Equidade e regionalização da saúde na contracorrente

Equidad y regionalización de la salud a contracorriente

Eduardo Fagnani Sobre o autor

Os limites estruturais ao processo de regionalização do SUS impostos pela etapa atual do capitalismo, marcada pela primazia da esfera financeira no processo de acumulação, sob a hegemonia da doutrina neoliberal, estão bem retratados no artigo Enfrentando Desigualdades na Saúde: Impasses e Dilemas do Processo de Regionalização. Após identificar os avanços e os limites verificados no processo de regionalização do SUS, intensificado a partir da primeira década do século XXI, Ana Luiza d’Ávila Viana & Fabíola Lana Iozzi sugerem uma nova agenda de reforma da regionalização da saúde no Brasil.

Na tarefa inadiável de contribuir criticamente para este debate necessário, tão bem demarcado pelas autoras, optei por apontar aspectos - ainda pouco explorados por elas - relacionados à economia política brasileira no período 1988-2019, que reforçam os argumentos explicitados no artigo.

É fato que o SUS nasceu na contracorrente do paradigma neoliberal hegemônico em escala global, a partir do final dos anos 1970. A política de saúde reflete, com especificidades, a trajetória da política social brasileira nas últimas décadas, entrecortada por dois movimentos que caminham em direções opostas. A ideia do SUS amadureceu a partir de meados da década de 1970, inspirada na Golden Age (1945-1975) - um ciclo inédito de capitalismo regulado, marcado, dentre outros aspectos, pela consolidação dos regimes de Estado de Bem-estar Social 11. Mazzucchelli F. Os dias de sol: a trajetória do capitalismo no pós-guerra. Campinas: FACAMP Editora; 2014..

Porém, quando o SUS foi consagrado, no plano legal, pela Constituição Federal de 1988, ele já estava na contramão do paradigma hegemônico no plano global.

A partir do final dos anos de 1970, a ideologia neoliberal ganhou expressão no cenário internacional. Esse movimento criou condições favoráveis para a ruptura dos compromissos selados no período 1945-1975. Um dos focos da revanche dos mercados foi o Estado de Bem-estar, cujo ideário foi esconjurado em favor do ideário do Estado Mínimo, que representa a negação do Estado de Bem-estar. Nesse cenário, procurou-se impor a focalização nos “pobres” (aqueles que recebem até dois Dólares por dia), como a única política social possível. A tática ideológica enaltecia as supostas virtudes desses programas, para pavimentar o caminho para as reformas que desconstruíssem as políticas universais, abrindo as portas para a privatização dos serviços - quem não é “pobre”, deve comprar serviços no mercado.

No Brasil, a partir de 1990, também foi formado o grande consenso favorável às reformas liberalizantes. As bases materiais e financeiras do Estado foram destruídas em consequência das privatizações, do baixo crescimento, dos juros elevados, do câmbio apreciado e do endividamento público crescente que exigia a obtenção de elevado superávit primário (gastos não financeiros). Nesse cenário, a proteção social passou viver as tensões entre dois paradigmas antagônicos: os valores do Estado Mínimo versus os valores do Estado de Bem-estar Social. Entre 1990-2019 essas tensões mantiveram-se acirradas - exceto no período 2007-2013, quando elas foram atenuadas, sobretudo em função do crescimento econômico que, após 25 anos, voltou a ter alguma centralidade na agenda 22. Fagnani E. Política social no Brasil (1964-2002): entre a cidadania e a caridade [Tese de Doutorado]. Campinas: Instituto de Economia, Universidade de Campinas; 2005.,33. Fagnani E. O fim de um ciclo improvável (1988-2016): a política social dos governos petistas e a derrocada da cidadania pós-golpe. In: Marigini G, Medeiros J, organizadores. Os cinco mil dias do lulismo: transformação ou transformismo? São Paulo: Fundação Lauro Campos; 2017. p. 117-32..

