EDITORIAL

 

Expansão geográfica da leishmaniose visceral no Brasil

 

 

A leishmaniose visceral (LV) atinge cerca de 65 países, com incidência estimada de 500 mil novos casos e 59 mil óbitos anuais. No Brasil, é causada pelo protozoário Leishmania infantum chagasi e transmitida por flebotomíneos do gênero Lutzomyia, sendo o cão considerado a principal fonte de infecção no meio urbano. É uma doença grave com poucas opções terapêuticas e que, mesmo quando adequadamente tratada, tem letalidade de cerca de 5%.

Historicamente reconhecida como uma endemia rural, a partir da década de 1980 registra-se um paulatino processo de urbanização da LV. A primeira grande epidemia urbana registrada no país ocorreu em Teresina. Posteriormente, epidemias foram descritas em Natal e São Luís, e subseqüentemente registrou-se sua disseminação para outras regiões do país. Recentemente casos autóctones foram detectados pela primeira vez no Rio Grande do Sul.

O panorama epidemiológico não deixa dúvidas sobre a gravidade da situação e a franca expansão geográfica da LV. De 1980 a 2008, foram notificados mais de 70 mil casos de LV no país, levando mais de 3.800 pessoas à morte. O número médio de casos registrados anualmente cresceu de 1.601 (1985-1989), para 3.630 (2000-2004), estabilizando-se a partir de então. Na década de 1990, apenas 10% dos casos ocorriam fora da Região Nordeste, mas em 2007, esta cifra chegou a 50% dos casos. Entre os anos de 2006 e 2008, a transmissão autóctone da LV foi registrada em mais de 1.200 municípios em 21 Unidades Federadas.

A LV é uma doença negligenciada de populações negligenciadas. Pobreza, migração, ocupação urbana não planejada, destruição ambiental, condições precárias de saneamento e habitação e desnutrição são alguns dos muitos determinantes de sua ocorrência. A Organização Mundial da Saúde reconhece a inexistência de meios suficientes para sua eliminação, a despeito das iniciativas no subcontinente indiano, onde a doença é transmitida de pessoa a pessoa por meio da picada do vetor. Neste caso o tratamento humano contribui para diminuir a transmissão, mas no Brasil, onde a doença é zoonótica, o tratamento tem papel eminentemente curativo.

O programa nacional de controle da LV baseia sua estratégia na detecção e tratamento de casos humanos, controle dos reservatórios domésticos e controle de vetores. Entretanto, após anos de investimento, nota-se que estas medidas foram insuficientes para impedir a disseminação da doença. A introdução da LV nas cidades configura uma realidade epidemiológica diversa daquela previamente conhecida, requerendo uma nova racionalidade para os sistemas de vigilância e de controle.

São muitos os desafios, mas ênfase deve ser dada em desenvolvimento científico e tecnológico e em inovação em saúde. São necessários mais estudos para o desenvolvimento de novas drogas, regimes terapêuticos e protocolos de manejo clínico. Estudos de efetividade das ações de controle devem ser sustentados em bases metodológicas sólidas; é preciso investir em táticas integradas de intervenção estruturadas de acordo com os diferentes cenários de transmissão e preferencialmente focalizando áreas de maior risco. Realce deve ser dado à produção e validação de novos testes diagnósticos. Pesquisas que levem a vacinas efetivas para proteger o indivíduo e diminuir a transmissão são prioritárias. Investigações para solucionar os entraves operacionais na implementação das ações de prevenção também devem ser estimuladas.

Há ainda uma imensa lacuna no conhecimento sobre a LV. Entretanto, mais do que a produção científica em si, é necessário um compromisso social de todos para evitar que a LV se estabeleça definitivamente como mais uma mazela sanitária do cotidiano urbano brasileiro.

 

Guilherme L. Werneck
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
guilherme.werneck@terra.com.br

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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