ARTIGO ARTICLE

 

Sexualidade e reprodução: usos e valores relativos ao desejo de filhos entre casais de camadas médias no Rio de Janeiro, Brasil

 

Sexuality and reproduction: uses and values related to the desire for children among middle-class couples in Rio de Janeiro, Brazil

 

 

Eliane Portes VargasI; Jane A. RussoII; Maria Luiza HeilbornII

IInstituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIInstituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho analisa aspectos constitutivos da dinâmica sexual conjugal moderna entre casais de orientação heterossexual como parte dos resultados de uma pesquisa etnográfica realizada com "casais inférteis" no Rio de Janeiro, Brasil (2004-2005). O grupo investigado pode ser culturalmente definido por sua imersão na configuração de valores individualistas. Analisamos certos aspectos referidos pelos casais a partir dos investimentos em recursos médicos conceptivos. Destacam-se as idéias de "privacidade" e "espontaneidade" como expressões obrigatórias do exercício da sexualidade e da reprodução. Partiu-se do pressuposto de que tanto a experiência reprodutiva quanto a sexual enfatizam a primazia da representação de uma suposta liberdade de escolha. Como estratégia metodológica, privilegiou-se a trajetória de vida dos casais utilizando entrevistas semi-estruturadas e observação no contexto das entrevistas. Os resultados apontam formas divergentes, ou mesmo contraditórias, de vivenciar a experiência da parentalidade: de um lado, o filho como resultado "natural" da relação conjugal e, de outro, como fruto de uma escolha racional.

Sexualidade; Reprodução; Planejamento Familiar


ABSTRACT

This study analyzes aspects comprising the modern conjugal dynamics of heterosexual couples as part of the results of an ethnographic study of "infertile couples" in Rio de Janeiro, Brazil (2004-2005). The target group can be defined culturally by its immersion in the configuration of individualist values. We analyze certain aspects reported by the couples based on their investments in medical resources for conception. The notions of "privacy" and "spontaneity" stood out as obligatory expressions in the exercise of sexuality and reproduction. The premise was that reproductive and sexual experience emphasizes the primacy of the representation of a supposed freedom of choice. The central methodological strategy was the couple's life trajectory, using semi-structured interviews and observation within the context of the interviews. The findings show divergent or even contradictory forms of experiencing parenthood: on the one hand, the child as the "natural" result of the conjugal relationship, and on the other, as the result of a rational choice.

Sexuality; Reproduction; Family Planing (Public Health)


 

 

Introdução

Este artigo visa contribuir para a análise da sexualidade conjugal heterossexual a partir de uma pesquisa etnográfica entre casais dos estratos médios superiores que tem como foco as concepções sobre sexualidade e reprodução. Estas reflexões buscam subsidiar as ações de saúde no campo da saúde sexual e reprodutiva - voltadas para as práticas contraceptivas ou conceptivas -, levando em conta a centralidade da "escolha" e da vontade, no que tange à reprodução.

Partindo de um estudo sobre a dimensão físico-moral da reprodução contemporânea no universo de camadas médias, analisamos alguns aspectos constitutivos da dinâmica conjugal moderna, tendo em vista o recurso à tecnologia médica com o objetivo de conceber uma criança. Os termos "privacidade" e "espontaneidade" 1 destacam-se como expressões obrigatórias do exercício da sexualidade contemporânea, evidenciando entre os pesquisados o ideal de uma atividade sexual livre de constrangimentos, em contraste com sua submissão aos ditames médicos para fins reprodutivos.

Estas reflexões constituem parte do material analisado na investigação sobre "casais inférteis" em camadas médias no Rio de Janeiro, Brasil. Nela tematizamos a importância da reprodução em um grupo culturalmente definido pela configuração simbólica moderna, que tem no "valor-indivíduo" seu principal fundamento 2. A análise se centrou na não-reprodução involuntária de casais heterossexuais pertencentes a um universo cultural que valoriza a "escolha" pessoal e a "liberdade" individual, no que concerne às questões de trato íntimo. As circunstâncias em torno da decisão reprodutiva de mulheres e homens unidos, levando em conta a dinâmica conjugal e de gênero, foram o objeto de investigação. Denominamos "ausência involuntária de filhos" às situações dos casais sem filhos, a despeito da decisão de tê-los, utilizando expressão cunhada por Ramírez-Gálvez 3.