A equidade e a regionalização da saúde estiveram na contracorrente entre 1990-2019 porque, em geral, houve profunda antinomia entre a estratégia macroeconômica e de reforma do Estado e as possibilidades de desenvolvimento e inclusão social. Políticas de “austeridade” são impostas pelo “tripé” macroeconômico, cuja institucionalidade fixa limites para o crescimento da economia. Meta de inflação, meta de superávit fiscal, Lei de Responsabilidade Fiscal, teto de gasto e a regra de ouro sobre emissão de dívida pública limitam o investimento e o gasto corrente, pois o propósito é equilibrar o orçamento, evitar o crescimento da dívida pública e preservar recursos para o pagamento de juros. Na vigência dessas regras, a geração de superávits primários para pagar uma parcela das despesas financeiras é a única rubrica “sagrada” que deve ser cumprida.

Assim, não há espaço fiscal para financiar os investimentos necessários para ampliar a oferta e a disponibilidade de infraestrutura, recursos (físicos, financeiros e humanos), serviços e ações para a área da saúde. Quando o SUS nasceu, em 1988, a oferta de serviços era, majoritariamente, privada. Seu funcionamento exigia investimentos para ampliar a oferta pública. Mas a lógica da “austeridade” barrou esse requisito, o que se reflete nos déficits de estrutura de oferta de serviços, assimétricos no cenário da profunda heterogeneidade regional do país.

Em decorrência disso, dos limites impostos pela política econômica, o financiamento do SUS sempre foi limitado, a começar pela Lei Orgânica de Saúde (LOS, 1990), seguida pela decisão do Governo Itamar Franco de utilizar a contribuição dos empregados e empregadores sobre a folha de salários exclusivamente para financiar a Previdência Social; pela Desvinculação das Receitas da União (DRU, 1993); pelo contínuo processo de concessão de isenções fiscais e de captura de recursos constitucionalmente vinculados ao financiamento da Seguridade Social; pela criação da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF), “vinculada” ao SUS, mas capturada pela área econômica (e extinta em 2007); e pela longa e difícil aprovação da Emenda Constitucional nº 29 (2002). Seguiu-se, sobretudo a partir de 2016, a adoção de diversos mecanismos voltados para restringir, mais uma vez, a base de financiamento do SUS, com destaque para a Emenda Constitucional nº 95, que estabelece o “teto de gastos” para as despesas não financeiras.

A equidade e a regionalização da saúde estiveram na contracorrente entre 1990-2019 porque, em geral, ao longo deste período, enquanto a descentralização e regionalização do SUS avançavam de forma gradativa, paralela e contraditoriamente houve um progressivo esvaziamento do Pacto Federativo selado em 1988. Esse processo foi percebido, em primeiro lugar, porque o poder fiscal do Executivo federal foi reforçado desde 1989, quando a área econômica reagiu à descentralização tributária determinada pela Constituição. A revitalização do centralismo tributário prosseguiu ao longo da década, quando a carga tributária passou de 25% do Produto Interno Bruto - PIB (1994) para 33% do PIB (2002).

Em segundo lugar, o Pacto Federativo de 1988 foi desmontado porque a política econômica desestruturou as finanças dos estados e dos municípios. O endividamento desses entes cresceu em consequência da elevada taxa de juros básicos (chegou a 42% ao ano em momentos de crise internacional nos anos de 1990). Uma vez endividados, esses entes tiveram de aceitar os termos impostos pelo governo federal no processo de renegociação de suas dívidas. Foram implantadas, dentre outras, as seguintes medidas: o Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados (1997), seguido da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Crimes Fiscais (1999).

Isso explica, em grande medida, as assimetrias que o estudo verificou entre os entes federados, as quais têm repercussões no baixo desenvolvimento de relações intergovernamentais entre as instâncias de governo, que não conseguem “superar os vários conflitos enfrentados na busca do fortalecimento de um sistema integrado” (p. 8).

A equidade e a regionalização da saúde estiveram na contracorrente, em geral, entre 1990-2019 porque, no compasso da estruturação do SUS, desde 1989, o processo de privatização da saúde avançou em marcha forçada. Incentivadas pelo governo federal e avalizadas pelo Parlamento, a partir de 1990 diversas modalidades de mercantilização foram amplamente difundidas pelos três níveis de governo para diversos setores sociais.

