Resenha

2013

O livro Epidemiologia e Cultura de James Trostle, publicado originalmente em 2005, chegou ao Brasil em 2013. Definitivamente, é um livro instigante e merece atenção de qualquer pesquisador da Saúde Coletiva.

O autor se dedica, em cada capítulo, a problematizar aspectos centrais da abordagem epidemiológica de uma perspectiva antropológica. A tese central do livro é a de que a colaboração interdisciplinar entre epidemiologia e antropologia aumenta a capacidade de compreensão dos processos relacionados à saúde e as possibilidades efetivas de mudanças na saúde das populações.

A estratégia narrativa do livro é sagaz, pois alinhava os conceitos em debate a exemplos de pesquisas concretas que se valeram da colaboração interdisciplinar. Claro que pesadamente baseado em exemplos de pesquisa conduzida por estadunidenses, o autor desenvolve uma narrativa poderosa com uma capacidade de convencimento indiscutível.

Inicia com uma recuperação histórica da abordagem integrada em antropologia/epidemiologia. A história do século XIX, como contada por Trostle, é cheia de exemplos positivos que buscam mostrar o interesse da jovem epidemiologia pelas “causas sociais de doença e morte”. Para tanto, cita pioneiros como Snow, Panum, Virchow e Durkheim. Contudo, essa recuperação histórica se beneficiaria da leitura complementar empreendida por pesquisadores da Saúde Coletiva brasileira, como Ayres 1. Ayres JR. Epidemiologia e emancipação. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro: ABRASCO; 1995. , 2. Ayres JR. Acerca del riesgo: para comprender la epidemiología. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2005., Almeida-Filho 3. Almeida Filho N. Bases históricas da epidemiologia. Cad Saúde Pública 1986; 2:304-11. e Castiel 4. Castiel LD. A medida do possível... Saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999.. Ficaria mais fácil compreender o que levou(a) a epidemiologia a se afastar crescentemente deste movimento original dirigido às sociedades e de sua resistência para a colaboração interdisciplinar. Mas, claro que isso não é uma falta de Trostle, mas do nosso campo. Infelizmente, as reflexões brasileiras sobre a epistemologia da epidemiologia estão geralmente em português ou espanhol, o que dificulta a circulação pelo mundo.

Nesta recuperação, o autor traz ao leitor brasileiro uma grande novidade ao traçar as origens da epidemiologia social anglo-saxônica. Revela que seu lócus original foi a tentativa de construir um serviço nacional de saúde na África do Sul, que redundou em experimentos como os do Centro de Saúde Pholela (ou Polela) do Instituto de Saúde da Família e da Comunidade. Experiência bem-sucedida até ser abortada pela guinada reacionária do regime político do Apartheid. Perseguidos e cerceados, os participantes se espalharam pelo mundo: o casal Kark para Israel, Mervyn Susser, Zena Stein, Jack Geiger, John Cassel e outros para os Estados Unidos.

No capítulo três, dedica-se a mostrar como as descrições epidemiológicas podem ser enriquecidas, ao indagar o que a antropologia tem a dizer sobre categorias chaves como pessoa, lugar e tempo. Mostra caminhos de ampliação da imaginação epidemiológica e enriquecimento de seus quadros teóricos. Oferece ao leitor uma noção particularmente interessante de que epidemiologistas devem, antes das decisões de medir, examinar quais “teorias auxiliares de quantificação” devem ser chamadas à cena. O exemplo de Trostle debatendo como medir religião é inspirador.

No capítulo seguinte, o autor se debruçará sobre a coleta de dados. Longe de ser uma prática neutra, Trostle mostra como a coleta de informações precisa ser debatida de um perspectiva cultural. Ou seja, deve-se reconhecer que há uma série de convenções culturais e que, sem o seu exame crítico, a coleta poderá redundar em vieses. Os estudos exemplificados são diversos e abrangem o registro de mortes infantis, cesarianas, hábitos de higiene e relatos sobre eventos relacionados à fertilidade. Com base nesses exemplos, defende que a coleta de dados é um processo de intercâmbio social e que, pensada como tal, resulta em informação de maior qualidade. A antropologia pode contribuir para uma maior reflexividade da informação epidemiológica.

No capítulo cinco, o autor aproveita um conjunto de investigações sobre os surtos de cólera na América Latina. Agrega ao conhecido quadro da história natural da doença (HND), uma história sociocultural dessa doença em populações concretas. Diferentemente da abordagem HND, as indagações antropológicas podem oferecer respostas para perguntas como: por que a América Latina foi receptiva ao cólera vindo do Oriente? Que explicações e respostas foram formuladas na busca das causas do cólera na América Latina? E, como entender a sociedade expressa por esta epidemia? A análise oferecida pelo autor é convincente e mostra como a colaboração interdisciplinar ajuda a entender causas e respostas de modo mais efetivo.