Partiu-se do pressuposto de que a experiência reprodutiva e sexual contemporânea enfatiza a primazia da liberdade de escolha. A promoção da autonomia, da interiorização e da "psicologização" constituem referências relevantes neste universo, denotando valores e modos de expressão dominantes da ideologia individualista 4,5,6,7,8. Neste contexto os indivíduos compartilham uma "visão de mundo" em sentido amplo 9 e exibem traços de um ethos privado não-confessional, no que concerne às áreas da sexualidade, da família e da reprodução 10. Buscamos problematizar a concepção biomédica de "infertilidade conjugal", privilegiando o ponto de vista dos casais acerca da ausência de filhos.

Embora a sexualidade ocupe um "lugar central na vida conjugal" 7, constituindo um domínio relativamente autônomo no que tange à família, a atividade sexual heterossexual ainda é pouco investigada em pesquisas sobre sexualidade, possivelmente em decorrência da relevância política atual dos estudos sobre a diversidade sexual. A sexualidade conjugal contemporânea caracteriza-se por sua dissociação frente à reprodução. Neste artigo discutimos os usos da categoria "natural", em oposição à "artificial", relativos à atividade sexual e reprodutiva nos casais pesquisados. Neste contexto ressalta-se que o "transar para engravidar" contraria uma concepção de exercício da sexualidade concebida como "espontânea" e "natural".

 

Metodologia

A pesquisa contemplou indivíduos unidos com "dificuldade para engravidar", tomando seus próprios termos, privilegiando a ótica dos casais sobre as condições que envolvem a realização do desejo de filhos a partir de suas trajetórias de vida. A análise diferencia-se da descrição de "casais inférteis", segundo designação utilizada pela biomedicina 11. A nomenclatura "casal" não corresponde a uma categoria abstrata ou universal, conforme apresentada pelo discurso médico. Isto é, um par que mantém um número de relações regulares no intervalo de um ano. A abordagem sociológica da conjugalidade enfatiza o sentido e a dinâmica das complexas redes de relações sociais que integram a vida a dois 7.

Foram entrevistados cinco homens e cinco mulheres, casados entre si; quatro mulheres unidas; uma mulher separada e uma solteira, totalizando 16 depoimentos. Foram incluídos dois depoimentos enviados por meio de correio eletrônico, a partir do roteiro de entrevista realizada com os casais, por integrantes de um grupo de discussão sobre infertilidade na Internet. Dentre os 14 homens e mulheres unidos, oito possuíam filhos (um deles adotado) e uma mulher estava grávida no momento da pesquisa. A mulher separada tem um filho adotado e a solteira não tem filhos.

Pelas características próprias do objeto de estudo, tornou-se inviável identificar uma rede de sociabilidade que reunisse casais inférteis. O trabalho de campo efetivou-se por diferentes vias, incluindo grupos de apoio à adoção. A diversificação de estratégias para composição do conjunto investigado visou contemplar as variações e a diversidade de códigos características das sociedades complexas e típicas dos estratos médios urbanos intelectualizados estudados por diversos autores em décadas anteriores 4,5,7,12,13,14. Neste percurso surgiram diversas situações de evitação da entrevista, principalmente entre homens. O acesso a casais não constitui tarefa fácil nesse tipo de estudo, pois o segredo é uma dimensão relevante uma vez que uma sensibilidade em torno da vida íntima está muito presente. A recusa masculina em conceder a entrevista foi comum, o que não aconteceu com as mulheres. Este fato determinou um maior número de entrevistas com elas, como parte de um casal ou não. Observou-se pouca disposição masculina para a expressão de questões avaliadas como pertencentes à seara da intimidade, como "problemas saúde" e família, vistas como inerentes ao universo feminino 13,15. O estudo, submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, obteve consentimento informado de todos os entrevistados e utilizou nomes fictícios. Apresentamos a seguir a identificação dos casais quanto ao local/condições de moradia, renda familiar, situação conjugal e iniciativas para conceber (Tabela 1).

