DEBATE DEBATE

 

Conferindo validade ao não representativo

 

 

Dina Czeresnia

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. dina@ensp.fiocruz.br

 

 

O artigo em debate busca responder à crítica de outro, publicado nos Cadernos de Saúde Pública, o qual questiona a validade dos dados de um inquérito sobre saúde bucal de âmbito nacional realizado em 2002 e 2003 pelo Ministério da Saúde (SB Brasil 2003). O inquérito de saúde bucal teria apresentado imperfeições no procedimento de amostragem e os dados coletados necessitariam de correção. Os autores assumem explicitamente o interesse em defender a pertinência da utilização dos dados deste estudo do qual participaram e cujos resultados vem sendo publicados em periódicos reputados.

No contexto epidemiológico, afirmar que um estudo não é estatisticamente válido não é irrelevante. A estatística é um dos pilares da epidemiologia. É importante o esforço de aplicar técnicas estatísticas adequadas em desenhos de estudo bem elaborados e explicitá-las para que a validade de um estudo possa ser aferida publicamente. Afinal, essa é uma forma de avaliar a qualidade das informações geradas por estudos epidemiológicos legitimados como meio de descrever realidades de saúde e doença, auxiliar a definição de prioridades, planejar intervenções, estabelecer metas programáticas, estimar riscos, definir a salubridade de práticas, consumos, comportamentos.

Problemas relativos ao procedimento estatístico do inquérito em questão foram reconhecidos pelos autores, mas eles defendem a pertinência da utilização dos dados independentemente da correção preconizada no artigo que os criticou. A argumentação sobre a possível correção foi talvez pouco trabalhada no texto. O trabalho de buscar realizá-la para poder comparar de modo mais completo os dados corrigidos com os não corrigidos seria até que ponto inviável?

De qualquer forma, é adequada a consideração de que a validade de um estudo envolve outros aspectos fundamentais, além da estatística. Os estudos não se realizam em nome de uma "verdade" que esteja acima de pontos de vista, necessidades e interesses, o importante é que eles estejam explícitos. Os estudos não alcançam representar uma realidade independente da possibilidade de pessoas observarem, nomearem, interagirem com ela. A idéia de representatividade estatística é importante para dar legitimidade a dados, no entanto essa representatividade é construída e certamente não é espelho exato da realidade. Outras circunstâncias modelam o que se pode apreender, como os próprios conceitos que definem as variáveis a serem observadas. Estudos epidemiológicos enfatizam a garantia do rigor das técnicas de análise quantitativas empregadas, porém muitas vezes pecam por não estabelecer o mesmo rigor em relação às categorias que utilizam, não raro provenientes de outras disciplinas. Uma questão precisa ser considerada: os dados servem ou não a que finalidade ou interesse?

Segundo os autores, na estruturação do inquérito houve a intenção de vincular a investigação à estratégia de implementação de um sistema de vigilância em saúde bucal. Buscou-se integrar unidades de serviço e profissionais no levantamento de dados, o que tornou mais complexo o processo. Isso teria trazido mais fragilidade ao procedimento de coleta de informações, porém, mais riqueza e frutos concretos para os serviços.

Se for possível corrigir os dados, se isso não exigir recursos desproporcionais em relação ao ganho com a validade estatística, seria um aprimoramento para a pesquisa e para o debate. Não há, contudo, razão para invalidar a priori trabalhos que utilizaram esses dados sem a correção. Dados publicados por fontes oficiais, mesmo imperfeitos, são preciosos para o estudo de realidades de saúde. É inevitável lidar com imprecisões de dados coletados na dependência da adequação a serviços e pessoas, os quais não se submetem aos critérios rígidos da matemática.

A estatística é um recurso poderoso, mas não é em si porta voz do rigor e da validade. Limites na estatística existem da mesma forma que existem limites em qualquer técnica de estudo. A melhor técnica é a mais bem adequada ao problema a ser investigado. A competência técnica é fundamental, entretanto precisa estar vinculada à clareza sensível das possibilidades e limites de qualquer técnica aplicada a situações singulares. A vida é sempre maior do que o conhecimento que possamos construir sobre ela. A estatística não substitui o pensamento, a criatividade, e é insuficiente para "representar" a verde e dourada vida, muito maior do que a cinzenta teoria, como afirma a citação de Goethe. A arte consegue expressar circunstâncias vitais de forma mais sensível. Porém, os critérios de avaliação de uma obra de arte não podem ser comparados ao de um trabalho científico, são referências muito distintas. O que está em questão no argumento dos autores ao se referirem à arte é: atributos como criatividade, sensibilidade, reflexão são também necessários à construção de conhecimentos válidos e úteis para serem aplicados em indivíduos ou populações. Alcançar essa forma de legitimidade talvez seja mais importante do que a representatividade.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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