A erradicação da poliomielite em quatro tempos

La erradicación de la poliomielitis en cuatro tiempos

José Fernando de Souza Verani Fernando Laender Sobre os autores

Resumos

O objetivo deste artigo é rever o “estado da arte” dos avanços, obstáculos e estratégias para atingir a erradicação global da pólio. As ações de controle da poliomielite iniciaram na década de 1960 com o advento das duas vacinas antipoliomielíticas, a vacina oral da pólio (VOP) e a vacina inativada da pólio (VIP). No período de 1985 a 2020, são implementadas estratégias para atingir a meta de erradicação do poliovírus selvagem (WPV). Após o sucesso da interrupção da transmissão autóctone do WPV na região da Américas, foi lançada a meta da erradicação global. Descrevemos o processo de erradicação em quatro tempos: (1) O advento das vacinas VIP e VOP iniciou a era do controle da poliomielite; (2) A utilização massiva e simultânea da VOP teve impacto significativo sobre a transmissão do poliovírus selvagem no final da década de 1970 no Brasil; (3) Políticas públicas (nacionais e internacionais) decidem pela erradicação da transmissão autóctone do poliovírus selvagem nas Américas e definem as estratégias epidemiológicas para interromper a transmissão; e (4) A implantação das estratégias de erradicação interrompeu a transmissão autóctone do WPV em quase todas as regiões do mundo, exceto no Paquistão e Afeganistão, onde, em 2020, cadeias de transmissão do WPV1 desafiam as estratégias de contenção do vírus. Por outro lado, a persistência e a disseminação da circulação do poliovírus derivado da VOP, em países com baixa cobertura vacinal, somadas às dificuldades para substituir a VOP pela VIP constituem, atualmente, os obstáculos para a erradicação a curto prazo. Finalmente, discutimos as estratégias para superar os obstáculos e os desafios na era pós-erradicação.

Palavras-chave:
Poliomielite; Vacinas; Vigilância Epidemiológica; Erradicação de Doenças


El objetivo de este artículo es revisar el “estado de la cuestión” de los avances, obstáculos y estrategias para alcanzar la erradicación global de la polio. Las acciones de control de la poliomielitis se iniciaron en la década de 1960, con el advenimiento de las dos vacunas antipoliomielíticas, la vacuna oral de la polio (VOP) y la vacuna inactivada de la polio (VIP). En el período de 1985 a 2020, se implementan estrategias para alcanzar la meta de la erradicación del virus de la polio salvaje (WPV). Tras el éxito de la interrupción de la transmisión autóctona del WPV en la región de las Américas, se lanzó la meta de la erradicación global. Describimos el proceso de erradicación en cuatro tiempos: (1) El advenimiento de las vacunas VIP y VOP inició la era del control de la poliomielitis; (2) La utilización masiva y simultánea de la VOP tuvo un impacto significativo sobre la transmisión del virus de la polio salvaje, al final de la década de 1970, en Brasil; (3) Políticas públicas (nacionales e internacionales) deciden la erradicación de la transmisión autóctona del virus de la polio salvaje en las Américas y definen las estrategias epidemiológicas para interrumpir la transmisión; y (4) La implantación de las estrategias de erradicación interrumpió la transmisión autóctona del WPV en casi todas las regiones del mundo, excepto en Paquistán y Afganistán, donde, en 2020, cadenas de transmisión del WPV1 desafían las estrategias de contención del virus. Por otro lado, la persistencia y la diseminación de la circulación del virus de la polio, derivado de la VOP, en países con baja cobertura de vacunas, sumadas a las dificultades para substituir la VOP por la VIP constituyen, actualmente, los obstáculos para la erradicación a corto plazo. Finalmente, discutimos las estrategias para superar los obstáculos y los desafíos en la era poserradicación.

Palabras-clave:
Poliomielitis; Vacunas; Vigilancia Epidemiológica; Erradicación de la Enfermedad


