitalar com qualidade e exerça um controle estrito sobre as cláusulas dos contratos efetuados com o setor privado de forma que este se adeqüe ao padrão de qualidade que, por ventura, viesse a ser implementado no setor hospitalar público.

No que se refere ao trabalho de Côrtes, é bem interessante a leitura do movimento sanitário "como comunidade ou redes de políticas que incluem indivíduos de várias instituições, áreas de conhecimento ou profissões". Sobre essa perspectiva conceitual baseada em bibliografia específica, observa-se que na saúde há redes de políticas diversas - atores estatais, atores de mercado e atores sociais - não orientados pelo poder nem pelo lucro - os primeiros e os últimos sediados no CNS, nas Comissões Bipartite e Tripartite, no Fórum de Entidades de Trabalhadores da Saúde, nos Conselhos Municipais.

Qual o grau de intercâmbio, colaboração e enfrentamento, que hoje existe no SUS, entre estas redes políticas e, principalmente, entre estas e os Conselhos Municipais/Locais de Saúde e como se dirimem estes conflitos? Qual o peso que as mesmas poderiam exercer sobre os resultados, em particular, os de signo negativo, na implementação do SUS?

 

Referências

1. Cohn MA. A reforma sanitária brasileira após 20 anos do SUS: reflexões. Cad Saúde Pública 2009; 25:1614-9.         

2. Menicucci TMG. O Sistema Único de Saúde, 20 anos: balanço e perspectivas. Cad Saúde Pública 2009; 25:1620-5.         

3. Côrtes SV. Sistema Único de Saúde: espaços decisórios e a arena política de saúde. Cad Saúde Pública 2009; 25:1626-33.         

4. Ugá MAD, Lima SL, Portela MC, Vasconcellos MM, Gerschman S. Estudo dos prestadores hospitalares frente às práticas de microrregulação das operadoras de planos de saúde. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2007.         

 

 

Correspondência:
S. Gerschman
Departamento de Administração e Planejamento em Saúde
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
Fundação Oswaldo Cruz
Rua Leopoldo Bulhões 1480
Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil
gerschman@ensp.fiocruz.br

Recebido em 28/Abr/2009
Aprovado em 18/Mai/2009

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br