 

Valores e práticas reprodutivas: novos contextos, sentidos e identidades

As transformações nas relações familiares e de gênero, no exercício da sexualidade e das práticas reprodutivas, ocorridas nas últimas décadas são ilustradas por tendências demográficas. A expressiva redução das taxas gerais de fecundidade observadas a partir do século XX na maior parte dos países em desenvolvimento é conseqüência do maior acesso a recursos contraceptivos (e abortivos) e da entrada das mulheres no mercado de trabalho 1 entre outras razões.

Nos Estados Unidos na década de 1990, ocorreu um aumento significativo do número de adoções, da proporção de crianças vivendo com apenas um dos pais (mãe ou pai, ainda que minoritária), do número de crianças compartilhando seus lares com um dos avós, do montante de famílias encabeçada por mulheres, de famílias recombinadas, do número de homens solteiros com filhos, da quantidade de divórcios, recasamentos e, ao mesmo tempo, uma redução dos casais legalmente casados com filhos 16. Constatou-se também o montante de 20 mil bebês nascidos por fertilização in vitro, pouco expressivo numericamente, mas simbolicamente importante, pela aproximação entre procriação e técnica, sendo a primeira inscrita em um registro distinto da "natureza" e da sexualidade. A ampliação da discussão em torno dos direitos civis, também presente no Brasil, quanto à regulamentação das relações entre pessoas do mesmo sexo, inclusive no que tange à filiação, aponta o surgimento de novas modalidades de conjugalidade e de exercício de maternidade e paternidade 17,18,19,20,21,22,23,24.

No Brasil, os níveis de fecundidade entre os diferentes estratos sociais não são homogêneos 25 e variam segundo as condições sócio-econômicas. Na maioria da população tais níveis são reduzidos mantendo-se, entre os estratos sociais mais baixos, em patamares médios como no início da transição demográfica da década de 1960. No curso dessas transformações há mudanças nas concepções de "família" e noções de parentesco 26 que se expressam em diferentes arranjos familiares e práticas reprodutivas. Pesquisas sobre a maternidade e a paternidade fora do casamento entre solteiros heterossexuais, via adoção ou reprodução biológica, constituem exemplo destas transformações nestes contextos 14,27,28. Estes estudos afirmam que pais e mães solteiros, fundamentados na valorização da escolha e da autonomia individuais características da ideologia individualista, constituem novos arranjos familiares como alternativa à constituição do casal. O casamento para os setores mais modernos da sociedade contemporânea é caracterizado como uma escolha recíproca, baseada em critérios afetivos e sexuais e na noção de amor 7. Tal formato aponta para a ordenação da aliança como presidida por uma lógica fundada nos valores da igualdade, liberdade e da singularidade individuais, que caracteriza a concepção de pessoa moderna. A relação do casal funda-se em um complexo jogo de trocas subjetivas, dependência afetiva e esteio para a relação do eu com o mundo. O amor é a regra sociológica que lhe serve de armação 29 e, mais que um vínculo de direitos e deveres, os parceiros estabelecem, por intermédio dele, um encontro intersubjetivo.

No bojo das transformações das concepções e práticas reprodutivas observadas, se constatam a permanência de determinados valores referentes ao gênero e à vida familiar na medida em que o desejo de filhos também se expressa como a meta de constituição de família, cujo valor enfatiza o modelo de família conjugal como modelo social dominante. Nesta direção, dentre os novos modelos de conjugalidade observa-se uma peculiar combinação de valores hierárquicos e igualitários 30.