Introdução

As ações de controle da poliomielite iniciaram na década de 1960 com o advento das duas vacinas antipoliomielíticas, a vacina oral da pólio (VOP) e a vacina inativada da pólio (VIP). No período de 1985 a 2020, as ações de controle são orientadas para atingir a meta de erradicação do poliovírus selvagem (WPV). Após o sucesso da interrupção da transmissão autóctone do WPV na região da Américas, foi lançada a meta de erradicar a pólio mundialmente. Coordenada pela Iniciativa Global de Erradicação da Poliomielite (GPEI), a erradicação tem uma narrativa de sucessos e de obstáculos, de consensos e de controvérsias. Optamos pela narrativa histórica para situar o leitor na trajetória do processo de erradicação, descrevendo os diferentes marcos em quatro tempos: (1) A demonstração da citopatogenia viral por Enders, Weller e Robbins, abriu o caminho para o desenvolvimento das vacinas Salk e Sabin contra a poliomielite; (2) A utilização massiva e simultânea da vacina Sabin (VOP) teve impacto definitivo sobre a transmissão do WPV no final da década de 1970 no Brasil, resultando em drástica redução de casos de pólio paralítica; (3) Políticas públicas (nacionais e internacionais) decidiram pela erradicação da transmissão autóctone do WPV nas Américas, definindo as estratégias epidemiológicas para interromper a transmissão; e (4) A implantação das estratégias de erradicação a partir de 1985 nas Américas e a partir de 1988 em todo o mundo interrompeu a transmissão autóctone do WPV em quase todas as regiões do mundo, as últimas cadeias de transmissão estão persistindo entre Afeganistão e Paquistão em 2020. Não obstante, como consequência da utilização da VOP, casos e surtos associados ao poliovírus derivados da vacina (cVDPV) tornaram-se frequentes e disseminados em vários países, exigindo novas estratégias para se alcançar a erradicação final. O objetivo deste artigo é rever o “estado da arte” dos avanços e dos obstáculos para se atingir a erradicação da pólio, entre 1985 e 2020.

Tempo 1

A época áurea do desenvolvimento de vacinas iniciou- se em 1949, com a descoberta da propagação de vírus em culturas de células (...). Embora muito se tivesse aprendido sobre a poliomielite e o vírus que a causava, até 1949 não existia grande expectativa sobre a possibilidade de se desenvolver a prevenção com as técnicas então disponíveis. Foi a publicação de um artigo de Enders (1949) e colaboradores na Science, em que era descrito o cultivo do poliovírus em culturas de tecido humano, que forneceu a ruptura e o achado ansiosamente procurado pelos cientistas que pesquisavam uma vacina contra poliomielite11. Campos ALV, Nascimento DR, Maranhão E. A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2003; 10 Suppl 2:573-600. (p. 583).

A demonstração da citopatogenia viral por Enders et al. 22. Enders JF, Weller TH, Robbins FC. Cultivation of the Lansing strain of poliomyelitis virus in cultures of various human embryonic tissues. Science 1949; 109:85-7. em 1949, possibilitou o desenvolvimento de vacinas seguras e efetivas contra a poliomielite. Com o licenciamento e produção em escala da vacina de vírus vivos atenuados Sabin (VOP) 33. Sabin AB. Oral poliovirus vaccine: history of its development and use and current challenge to eliminate poliomyelitis from the world. J Infect Dis 1985; 151:420-36.,44. Melnick JL. Advantages and disadvantages of killed and live poliomyelitis vaccines. Bull World Health Organ 1978; 56:21-38.,55. Sutter RW, Kew OM, Cochi SL, Aylward RB. Poliovirus vaccine-live. In: Plotkin SA, Orenstein WA, Offit PA, editores. Vaccines. 6th Ed. Philadelphia: Elsevier-Saunders; 2013. p. 598-645., contemplando os três tipos de vírus, poliovírus tipo 1, tipo 2 e tipo 3, e da vacina de vírus inativado Salk (VIP), também trivalente, iniciou-se nos anos 1950 a era de controle da poliomielite paralítica. Logo após o licenciamento da VOP, reconheceu-se o problema de instabilidade genética do vírus vivo atenuado contido na vacina; capaz de recuperar sua neurovirulência diante de determinadas condições imunitárias de alguns recipientes de primeira dose da vacina ou de seus contatos, a utilização da VOP pode produzir casos isolados de paralisia associados à vacina (VAPP). Um estudo retrospectivo realizado no Brasil, estimou a ocorrência de 1 caso para cada 2,39 milhões de primeiras doses e 1 caso para cada 13,03 milhões de doses totais administradas 66. Oliveira LH, Struchiner CJ. Vaccine-associated paralytic poliomyelitis: a retrospective cohort study of acute flaccid paralyses in Brazil. Int J Epidemiol 2000; 29:757-63.. No mundo, estima-se a ocorrência de 2 a 4 casos associados ao vírus vacinal tipo 3 para 1 milhão de nascidos vivos e vacinados com a VOP 44. Melnick JL. Advantages and disadvantages of killed and live poliomyelitis vaccines. Bull World Health Organ 1978; 56:21-38.,55. Sutter RW, Kew OM, Cochi SL, Aylward RB. Poliovirus vaccine-live. In: Plotkin SA, Orenstein WA, Offit PA, editores. Vaccines. 6th Ed. Philadelphia: Elsevier-Saunders; 2013. p. 598-645.. No Brasil, a utilização da VOP trivalente já era prática reconhecida na década de 1960 11. Campos ALV, Nascimento DR, Maranhão E. A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2003; 10 Suppl 2:573-600.,77. Nascimento DR. As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990). Ciênc Saúde Colet 2011; 16:501-11., e alguns pediatras em várias cidades do país utilizavam a VIP 11. Campos ALV, Nascimento DR, Maranhão E. A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2003; 10 Suppl 2:573-600.,77. Nascimento DR. As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990). Ciênc Saúde Colet 2011; 16:501-11.. A vacinação assistemática, no entanto, não alterou o cenário epidemiológico da poliomielite, que na ausência de dados e de vigilância epidemiológica ocorria de forma endêmica, disseminada em todo o país.

