NOTA RESEARCH NOTE

 

Características relatadas sobre animais agressores submetidos ao diagnóstico de raiva, São Paulo, Brasil, 1993-2007

 

Characteristics of biting animals submitted to rabies diagnosis, São Paulo State, Brazil, 1993-2007

 

 

Daniel Sartore BusoI, II; Caris Maroni NunesI; Luzia Helena QueirozI

ICurso de Medicina Veterinária, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Araçatuba, Brasil
IIPrograma de Pós-graduação em Ciência Animal, Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho", Araçatuba, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

As pesquisas relativas a agressões por animais baseiam-se em dados de registros de pacientes atendidos nos serviços de vigilância epidemiológica da raiva. Analisaram-se as características de animais agressores, obtidas a partir de dados de 10.616 fichas de envio de amostras para diagnóstico da raiva na região noroeste do Estado de São Paulo, Brasil, entre 1993-2007. Desse total de fichas, 61,5% continham informações sobre agressão e, dentre os animais agressores (25%), a maioria foi de cães (67%), seguidos por gatos (21,8%) e quirópteros (8,1%). Em 92,1% dos relatos as vítimas eram pessoas e 82,3% dos animais eram domiciliados. A maioria dos cães agressores tinha até um ano de idade. Houve associação significante (p < 0,0001) entre agressividade e sexo, sendo os machos mais agressores do que as fêmeas. Dos animais positivos para raiva, 75,9% (183/241) eram agressores. Os dados obtidos são importantes para a instituição de programas de prevenção de mordeduras, baseados no perfil não só da vítima, mas também do animal agressor, além de permitirem estabelecer fatores de risco para ocorrência de agressões.

Raiva; Cães; Gatos; Agressão


ABSTRACT

Epidemiological factors related to animal bites in humans and other animals were obtained from a database with 10,616 records of animal specimens sent for rabies diagnosis in northwest São Paulo State, Brazil, from 1993 to 2007. Of this total, 61.5% contained information on the bites, and among the biting animals (25%), the majority were dogs (67%), followed by cats (21.8%), and bats (8.1%). In 92.1% of the reports the victims were humans, and 82.3% of the animals were home pets. The majority of the biting dogs were less than a year old. There was a significant association (p < 0.0001) between aggressiveness and gender (with male animals more aggressive than females). Of the rabies-positive animals, 75.9% (183/241) were biters. The data are important for establishing bite prevention programs based on the profile of both victims and biting animals, besides identifying risk factors for animal bites.

Rabies; Dogs; Cats; Aggression


 

 

Introdução

A raiva, altamente letal, é considerada uma das principais zoonoses. Devido à influência de fatores que levam cães a apresentarem comportamento agressivo 1, essa espécie ainda é a mais importante transmissora da raiva ao homem, além de ser a principal responsável por agravos resultantes em tratamentos pós-exposição 2.

No Estado de São Paulo, vacinação e controle populacional reduziram o número de cães e gatos positivos, no entanto o número de pessoas agredidas por essas espécies no Brasil ainda é muito alto, com índice de tratamento pós-exposição contra raiva acima de 50%, resultando em gasto de milhões de reais 3. O excesso de internações decorrentes de agressões caninas no país também demonstra a importância do estudo e controle deste tipo de agravo (Departamento de Informática do SUS. http://w3.datasus.gov.br/datasus/datasus.php?area=359A1B624C4D0E0F359G104H0I1Jd4L24M0N&VInclude=../site/infsaude1.php&lista=op1, acessado em 01/Mai/2009).

Estudos referentes às agressões por animais baseiam-se em dados obtidos dos registros do SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) ou de Prontos-Socorros 4,5,6,7,8. Este trabalho, entretanto, analisa aspectos epidemiológicos de agressões a pessoas utilizando dados de fichas de envio de amostras para diagnóstico da raiva.

