RESENHAS BOOK REVIEWS

 

Paulo Roberto Vasconcellos-Silva

Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. Escola de Medicina e Cirurgia, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

 

 

AS CIÊNCIAS DA VIDA: DE CANGUILHEM A FOUCAULT. Portocarrero V. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. 260p.

ISBN: 978-85-7541-178-0

Problematizar é o efeito de um olhar distanciado, que observa eventos banais com o desprendimento essencial à desnaturalização 1 - necessária desarmonia entre noções de certo, errado, moral, imoral, escasso, excessivo, sublime e hediondo que não raro assalta os que mais se apegam aos instrumentos que lhe tangem o prosseguir (por indolência do pensar ou certeza entorpecida de regulação ou por ambas, em mútua potencialização). A problematização das valorações, tão presente na obra que aqui se descreve, é iluminadora e fugidia, embora sua mirada deixe sempre marcas interessantes. Portanto, um devido distanciamento tem a nos conceder acesso ao normativo: de onde algo surgiu, a quem serve e como lhe é precioso e, principalmente, como é construído em determinadas circunstâncias históricas únicas que perderão seu significado no escoar dos séculos. O tempo nos apresenta naturalmente ao descentramento necessário à identificação de um pensar, como construção social evanescente e não como noção pétrea estável.

Até o final do século XVIII, não havia a noção de vida como objeto empírico (nem mesmo a ideia de objeto empírico). Em seu lugar, somente representações: seres vivos como espécies ideais nos horizontes da História Natural. Com Kant, tal saber clássico, monolítico, é cindido em dois rumos: o das ciências empíricas e o da filosofia, transcendental. Emerge aí o objeto das ciências da vida: empírico e invisível; pressentido no efeito (ou defeito) de órgãos; mecanismo e função dos seres na dimensão de suas leis e espaços peculiares, exteriores àquelas clássicas representações. Em suma, surge sob condições de possibilidade ligadas a transições: das diferenças justapostas às identidades visíveis da História Natural, aos elementos intangíveis ligados a uma unidade funcional que, invisível e em silêncio, provê vida. Essas ciências emergem em contextos políticos de normalização e medicalização da sociedade, como peças essenciais às relações de poder cujo alvo é a administração da vida da população como entidades biológicas - tema tão caro à saúde coletiva. Há a inserção dos corpos no aparelho de produção e o ajuste dos fenômenos de população ao exercício do poder, não mais soberano por natureza, como antes.

Para iniciar a leitura do livro de Vera Portocarrero, a título de reflexão preliminar ou aquecimento reflexivo útil ao que se seguirá, convém ao leitor perguntar-se: "Como os conceitos se formam adstritos a determinada ciência, tal como orações conjugadas por uma gramática acessível somente a criadores e pares?". Já estariam a existir e funcionar antes de seu despontar científico? A investigação científica se limitaria exclusivamente a fatos observados e quantificados (na miopia das condições de sua seleção, controle e reprodução)? Decerto, orações dessa gramática, admitidas como representações do material do qual se lhes extrai os enunciados, nascem da relação com uma teoria. Talvez tal matéria prima teórica os transcenda para se reproduzir em novos fatos, a seguir novamente explicados. Se a experiência é racionalizada pelo intermédio de conceitos e teorias peculiares a um dado contexto histórico, decerto as análises filosóficas derivadas deveriam se valer de métodos capazes de analisar e julgar tais elementos. Logo, nenhuma reflexão nesse campo deveria se furtar à historicidade dos conceitos, como objetos na historicidade das ciências. Isso impulsiona a relevância da questão problematizadora levantada por Canguilhem "de que a história das ciências é história"? Incluiriam-se aqui as condições políticas a partir das quais poderíamos considerá-las como produções a investigar, nos termos de seus efeitos sobre os indivíduos? A medicalização da sociedade pelo intermédio de seus agenciamentos e dispositivos aí se inscrevem, nessa história de valorações que envolve a biologia e a fisiologia, partindo de um sistema teórico neutro, validado por pares, até suas imbricações nas políticas públicas.

Portocarrero se envolve na epistemologia de Canguilhem e na arqueologia foucaultiana para retratar a constituição histórica das medicinas clássica e moderna, da história natural à biologia. Ao pesquisar, pormenorizada e rigorosamente (atuando em níveis de análise mutuamente complementares), erigiu à força de ensaios uma forma de problematização que, se não original, no mínimo essencial à identificação de diagnósticos da atualidade. O ideal otimista moderno de objetividade e neutralidade científica, cuja marcha inexorável culminaria em um bem-estar (ainda por se definir nesses terrenos), promoveu a transcendência de sua menoridade como mero adjuvante lógico e experimental da saúde para alcançar o status de depositório das "verdades do risco", morbidade e mortalidade da epidemiologia.