O advento do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1973, abriu uma nova era para o controle das doenças preveníveis por vacinação no Brasil. Um surto de pólio de proporções importantes ocorreu nos estados do Paraná e Santa Catarina em 1979, e alterou as condições políticas para que fossem implantadas ações mais efetivas de controle da pólio 11. Campos ALV, Nascimento DR, Maranhão E. A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2003; 10 Suppl 2:573-600.,77. Nascimento DR. As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990). Ciênc Saúde Colet 2011; 16:501-11.,88. Risi Junior JB, organizador. Poliomielite no Brasil: do reconhecimento da doença ao fim da transmissão. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2019.. Dentre as ações adotadas, destaca-se a organização de Dias Nacionais de Vacinação (DNV) em 1980, consistindo na vacinação massiva e simultânea de menores de cinco anos, com a VOP trivalente, em todo o país, duas vezes ao ano, com intervalo de dois meses. Como consequência, a ocorrência de casos de pólio teve uma redução de 90%, de 1.210 casos em 1980 para 120 em 1981 11. Campos ALV, Nascimento DR, Maranhão E. A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2003; 10 Suppl 2:573-600.,77. Nascimento DR. As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990). Ciênc Saúde Colet 2011; 16:501-11.,88. Risi Junior JB, organizador. Poliomielite no Brasil: do reconhecimento da doença ao fim da transmissão. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2019.. Na ausência de uma vigilância epidemiológica efetiva, é razoável supor um impacto ainda maior dos DNV na ocorrência de casos de pólio. O processo de desenvolvimento das políticas sanitárias e das condições que possibilitaram um plano de controle da pólio mais efetivo no Brasil é detalhado, com vasta bibliografia, nos trabalhos de Nascimento 11. Campos ALV, Nascimento DR, Maranhão E. A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2003; 10 Suppl 2:573-600.,77. Nascimento DR. As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990). Ciênc Saúde Colet 2011; 16:501-11. e de Risi Junior 88. Risi Junior JB, organizador. Poliomielite no Brasil: do reconhecimento da doença ao fim da transmissão. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2019.. Esses trabalhos sistematizam a história da erradicação da pólio no Brasil e relatam detalhadamente as estratégias adotadas nas várias fases da erradicação. Nos anos seguintes da década de 1980, a redução do número de casos de pólio paralítica manteve-se constante, agora corroborada por um sistema de vigilância epidemiológica implantado em todos as Unidades da Federação. Como parte do sistema de vigilância da pólio, estabeleceu-se a rede de laboratórios para diagnóstico e vigilância viral, ao lado de outras ações que irão constituir o conjunto de estratégias para a erradicação. É importante ressaltar que grande parte das estratégias desenvolvidas no Brasil configuraram, mais tarde, as estratégias adotadas na erradicação mundial da pólio. Em 1985, a Organização Pan Americana da Saúde (OPAS) propôs aos países do continente erradicar a transmissão autóctone dos vírus selvagens da pólio 11. Campos ALV, Nascimento DR, Maranhão E. A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2003; 10 Suppl 2:573-600.,77. Nascimento DR. As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990). Ciênc Saúde Colet 2011; 16:501-11.,88. Risi Junior JB, organizador. Poliomielite no Brasil: do reconhecimento da doença ao fim da transmissão. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2019., definindo as estratégias e ações a serem adotadas no âmbito continental.