 

Material e métodos

Os dados dos animais agressores foram obtidos das fichas de envio de amostras para exame de raiva ao Laboratório de Raiva da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), em Araçatuba, e ao UPD/Pólo Regional do Extremo Oeste da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA-SP), entre 1993 a 2007. Foram considerados agressores os animais envolvidos em mordeduras, arranhaduras e lambeduras a ferimentos/mucosas.

O programa Access 2003 (Microsoft Corp., Estados Unidos) foi utilizado na elaboração do banco de dados e no cadastro e processamento das informações contidas nas fichas. Com base nos registros, estimaram-se as taxas de animais agressores totais e por espécie, bem como condição de posse, sexo, idade, vacinação e resultado do exame.

Para a análise estatística, utilizou-se o programa SAS versão 8.0 (SAS Inst., Cary, Estados Unidos). As variáveis qualitativas foram analisadas por proporções e as medidas de associação, pelo teste qui-quadrado, com fator de correção de Yates, e pelo teste de duas proporções, considerando-se significantes valores de p < 0,05.

 

Resultados e discussão

Dentre 10.616 fichas cadastradas, 61,5% (6.533/10.616) continham informação sobre agressão, sendo 25% (1.637/6.533) correspondentes a animais agressores e 75% a não agressores. Dentre os agressores, 67% (1.097/1.637) eram cães, 21,8% felinos e 8,1% quirópteros.

Esses dados estão de acordo com relatos que apontam as mordidas por cães como a forma de agressão animal mais comum tanto no Brasil 4,5,6,7,8,9, como nos Estados Unidos 10 e Tailândia 11.

Agressões por gatos estão em segunda lugar, com 5% a 15% dos registros no Brasil 6,8 e no exterior 10,11, porcentagem inferior à encontrada neste trabalho. O maior número de amostras de cães pode se dever ao maior conhecimento de seu papel como transmissor da raiva.

Os quirópteros foram a terceira espécie mais agressora na região de Araçatuba (8,1%), tendo também destaque em Campo Grande 9, Mato Grosso do Sul, e no Estado de São Paulo 6, porém com porcentagem inferior a 1% dos casos.

Dados sobre procedência do animal, importantes para a prevenção de agressões 8, são omitidos nas fichas do SINAN, todavia verificamos que, de 1.453 fichas de cães e gatos agressores, 1.394 (96%) informavam sobre a condição de domiciliação animal, sendo 88,5% (1.233/1.394) domiciliados e 11,5% (161/1.394) errantes. A condição de posse e o local onde ocorreu a agressão foram informados em 1.182 fichas e 79,6% (942/1.182) dos acidentes ocorreram no próprio domicílio do animal. Os proprietários foram as vítimas em 76,8% das agressões por gatos e em 80,7% por cães. Portanto a maioria das agressões foi efetuada por animais domiciliados, no interior do domicílio e contra pessoas, observando-se associação significante entre essas variáveis (p < 0,0001). Observações semelhantes foram feitas no Brasil (46,8% a 72% 4,6,7) e em outros países (Bélgica 12, Estados Unidos 13 e Espanha 14).

O sexo foi descrito em 84,4% (1.226/1.453) das fichas. No caso dos cães, 68,4% dos agressores eram machos e 31,6% fêmeas; para os felinos, os valores para machos e fêmeas foram 64,7% e 35,3%, respectivamente. O sexo e a ocorrência ou não de agressão foram estatisticamente significantes (p < 0,0001) ao teste de duas proporções, tanto para cães quanto para os gatos, sugerindo maior agressividade entre os machos que entre as fêmeas (Figura 1). Apenas 29,5% (39/132) das fichas de quirópteros agressores informavam sobre o sexo. Também nesse caso a diferença entre as porcentagens de machos (69,2%) e fêmeas (30,8%) foi significante pelo teste de duas proporções (p < 0,0001).