Strathern 31 argumenta que as novas tecnologias reprodutivas, que se anunciam como solução para a ausência de filhos no âmbito conjugal, separam sexo de procriação, mas não a procriação do sexo. Para esta autora o fato de mulheres inglesas desejarem filhos sem ter relações sexuais foi considerado inaceitável, tanto na visão popular quanto entre especialistas médicos e terapeutas. Entre os homens, a realização da paternidade mantém estreita dependência do relacionamento sexual com uma mulher. A lei não prevê casos de paternidade exceto pela via da adoção, de modo que não há amparo legal para o desejo de um "filho biológico", como ocorre entre as mulheres 31.

No universo da pesquisa sobre "casais inférteis" houve variações nos casais analisados quanto às condições materiais de existência e trajetórias de vida. No entanto, o desejo de filhos apresentou como traço comum uma idéia do desejo de filhos como "realização" individual, ao mesmo tempo que fruto de uma "decisão a dois", mesclados por uma concepção de natureza substantiva, o que pode ser considerado como uma tendência de interpretação das atuais práticas, não só reprodutivas, mas também sexuais.

 

Natural versus artificial: maneiras de conceber a reprodução e a sexualidade

Na pesquisa realizada com os "casais inférteis", a perspectiva de constituição de uma família biológica demonstrou ser uma tendência forte e o desejo de filhos delineou-se como uma decisão racional e como um evento "natural" associado à formação da família. A percepção voluntarista da concepção se encontra imbricada em uma lógica naturalizante: ter um filho "tem que ser" natural. Neste universo a adoção parece inviabilizar a concepção de filho legítimo 28. Desse modo a escolha pela reprodução assistida expressa o valor atribuído à concepção como um "processo natural", viabilizado pela tecnologia médica. Entre os casais entrevistados havia um caso de filho adotado. No entanto, após a adoção de uma menina, esse casal submeteu-se (na verdade, a mulher) a inúmeros tratamentos para tentar um filho "deles". Segundo um outro entrevistado, o recurso à tecnologia médica, quando comparado à adoção, permite viabilizar "algo nosso, nosso filho".

Encontramos na narrativa dos casais uma intensa valorização do "natural" e do "espontâneo", semelhantes do imaginário dos anos 1960 32, sugerindo um "tom moral" ainda presente nos dias atuais. O termo "natural" associa-se tanto a uma prática conceptiva concebida como "espontânea" quanto à concretização do projeto parental, como processo "natural", centrado no corpo feminino. Os casais em uso de tratamentos de estímulo à concepção, por vezes altamente tecnológicos, são capazes de agenciar recursos ditos alternativos, como a acupuntura, por considerá-los menos "invasivos" e, portanto, mais "naturais".

Estes sujeitos mantêm uma relação ambivalente com a tecnologia biomédica que pode dar solução à ausência de filhos. Ao lançarem mão de vias alternativas, criticam as intervenções sobre os corpos e a utilização indiscriminada dos procedimentos técnicos. Em uma escala de valores, e de possibilidades materiais, os casais definem o "itinerário terapêutico" mediante articulação de sentidos. Neste percurso operam uma discriminação entre técnicas, medicamentos ou procedimentos avaliados como mais ou menos "invasivos". Assim, a adesão aos tratamentos não ocorre sem restrições. A resistência e a crítica também surgem em situações de interação com os médicos, também qualificadas como "invasão":

"Aí, ele [o médico] virou e falou: 'Você veio aqui procurar um médico como psicólogo'. Eu falei: '... tenho muita clareza do que vim fazer aqui. Quero saber se tenho condições ou não de engravidar. Quais são as chances, é isso que quero saber. Para depois pensar nessa outra possibilidade'. Mas sabe aquela coisa bem de mercado, de querer empurrar? E o homem [o médico] só falava daquilo e fui ficando irritada" (Margareth, 37 anos, casada, nível superior, sem filho).