Tempo 2

Em vista do impacto sobre a ocorrência de casos de pólio no Brasil, a VOP utilizada em DNV foi escolhida como a “bala de prata” e adotada como estratégia principal para erradicar a transmissão autóctone do WPV nas Américas. A VOP é capaz de interromper a transmissão do WPV por conter vírus vivo atenuados que são excretados em abundância após a vacinação. A circulação de vírus vacinais no meio ambiente durante 1 a 2 meses após as campanhas de vacinação em massa, de crianças menores de cinco anos, possibilita a imunização indireta de suscetíveis que não são atingidos pela vacinação. Outras características da VOP que a elegeram a vacina de escolha para a erradicação são seu baixo custo, fácil administração e indução da imunidade mucosa e humoral. Ao se atingir mais de 95% do grupo-alvo, repetidamente, de forma homogênea, isto é, sem bolsões importantes de suscetíveis, a circulação dos vírus selvagens se torna cada vez mais inviável, interrompendo as cadeias de transmissão e a ocorrência de casos de pólio paralítica. A organização de DNV requer uma articulação operacional complexa por parte dos serviços de saúde, ampliando a capacidade de vacinação para cobrir todo o grupo-alvo no menor espaço de tempo, normalmente em dois dias no ano. No Brasil, a rede de vacinação chegou a mais de 115 mil postos 77. Nascimento DR. As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990). Ciênc Saúde Colet 2011; 16:501-11.,88. Risi Junior JB, organizador. Poliomielite no Brasil: do reconhecimento da doença ao fim da transmissão. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2019., incluindo as unidades fixas de saúde. Toda a logística de rede de frio para a manutenção das vacinas e as operações de vacinação são realizadas por profissionais de saúde ou sob sua supervisão. O comparecimento do público-alvo é, no entanto, o que decide o sucesso ou o fracasso da empreitada. Quanto mais efetiva for a mobilização social, maior a chance de sucesso. Para tal, são engajados os setores mais diversos das sociedades, como escolas públicas e privadas, igrejas, clubes de serviço e alguns setores do comércio e da indústria. A erradicação da pólio inaugurou uma experiência inédita na saúde pública, uma parceria público-privada com os clubes de serviço associados ao Rotary Internacional. Desde o início da erradicação nas Américas, o Rotary Internacional por meio de seu Programa PolioPlus, tem financiado ações de vacinação, doação de vacinas, contratação de profissionais para a vigilância epidemiológica e participação direta nas operações de vacinação por intermédio da mobilização de setores privados 99. Rotary Internacional; Comissão Nacional PolioPlus. Memória da PolioPlus no Brasil. Belo Horizonte: Edições Cuatiara; 1996.,1010. Sever JL, McGovern M, Scott B, Pandak C, Edwards A, Goodstone D. Rotary's PolioPlus Program: lessons learned, transition planning, and legacy. J Infect Dis 2017; 216 Suppl 1:S355-61..

À estratégia principal de DNV com a VOP foram adicionadas a estratégia para identificar casos suspeitos de pólio - vigilância epidemiológica das paralisias flácidas agudas (PFA) - e a estratégia de contenção - vacinação de bloqueio - para interromper as cadeias de transmissão do poliovírus na comunidade. No âmbito do sistema de vigilância epidemiológica, introduziu-se a definição de caso suspeito de pólio: qualquer caso de PFA em menores de 15 anos, que deve ser investigado dentro de 24 horas da notificação, quando duas amostras de fezes devem ser colhidas com intervalo de 48 horas para os testes laboratoriais. No início da paralisia, quando a excreção viral é mais intensa, a probabilidade de capturar material genético do vírus é maior. Os métodos da biologia molecular passaram a fazer parte do cotidiano dos laboratórios de referência para o diagnóstico da pólio, pelo isolamento viral e pela reação em cadeia da polimerase (PCR) que processa a diferenciação intratípica do vírus e permite à epidemiologia molecular estabelecer relação genética entre os vírus, orientando as ações de contenção de surtos. A efetividade da vigilância das PFA’s é avaliada usando-se dois indicadores. O primeiro é a taxa de detecção anual de PFA não pólio, de mais de 1 caso por 100 mil habitantes menores de 15 anos, em países que foram certificados livres da pólio e que devem manter a vigilância até a certificação global da erradicação, e de mais de 2 casos em países endêmicos. Esse indicador tem sido considerado sensível o suficiente para detectar casos de pólio. O segundo indicador é o percentual de amostras de fezes de casos de PFA que chegaram ao laboratório dentro de 14 dias do início da paralisia e em boas condições de temperatura e embalagem. Esse indicador deve ser maior do que 80% dos casos de PFA notificados e investigados. Todos os casos suspeitos, confirmados laboratorialmente ou não, devem ser revisitados após 60 dias para a confirmação da paralisia, sequela irreversível na poliomielite. Alguns casos permanecem na categoria de prováveis quando o exame clínico é sugestivo de pólio mas os testes laboratoriais resultaram negativos para poliovírus. Outros casos são considerados compatíveis com pólio, sem amostras laboratoriais, por razões logísticas - dificuldade de conservação das amostras em temperatura adequada, contaminação das amostras, perda ou impossibilidade de colhê-las em tempo hábil. Aqueles casos classificados como compatíveis com pólio, ou prováveis, são reexaminados e analisados clinicamente por uma comissão de especialistas clínicos em neurologia, pediatria e epidemiologia, com vistas à classificação final de cada caso. Com o objetivo de conter a cadeia de transmissão do vírus em torno de caso suspeito ou confirmado, é introduzida a vacinação de bloqueio de surto/operação limpeza (MopUp). Com base na confirmação de um caso suspeito, as medidas de contenção do surto são acionadas, como a vacinação de bloqueio em torno do caso com a vacinação/revacinação de menores de cinco anos, independentemente do histórico vacinal, em um raio de 2 a 5 km. Em áreas urbanas, pela dificuldade de limitar o perímetro de circulação do vírus, é comum vacinar-se todo um bairro ou mesmo toda a cidade. Em áreas endêmicas onde os bolsões de suscetíveis persistem, organiza-se a vacinação na modalidade casa a casa.