Dados da população canina do Município de Araçatuba de 1994 a 2004 revelaram que a porcentagem de machos e fêmeas é semelhante (49,9% machos e 50,1% fêmeas) 15. Apesar do número de amostras de cães machos ter sido maior que o de fêmeas neste estudo, a comparação entre agressores e não agressores confirma os relatos de outros autores, segundo os quais tanto cães quanto gatos machos são mais agressores que as fêmeas 1,13.

A faixa etária dos animais agressores também foi considerada, observando-se predominância de até um ano entre cães (45,5%) e gatos (49%) (Tabela 1).

 

 

Do total de fichas analisadas, 65% dos cães e 38,5% dos gatos eram vacinados. No que se refere às fichas de agressores, apenas 60% (871/1.453) continham essa informação, verificando-se maior freqüência de cães agressores vacinados (59,1%) do que não vacinados; entre gatos agressores, ocorreu o inverso (66,6% não vacinados). Isso demonstra negligência ou dificuldade dos proprietários de gatos quanto à vacinação para raiva, fato observado também em outros estudos 4,6,13.

Entre trabalhos que relatam o estado vacinal de animais agressores 5,6,10, sem distinção entre cães e gatos, concluiu-se que o índice de vacinação esteve entre 17% e 77%. Deve-se reforçar aos solicitantes dos exames a necessidade do preenchimento desse campo nas fichas de exame, pois ele permite avaliar indiretamente a cobertura vacinal da população canina e felina.

As variáveis agressão e resultado positivo para raiva foram estatisticamente significantes (p < 0,0001) (Tabela 2). A associação entre estas variáveis (75,9% de positividade entre amostras de animais agressores) confirma resultado anterior na região de Araçatuba 16 e em alguns municípios do Estado de São Paulo 6.

 

 

A presença de morcegos (8,1%) entre os animais agressores também foi constatada em outro trabalho na região de Araçatuba, onde 12% dos morcegos positivos para raiva tiveram algum tipo de contato direto ou agressão a pessoas ou animais 17.

 

Conclusões

Foi possível evidenciar características dos animais agressores não relatadas nas fichas do SINAN: maioria das agressões por animais domiciliados, contra pessoas e no interior do próprio domicílio. Essas características aliadas a outras, como sexo, idade e condição vacinal do animal, são importantes para programas de prevenção de mordeduras, baseados no perfil não só da vítima, mas também do animal agressor, sugerindo-se ainda pesquisas que avaliem características de cães agressores e estabeleçam fatores de risco para agressão por esses animais.

 

Colaboradores

D. S. Buso foi responsável pela implantação do banco de dados, cadastro das fichas de exame de raiva, análise dos dados e elaboração de parte do manuscrito. C. M. Nunes foi responsável pela seleção das variáveis que foram estudadas neste projeto; auxiliou na discussão e análise dos dados e na correção do manuscrito. L. H. Queiroz foi responsável pela orientação no desenvolvimento do projeto de iniciação científica que originou este artigo; auxiliou na análise dos dados, realização dos exames de raiva e elaboração do manuscrito.

 

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo auxílio financeiro (processo 04/06740-7) e pela bolsa de iniciação científica (processo 06/02612-0), e à Fundunesp, pelo auxílio para apresentação do trabalho no XVIII Congresso Mundial e VII Congresso Brasileiro de Epidemiologia em 2008 (processo 00829/2008-DFP). A Cristiano de Carvalho, pelo auxílio e/ou realização dos exames laboratoriais de raiva durante o período de estudo, e à Profa. Dra. Sílvia H. V. Perri, pela colaboração na elaboração do banco de dados e análise estatística.

 

Referências

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Correspondência:
L. H. Queiroz
Departamento de Apoio, Produção e Saúde Animal
Curso de Medicina Veterinária, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
Rua Clóvis Pestana 793
Araçatuba, SP 16050-680, Brasil
lhqueiroz@fmva.unesp.br

Recebido em 17/Jun/2009
Versão final reapresentada em 01/Out/2009
Aprovado em 13/Out/2009

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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