Além disso, há uma preocupação quanto aos riscos decorrentes do uso das tecnologias reprodutivas, tais como os futuros efeitos da utilização prolongada de medicamentos e da adoção de procedimentos sem eficácia comprovada. Ressalta-se que a apreciação do "risco à saúde" não é relevante para a justificativa da decisão em torno dos tratamentos nesse universo, nem tampouco é uma categoria central nas falas dos entrevistados. Tal fato contrasta com a presença recorrente desta categoria em avaliações de tecnologias em saúde.

Na descrição da trajetória de tratamento, os casais combinam os recursos mais "ortodoxos" ou intervencionistas, com os mais alternativos ou menos "invasivos" sinalizando que certa distância deve ser tomada em relação às intervenções médicas.

"Em quatro meses de tratamento engravidei sem tomar hormônio, sem nada. Engravidei com a acupuntura. Uma vez eu tinha engravidado naturalmente e outra vez tinha engravidado por um tratamento de acupuntura, que é um tratamento absolutamente brando. ...Antes de fazer acupuntura eu tinha tomado Clomide, não tinha conseguido engravidar e parti para acupuntura. Tentei retomar o mesmo processo, mas tentei fazer as duas coisas juntas. Tomando os remédios e fazendo acupuntura" (Aline, 33 anos, casada, nível superior, grávida).

Quando se queixam do excessivo predomínio da técnica, os casais demonstram certa expectativa culturalmente construída de que a concepção ocorra "naturalmente".

"Vamos deixar ao natural, se vier uma criança, tudo tranqüilo, mas aquela coisa sem compromisso também. Sem intensificar o desejo... através de orientação médica, suspende os medicamentos e deixa ao natural. Se vier, beleza, se não vier a gente vê como fica. Mas como te falei, o trabalho foi ocupando o tempo, e a criança não veio, até que um dia a gente levantou a interrogação: será que alguma coisa está acontecendo?" (Mário, 39 anos, casado, nível superior, sem filho).

Como já ressaltamos, a perspectiva de concepção "natural" convive com investimentos em tratamentos médicos pelos casais, indicando a convivência e a sobreposição de distintas lógicas. Segundo Dauster 14, os usos e apropriações da categoria "natural" podem ser diversos. Esta pode associar-se aos significados do filho como constitutivo de um processo de individualização que implica uma construção moderna da existência individual, expressa nas noções de "decisão" e "projeto", cujos valores distanciam-se de uma ordem mais tradicional na gestão do exercício da sexualidade e da reprodução invertendo a marca de passividade tradicionalmente associada ao ethos feminino. Por outro lado, esta mesma categoria acarreta uma aproximação entre a mulher e a natureza, com uma conseqüente limitação da liberdade de escolha e da autonomia, na medida em que o que é "natural" independe de uma decisão do sujeito 14.

Entre os casais pesquisados convivem simultaneamente os dois registros: um mais "naturalista" e outro vinculado ao significado do filho como projeto de vida. Estas tendências de interpretação convergem, sem contradições, com a visão biomédica, por sua vez, contribuindo para a associação entre o desejo de filhos e constituição da família com base na reprodução biológica. A análise de Barros 13 aponta, nesta simultaneidade de interpretações, duas grandes linhas explicativas, mais ou menos pregnantes para os indivíduos ou grupo de indivíduos: uma mais "naturalista" e outra mais "racionalista". Neste universo, a família é, ao mesmo tempo, concebida como grupo de substância e grupo moral 13,14.

A intervenção biomédica no agenciamento da concepção acarreta um importante dilema para os casais. O recurso à tecnologia acaba por comprometer o ideal da espontaneidade dos encontros sexuais do par.

 

"Transar para engravidar" versus sexo "espontâneo" e "natural"

O discurso médico sobre a "infertilidade" descreve "a atividade sexual regular" como um parâmetro inicial importante para a avaliação da "infertilidade conjugal". Tida como um dado a priori da relação conjugal, não parece levar em conta a tendência à diminuição da atividade sexual em casais estabilizados 33. O possível decréscimo do exercício da atividade sexual expõe um aspecto central da dinâmica dos casais, que diz respeito à importância do intercurso sexual como exigência da relação conjugal moderna 31 e, ao mesmo tempo, concerne à redução das chances de engravidar. A narrativa sobre a dinâmica sexual conjugal em nossa investigação revelou aspectos importantes do imbricamento entre sexualidade e reprodução. A menção à atividade sexual esteve sempre referida à reprodução evidenciando as interferências das prescrições médicas na sexualidade conjugal.