Em um dos capítulos mais interessantes, o de número seis, o autor defende que métodos e teorias antropológicas devem desempenhar um papel mais proeminente nas intervenções em Saúde Pública. Valendo-se predominantemente de exemplos de intervenções em saúde pública (reconhece que antropólogos creem ser sua tarefa mais explicar e compreender do que tentar modificar situações e contextos), aporta como a antropologia pode adensar intervenções como educação de grupos e indivíduos, mudanças na gestão de grupos organizados, decisões políticas e legislativas que afetam toda a sociedade e mudanças ambientais que manipulam o espaço físico. A principal contribuição, a meu ver, é a discussão de como o poder é tematizado nas intervenções. Para um dado problema de saúde, não é trivial ou inocente a escolha da modalidade preventiva, por exemplo, educação de indivíduos, mudanças legais ou intervenções que mudam um contexto normativo/espaço físico. Escolher como prevenir revela o que os pesquisadores pensam sobre o que pode ou não mudar e sobre quem tem poder ou deve contar para a mudança. Epidemiologia é uma prática cultural conectada com poderes instituídos e instituintes. Ao discutir os papéis de antropólogos em intervenções multidisciplinares em saúde, ele aponta duas possibilidades: como mediadores (brokers) ou formuladores (designers). A primeira é a mais antiga, mas não menos problemática, pois usualmente toma a cultura local como problema a ser compreendido com vistas à modificação. Na segunda, o antropólogo participa ativamente na formulação e avaliação. A integração de antropólogos ajuda epidemiologistas a compreenderem que suas intervenções em saúde pública devem abrir para um diálogo cultural com os participantes. Do contrário, tendem a repetir formulações de cima para baixo que, por permanecerem acríticas sobre o(s) poder(es), acabarão por ser não efetivas ou ineficazes. A cooperação possibilitará uma renovação do compromisso social e ético das propostas epidemiológicas de mudanças em saúde.

Decididamente, o capítulo sete é o ápice do livro. O autor discute o conceito de risco, estruturante da epidemiologia contemporânea 2. Ayres JR. Acerca del riesgo: para comprender la epidemiología. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2005.. Chama a atenção para a existência de várias percepções sobre o risco, em disputa aberta ou velada na sociedade. Os recursos judiciais das indústrias do tabaco e da alimentação são exemplos de disputa aberta, ao passo que a segunda pode ser notada na indiferença, resistência passiva ou recusa ativa de populações e indivíduos a mudar com base em riscos estimados pela epidemiologia. Enquanto o risco é uma probabilidade para epidemiologistas, para as pessoas em geral ele é ameaça e perigo. Trostle usa uma metáfora de um alpinista que sobe uma rocha com as mãos, sem equipamentos. Esse sente o perigo, não por saber que a probabilidade de morrer de um acidente sério é de 1%, mas porque suas mãos tremem. Ele sente e aí sabe. Ainda, o alpinista sabe que todos morreremos. Assim, o alpinista avaliará se continuará a subida ou não ponderando a certeza final da morte contra a certeza do prazer presente e a possibilidade de morte precoce. Contra as probabilidades, o alpinista ajusta a força da mão e continua a subida. Este convite interdisciplinar permite ampliar os horizontes compreensivos de cada questão de saúde: como estão os prazeres presentes e as possibilidades de morte precoce. Isso é uma tarefa de uma epidemiologia que reconhece que a definição de risco pode e deve ser feita com os sujeitos de cada intervenção.

Enfim, trata-se de um livro de incrível qualidade heurística que merece importante revisão da tradução. Há trechos que ficam comprometidos pela falta de clareza e por decisões problemáticas na tradução.

O autor convida a todos para a superação do que denomina ser uma “negligência benigna” entre epidemiologia e antropologia 5. Trostle JA, Sommerfeld J. Medical anthropology and epidemiology. Annu Rev Anthropol 1996; 25:253-74.. Segundo ele, a colaboração interdisciplinar redundará na criação das bases de uma epidemiologia cultural, abordagem compatível com o projeto da Saúde Coletiva brasileira.

  • 1
    Ayres JR. Epidemiologia e emancipação. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro: ABRASCO; 1995.
  • 2
    Ayres JR. Acerca del riesgo: para comprender la epidemiología. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2005.
  • 3
    Almeida Filho N. Bases históricas da epidemiologia. Cad Saúde Pública 1986; 2:304-11.
  • 4
    Castiel LD. A medida do possível... Saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999.
  • 5
    Trostle JA, Sommerfeld J. Medical anthropology and epidemiology. Annu Rev Anthropol 1996; 25:253-74.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2015
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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