DEBATE DEBATE

 

Como se estabelecem agendas na Saúde Internacional?

 

 

Gilberto Hochman

Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. hochman@coc.fiocruz.br

 

 

A emergência de agendas étnico-raciais nas organizações da saúde internacional é um tema de pesquisa novo e promissor tanto para o campo da saúde coletiva como das relações internacionais. Por isso, Cooperação Internacional e Políticas de Ação Afirmativa: O Papel da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) tem a virtude de inovar e de provocar o debate em torno desse tema. Os comentários serão feitos a partir do arcabouço conceitual e das evidências empíricas apresentadas pelos autores para analisar a gênese dessa agenda na OPAS, especificamente da política de saúde para a população negra.

Para o tipo de empreendimento proposto na introdução do texto é insuficiente estabelecer como premissa, ou concluir, dependendo do objetivo da análise, que uma organização internacional ou intergovernamental é tanto um ator social como uma arena, conforme sugere Martha Finnemore 1. São caracterizações que, apresentadas de modo amplo, podem ser imputáveis a qualquer organização, e seu rendimento depende das questões analíticas e dos casos empiricamente tratados. Essa cautela deve ser reforçada quando se trata da análise da gênese de uma diretriz dentro de uma organização, objetivo principal do artigo, e de seus desdobramentos em termos da capacidade da mesma de difundir orientações políticas, normas e valores. Outra cautela é com a tendência ao tratamento monolítico dado à organização - a OPAS, ainda que a narrativa da gênese indique ativismo de personagens e setores da mesma, assim como a importância do arranjo intra-institucional. Esses aspectos têm conseqüências para a análise da gênese e do desenvolvimento da política em questão e para a consideração de que a OPAS tenha sido, efetivamente, ator social e arena na emergência dessa agenda conforme postulado nas conclusões. Essa caracterização acaba por limitar desnecessariamente as reflexões contidas no texto. Por exemplo, a reivindicação do papel "socializador" da OPAS no campo das políticas de ação afirmativa não parece ter sido, ainda, comprovada.

Nesse sentido, uma pergunta embutida no título - qual o papel da OPAS na emergência dessas orientações e políticas? - traz respostas diferentes no texto: em primeiro lugar, quase nenhum ou, no máximo, subordinado. Essa Organização centenária teria sido simplesmente agendada e buscou, a partir de um certo momento, responder às recomendações, mais do que isto, às exigências de poderosas transnational advocacy networks 2 que se estabelecem não apenas fundadas em interesses ou epistemes comuns, mas sobretudo pelo compartilhamento de valores. Uma pergunta relevante é se dessas redes participavam funcionários da Organização partilhando valores (ações afirmativas no combate à desigualdade e racismo) e/ou foram a elas incorporados no processo?

Os elementos apresentados para o caso da gênese de políticas de ação afirmativa na OPAS apontam para a necessidade de alguma reflexão que saliente seu caráter mais processual e horizontal. O que o artigo evidencia é que essa gênese, em primeiro lugar, é balizada fundamentalmente por uma trajetória de atenção com a saúde das populações indígenas da América Latina e do Caribe, portanto é path-dependent 3. Historicamente, a saúde pública da região sempre teve esse desafio - em particular na região Andina e na América Central - cujas políticas variaram do reconhecimento e incorporação - universalizante ou segmentadora - ou da invisibilidade e exclusão. Portanto, como o artigo identifica, e aqui está uma outra e mais promissora resposta do que a primeira, uma gramática étnica já estava presente na OPAS, especificamente no campo da saúde indígena. Não pode ser classificado como simples "antecedentes", e os autores não o fazem, o fato que essa Organização tem advogado por esse campo, antes mesmo da recente reemergência do indigenismo político na região na primeira década do século XXI. Uma organização sensível ao problema étnico teria maior capacidade de incorporar e traduzir em seus termos a saúde da população negra quando sob pressão dessas trasnational advocacy coalitions.

O que ainda não é conclusivo é se, efetivamente, esta organização intergovernamental passou a cumprir o papel de agente (ator social) dessa agenda - ou se poderá fazê-lo - depois de traduzi-la em seus próprios termos. Nos documentos citados as políticas de correção de iniqüidades e combate à discriminação racial são deslocadas para a pobreza, exclusão social e gênero. Nesse sentido, a cautela assinalada em relação à importância da dinâmica intra-institucional deve ser redobrada. A localização dessa agenda em departamento específico e sua reinterpretação e revisão por outras instâncias e áreas demandam uma análise da estrutura organizacional da OPAS e seus processos decisórios 4. Pelos indícios apresentados, o poder de agenda da OPAS na questão da saúde da população negra, ou a sua saliência institucional, dada a sua localização e sua estrutura decisória, só é possível via redes e coalizões de advocacia transnacional que recortam horizontalmente a Organização. E, se bem sucedidas, como sugerem Keck & Sikkink 2, talvez modifiquem a própria trajetória da OPAS neste campo e seu papel como agente social.

 

1. Finnemore M. National interests in international society. Ithaca: Cornell University Press; 1996.         

2. Keck ME, Sikkink K. Activists beyond borders: advocacy networks in international politics. Ithaca/London: Cornell University Press; 1998.         

3. Mahoney J. Path dependence in historical sociology. Theory Soc 2000; 29:507-48.         

4. Peabody J. An organizational analysis of the World Health Organization: narrowing the gap between promise and performance. Soc Sci Med 1998; 40:731-42.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br