A prescrição médica dirigida aos casais define a necessidade de o casal manter relações sexuais com "data marcada". Se, de um lado, a concepção é valorizada como evento "natural", de outro, a sexualidade como experiência "natural" se estilhaça. Neste sentido as prescrições médicas tendem a ser percebidas como incômodas e indesejadas e, por isso, fortemente invasivas.

"Quando você transa, só quer transar porque quer engravidar. E aí procura transar no período fértil. A cabeça não funciona mais direito. Perde mesmo o 'tesão'" (Rosângela, 37 anos, casada, nível superior, dois filhos).

"Primeiro o pessoal fala: se ela tiver ovulando, se você transar dez dias seguidos, um dia você acerta. Vai transar dez dias seguidos depois do trabalho, cansado. Primeiro, segundo, depois cara..., tu não agüenta, começa a enjoar. Não dá, não dá. É um negócio desgastante. Não é mais amor aquilo, não é fazer amor. É loucura, pressão: 'será que foi agora?' Toda hora... 'será que foi?'. Isso que é mais desgastante" (Paulo, 42 anos, casado, nível médio, um filho).

A idéia de "invasão" na atividade sexual dirige-se ao aconselhamento médico relativo à otimização dos encontros sexuais com vistas à reprodução. A sexualidade entendida como primordialmente "espontânea" na percepção dos entrevistados fica largamente comprometida pela pressão de conceber. Patrícia (39 anos, casada, nível superior, um filho) relata como a tensão para conceber tomou conta do casal. A relação "rolava por obrigação" e não chegava a bons resultados, seja do ponto de vista da satisfação sexual, seja da reprodução. O casal "tentou de tudo", como transar durante um mês consecutivo sem interrupções. Segundo Patrícia, "não rolava nem tesão" e a motivação do casal circunscrevia-se à expectativa de concepção: "vamos transar para engravidar". Em meio a esta tensão gerada pela atividade sexual compulsória, o marido culpabilizava a mulher, por considerar que ela não engravidava porque o casal "transava pouco". Ela, por sua vez, se questionava sobre as "coisas" que estaria fazendo ou não - como não ficar deitada por muito tempo, se lavar rapidamente após a relação sexual etc., que dificultava a viabilidade da concepção.

A "queixa" referente a uma atividade sexual vinculada às tentativas de concepção baseia-se em uma compreensão da sexualidade regida somente pela exigência do prazer 7. Segundo Bozon 1, a obrigatoriedade de fazer sexo independente do estado de saúde, da idade e do status conjugal consiste em um aspecto singular da sociedade contemporânea. Tal exigência produz, em um contexto de individualização de condutas, inúmeras "injunções contraditórias", que opõem a exigência da espontaneidade e a busca do prazer individual à reciprocidade, a atração simultânea por mais de um parceiro à exclusividade do vínculo afetivo-sexual, a renovação das experiências ao ideal de um parceiro único. Conforme postula o autor, ainda que tenha ocorrido certa heterogeneidade normativa nas diferentes esferas da vida social, não houve modificação radical quanto às posições dos homens e mulheres nas questões da sexualidade, da parentalidade e da família. De fato, os entrevistados expressam uma expectativa de prazer livre depositada na atividade sexual, assinalando uma característica do modelo hedonista típico da sociedade moderna 34. Nesse sentido, a relação sexual com "data marcada", ou "sexo cronometrado" com o objetivo de reproduzir como analisado por Tamanini 11 desponta como uma inversão: "Você faz sexo para reprodução e não por prazer" (Fernanda, 32 anos, casada, nível superior, sem filho; depoimento via e-mail). O procedimento foi assim descrito por uma entrevistada: "o homem faz certa abstinência sexual, o que significa não ter relações sexuais entre 2 a 5 dias, e a mulher faz ultra-som ou exame de urina para verificar a data da ovulação. A partir de um determinado momento a mulher pode ovular nas próximas 36 horas". Então, a participante exclama: "Tenta fazer as contas e depois me diz se é fácil fazer coito-programado".