O SUS surgiu como antítese do sistema privatista adotado pela ditadura militar. Era de se esperar que os governos democráticos pós-1990 barrassem a privatização. Mas, na prática, houve um crescente processo de mercantilização das ações da saúde. As manifestações desse fato são inúmeras, com destaque para: a permissão da chamada “dupla porta” de atendimento (reserva de leitos em hospitais públicos para planos de saúde); a utilização dos planos de saúde da rede do SUS para procedimentos de alto custo (não ressarcidos); a montagem de parcerias (público-privadas) para a operação e gestão de hospitais públicos, bancadas (investimento e custeio) por recursos públicos; a formidável expansão da ação das organizações sociais para gerir hospitais e postos de saúde em todo o país; e as enormes falhas na regulação dos planos privados de saúde (autogestão, cooperativa médica, filantropia, medicina de grupo, seguradora de saúde) pelo Estado (Agência Nacional de Saúde) 44. Bahia L. O SUS e os desafios da universalização do direito à saúde: tensões e padrões de convivência entre o público e o privado no sistema de saúde brasileiro. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Manuel Suárez J. Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 407-49..

Também é importante sublinhar que, para burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que limita o comprometimento do gasto com pessoal, foram engendrados mecanismos de contratação de pessoal por meio de Organizações Não-governamentais (ONGs) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), cujos dispêndios são contabilizados como “serviços de terceiros” e não como “despesas de pessoal”.

Os desafios da nova agenda de reforma da regionalização da saúde no Brasil não são triviais. O período 2016-2019 pode representar o fim do breve ciclo de construção da cidadania social, iniciado em meados da década de 1970 e que teve como desaguadouro a Constituição de 1988.

A radicalização do projeto liberal tem avançado em três direções principais. Em primeiro lugar, no sentido de levar ao extremo a reforma do Estado iniciada nos anos de 1990.

Em segundo, no reforço das políticas de “austeridade”, mediante o aprofundamento do chamado “tripé” macroeconômico.

Em terceiro lugar, na destruição do Estado Social de 1988 e implantação do Estado Mínimo liberal. Esse propósito, acalentado desde 1989, ganhou força pós-golpe de 2016 e avança em marcha forçada em 2019. A correlação de forças favoráveis à implantação do projeto ultraliberal no Brasil teve êxito em difundir a falsa visão de que para se obter o ajuste fiscal “não há alternativa” - no sentido em que se faz a sociedade crer que seria indispensável pôr fim ao modelo de sociedade pactuado em 1988, pela destruição da Seguridade Social e o consequente corte dos gastos “obrigatórios” das políticas sociais universais consagradas na “Ordem Social” da Constituição da República.

A tese ideológica do “país ingovernável”, esgrimida em 1988, pelo então presidente José Sarney (1985-1990), voltou a ditar o rumo do debate imposto pelos representantes do mercado que sentenciaram que as “demandas sociais da democracia não cabem no PIB”. Em outras palavras, no Brasil dos neoliberais, os pobres não cabem no orçamento. Nesse cenário, como avançar no processo interrompido de ampliar a equidade e a regionalização do SUS?

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    Mazzucchelli F. Os dias de sol: a trajetória do capitalismo no pós-guerra. Campinas: FACAMP Editora; 2014.
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    Fagnani E. Política social no Brasil (1964-2002): entre a cidadania e a caridade [Tese de Doutorado]. Campinas: Instituto de Economia, Universidade de Campinas; 2005.
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    Fagnani E. O fim de um ciclo improvável (1988-2016): a política social dos governos petistas e a derrocada da cidadania pós-golpe. In: Marigini G, Medeiros J, organizadores. Os cinco mil dias do lulismo: transformação ou transformismo? São Paulo: Fundação Lauro Campos; 2017. p. 117-32.
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    Bahia L. O SUS e os desafios da universalização do direito à saúde: tensões e padrões de convivência entre o público e o privado no sistema de saúde brasileiro. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Manuel Suárez J. Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 407-49.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2019
  • Aceito
    27 Jun 2019
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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