Na primeira parte do trabalho, se apresentam abordagens históricas das ciências biomédicas das quais a autora se vale como conjunto conceitual operatório para a pesquisa das formas de problematização dessas biociências. Nesse cenário, são mencionadas as discussões acerca da historicidade científica internalista ou externalista, monólogos mutuamente inarticuláveis cujos objetos centrais de análise pendulam entre os elementos científicos em si e os componentes sociais implicados na produção científica - discussões que contornam a genealogia dessas categorias, sem considerar as condições de constituição histórica dos sujeitos do conhecimento. Assim como ainda anima a Homeopatia, sabe-se que o vitalismo influenciou a Medicina até o século XIX 2 - a partir do qual as correntes mecanicistas acenaram com explicações inauditas, supostamente mais racionais, para a compreensão dos fenômenos vitais. A partir de avanços então considerados superiormente científicos, os vitalistas sofreram ataques direcionados ao que se considerava um retrocesso - a vinculação dos fenômenos da vida a conotações consideradas metafísicas. A energia vitalista, esclarece-se, não se referia apenas ao trabalho mecânico e sim a uma forma de energia orgânica essencial, mantenedora e motora da vida, anterior às atividades musculares e elétricas do organismo. No entanto, é mais relevante ao texto notar que somente a partir do século XIX seu conceito central - a noção de vida - é devidamente problematizado, o que serve de introdução para a segunda parte do livro no qual a autora isola tal conceito no contexto da constituição histórica da biologia, fisiologia e da medicina. Pergunta assim: Qual a relação entre os diferentes resultados das historiografias (conceitos relevantes, datações, marcos teóricos) e as diferenças metodológicas? Como se deu a constituição da microbiologia de Pasteur, e quais foram suas implicações no debate sobre o vitalismo? A autora parte de vários pontos para discorrer sobre suas investigações sobre as formas de valoração do vitalismo.

A autora se vale de um itinerário não-linear para isolar os elementos conceituais da ciência empírica, da medicina e da filosofia moderna e analisar sua historiografia nos textos dos protagonistas teóricos de sua obra, valendo-se de uma abordagem comparativa oblíqua e interessante de autores que raramente dialogam. Canguilhem, Salomon-Bayet, Jacob, e Latour em suas convergências e distanciamentos são chamados a oferecer ricas contribuições para sua pesquisa. Investiga, assim, as possibilidades de constituição do saber moderno, as formas de descrever o nascimento da vida no Ocidente em suas inflexões e transposições no interior de uma tradição historiográfica, cujo norte é sempre o pensamento humano e não sua existência terrena. Seu campo de prospecção epistemológica é a historicidade da ciência, o conceito de "conceito", o saber/poder, enfim, a verdade. O produto de seu trabalho deriva de anos de investigação profundamente imersa em instituições de pesquisa - desde seus estudos no campo da história da psiquiatria até aos da microbiologia de Pasteur, na Fundação Oswaldo Cruz. Como resultado, "As ciências da vida" reservam ao leitor um envolvimento direto com contextos biopolíticos e seus mecanismos, tal como peças de poder úteis à normalização. Portocarrero nos apresenta, portanto, a conceitos devidamente vivenciados: vida e morte na tensão de forças que se apresentam à epistemologia e à arqueologia e genealogia na relação desses saberes com a relação de imanência desses com os poderes, como biopolítica.

Em síntese, o livro oferece aos incursos na história das ciências biomédicas temas lacunares à saúde coletiva sob formato ensaístico a segmentar o corpo teórico, adotado por sua dinâmica de inflexões. É o mais apropriado a um ritmo de pensamento excitado por suas próprias ideias - pelo que instiga e desencadeia. Escapa, assim, da linearidade de uma apresentação simplificadora e, talvez, ingênua; unificadora e potencialmente inócua, paralisadora de si mesma - o que seria uma contradição com "os objetos de que trata e pelos domínios em que se situa". A cada temática proposta pelas análises da autora - o vitalismo, a representação do objeto empírico, a descontinuidade histórica entre história natural e biologia, a análise cartesiana e a crítica kantiana, o poder disciplinar e o biopoder - a posição de cada ponto de observação se desloca em relação aos outros. Portocarrero escapa, assim, do que poderia se transformar no mais cômodo e popular dos suicídios teóricos atuais - o pseudodidatismo de uma exposição cronologicamente enfileirada ou, no que aparenta ser seu inverso, como um hipertexto wikipédico - formato ao qual os indolentes e entorpecidos parecem estar se habituando rápida e acriticamente. Ensaios são "provas modificadoras de si" que, nas perspectivas em questão, tematizam a pertinência histórica da construção das verdades erigidas ao sabor de seus momentos convolutos. Nesses formatos, as ideias nunca se dão a conhecer de uma só vez - devem ser resgatadas, reposicionadas, superpostas a cada passagem, como dimensão lacunar e suplementar de perspectivas acerca das ciências da vida. Fazem emergir pensamentos que incitam reações e convidam às crises aqueles ao redor dos quais se ampliam ideias e instituições.

 

 

1. Simondon G. L'individu et sa genèse physico-biologique. Paris: Presses Universitaires de France; 1964.         

2. Marchat P. Enjeux actuels du vitalisme en homéopathie. Revue d'Homéopathie 2010; 2:44-8.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br