"Achei cansativo, pois tem dias que você não está a fim de sexo e sim de um bom sofá e um cafuné no máximo. Mas você não vai perder um ciclo... então você tira um ânimo lá do fundo, pensa no sonho [de ter um filho] e transforma o cafuné em sexo. O casal pensa para ter a relação sexual, às vezes você tem vontade naquele dia, mas o dia da ovulação vai ser amanhã, então é melhor não fazer hoje, porque o ideal é manter a abstinência correta. Aí, amanhã é o dia certo, nossa eu estava mesmo afim ontem... é uma loucura!!! Por isso o médico disse que muitos casais preferem fazer a IA (inseminação artificial). Assim, a parte reprodutiva fica por conta da ciência e a parte do prazer por conta do casal. Agora eu entendo o que ele quis dizer com isso!!!" (Fernanda, 32 anos, casada, nível superior, sem filho; depoimento via e-mail).

Este compartilhamento de tarefas na concepção, entre especialista e casais, indica uma compreensão da reprodução e da sexualidade como dimensões potencialmente dissociáveis. O tema é controverso e não pretendemos nos aprofundar no extenso debate sobre o mesmo. No entanto, sinalizamos que a partilha de tarefas para a reprodução apontada não escapa às tensões inerentes à prática conceptiva contemporânea. Assim, a queixa dos casais expressa uma concepção de sexualidade íntima e livre de controle, e o desconforto gerado pelas interferências médicas nesta atividade se traduz como uma "invasão" de privacidade. A realização de exames nas mulheres e homens para controle da concepção constitui bons exemplos.

"O mais invasivo foi fazer teste pós-coito. ...Você tem que transar e ir direto para o consultório. ...É muito invasivo. Por mais que seja uma coisa comum, você queira transar, mas é... transar exatamente para isso. É muito esquisito. ...Uma invasão total, completa da sua privacidade. A impressão que você tem é de ser virada pelo avesso" (Rosângela, 37 anos, casada, nível superior, dois filhos).

"Ele [o marido] falou que foi muito esquisito o homem, o médico, ficar passando [a mão] lá no pênis, examinando" (Rosângela, 37 anos, casada, nível superior, dois filhos).

A realização de exames sempre envolve constrangimentos. Entretanto, no caso das mulheres há uma familiaridade com os procedimentos, uma vez que o exame ginecológico é uma prática "naturalizada", sobretudo neste estrato social. O constrangimento é maior entre os homens e, ao mesmo tempo, associa-se a diversos significados, ainda pouco estudados.

"Uma coisa pesada também foi eu ir ao médico, toda semana, e me masturbar num tubo de ensaio. Aquilo é horrível. O cara chega com um tubo para você: toma aí. Um negócio pequenininho... te bota num quarto... No outro [exame] já foi melhor. Foi num lugar mais bonitinho. Mas o pessoal passa, você vê o pessoal falando e fica pensando: 'será que esse pessoal está rindo de mim?' Mas não, são médicos. Mas, você fica dentro da sala e ouve todo mundo rindo, brincando do lado de fora. Você entra com um tubo na mão e pensa logo que é contigo. Mas acho que não é" (Paulo, 42 anos, casado, nível médio, um filho).

 

Conclusão

Os resultados desta investigação apontam para a articulação entre diversas mediações culturais e a racionalidade médica. Por um lado, as transformações sociais que dissociaram sexualidade e reprodução favoreceram uma maior liberdade reprodutiva para as mulheres em especial. A reprodução assistida, entretanto, introduz paradoxos nesta seara. Se, por um lado, o recurso aos procedimentos médicos é uma escolha, por outro, tal escolha implica o controle médico da atividade sexual, tida idealmente como livre expressão da autonomia do indivíduo.

"Poder ter filhos" parece ter se tornado uma questão de extrema relevância para os casais contemporâneos, com significativas diferenças de gênero e predominância do valor "natureza" nas representações sobre família e parentesco 26,35. É verdade que a não reprodução encontra-se no horizonte das possibilidades reprodutivas dos indivíduos e dos casais. Entretanto, se o filho deve ser uma opção, sua ausência também deve ser. É possível à mulher e ao casal determinar como e quando ter um filho, ou não ter nenhum. O impensável nesse universo de valores não é a ausência de filhos (perfeitamente plausível enquanto uma escolha), mas a ausência involuntária de filhos.

A configuração moderna de valores pressupõe uma curiosa convivência: de um lado uma espécie de tendência neo-romântica 36 que valoriza, entre casais e especialistas, um modo "natural" de conceber uma criança, enquanto de outro uma concepção eminentemente "racionalista" da reprodução, que não exclui a intervenção "tecnológica" (portanto, "artificial") para produzir uma gravidez... "natural". Tal convivência configura-se a partir de uma combinação de valores presentes tanto na idéia do filho como opção quanto na idéia da reprodução como acontecimento natural. É na figura da mulher que essa contradição se expressa em seu mais alto grau. A reprodução concebida como fruto de um desejo individual sustenta uma auto-representação das mulheres como sujeitos autônomos - "donas de seu próprio corpo" e de sua sexualidade. Ao mesmo tempo, a naturalização da reprodução - que ocorre necessariamente no corpo feminino - aproxima esse corpo de uma suposta natureza, favorecendo sua submissão à ordem médica.

Concluímos, portanto, que a interpretação sobre a ausência de filhos nos casais de camadas médias aponta um desejo de filhos delineado não apenas como uma decisão racional, mas como evento natural e "espontâneo". A espontaneidade também aparece como característica fundamental do exercício da sexualidade, de tal modo que o auxílio médico para fins reprodutivos é considerado como uma "invasão" de privacidade e de liberdade. Parece-nos, entretanto, frente à vontade soberana do indivíduo (a "escolha"), ser possível subordinar esse ideal de espontaneidade e liberdade às orientações e prescrições visando a reprodução. Coloca-se aqui mais um dos paradoxos que cercam a concepção moderna de indivíduo: a subordinação da autonomia e da espontaneidade só se justifica por um ato de vontade. Ato este que, como referido, objetiva, por intermédio de um extenso aparato tecnológico, produzir uma gravidez "natural". Tais oposições e compromissos entre vontade e subordinação, por um lado, e "natural" e "artificial", por outro, recobrem o que Taylor 37 caracteriza como um conflito constitutivo da pessoa moderna: de um lado o sujeito da razão "desprendida", cuja postura instrumental (racional) implica a objetificação e neutralização da natureza, vista como separada do sujeito; de outro, o sujeito como parte de uma totalidade (a própria natureza) que ele só pode conhecer através da experiência encarnada.

Acreditamos que os impasses com que se deparam, na contemporaneidade, homens e mulheres, no que tange às decisões reprodutivas, são expressões desse conflito constitutivo ou da "tensão inarredável" entre racionalismo e romantismo a que se refere Duarte 36. Assim, o filho como fruto do desejo, do amor, quanto como resultado de um cálculo racional e produto da tecnologia médica, aponta para duas concepções aparentemente contraditórias que convivem na experiência e nas representações do imaginário moderno.

 

Colaboradores

E. P. Vargas concebeu e elaborou o artigo a partir de análise dos dados da pesquisa. J. A. Russo e M. L. Heilborn orientaram sua redação, contribuindo para uma revisão crítica de seu conteúdo.

 

Referências

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Correspondência:
E. P. Vargas
Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde,
Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz.
Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil.
epvargas@ioc.fiocruz.br

Recebido em 01/Set/2008
Versão final reapresentada em 08/Set/2009
Aprovado em 30/Set/2009

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br