A vigilância virológica ambiental é introduzida no programa de erradicação para complementar a vigilância das PFA e ampliar o monitoramento da circulação do vírus nas comunidades; realizado em sistemas de esgotos urbanos, o monitoramento tem sido um instrumento importante para conhecer a extensão da circulação viral no meio ambiente. A captura de águas de dejetos tem técnica de coleta simples, utiliza o método de ultracentrifugação e RT-PCR e tem sido efetiva para a vigilância, sobretudo em países com grandes populações como a Índia, que incluiu, no processo de certificação da erradicação, evidências da ausência de circulação do WPV, produzidas pela vigilância ambiental. Há mais de 30 anos utiliza-se a vigilância ambiental no monitoramento de vírus 1111. Asghar H, Diop OM, Weldegrebiel G, Malik F, Shetty S, El Bassioni L, et al. Environmental surveillance for polioviruses in the Global Polio Eradication Initiative. J Infect Dis 2014; 210 Suppl 1:S294-303.,1212. Ahmed W, Angel N, Edson J, Bibby K, Bivins A, O'Brien JW, et al. First confirmed detection of SARS-CoV-2 in untreated wastewater in Australia: a proof of concept for the wastewater surveillance of COVID-19 in the community. Sci Total Environ 2020; 728:138764.. A vigilância ambiental ganha importância crescente nas estratégias pós-erradicação da pólio e como instrumento complementar de outros programas de controle de doenças.

Ao longo dos anos, as estratégias de erradicação atingiram resultados importantes, com forte redução dos casos de pólio associados ao WPV. Considerando o sucesso alcançado na região das Américas, a Assembleia Mundial de Saúde, em maio de 1988, adotou a resolução para a erradicação mundial da transmissão autóctone do WPV da pólio até o ano 2000 1313. World Health Assembly. Global eradication of poliomyelitis by the year 2000. Geneva: World Health Assembly; 1988.. Foi lançada a GPEI, parceria entre a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Centro de Controle e Prevanção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, a Fundação Bill & Melinda Gates e a Rotary International. A GPEI tem a função, entre outras, de coordenar e executar com os governos locais as ações de erradicação.

Tempo 3

Um marco no processo de erradicação foi atingido em 1991 no Peru, na cidade de Junín, quando ocorreu o último caso de paralisia associado ao WPV nas Américas. Em 1994, a Comissão Internacional de Certificação da Erradicação da Pólio nas Américas, constituída por membros independentes da comunidade científica, certificou a erradicação da transmissão do WPV. Ao lançar a meta de erradicação mundial, a OMS estimava uma incidência de 350 mil casos de paralisia associados aos 3 tipos de WPV em 125 países 77. Nascimento DR. As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990). Ciênc Saúde Colet 2011; 16:501-11.. Em 2003, a meta de erradicação global no ano 2000 não foi atingida, mas o número de países endêmicos foi reduzido de 125 para 7. Evidenciou-se a redução de 99% de casos no mundo com a interrupção da transmissão autóctone dos 3 tipos de WPV nas regiões das Américas (1994), do Pacífico Ocidental (2000) e da Europa (2002), que tiveram a erradicação certificada por comissões internacionais independentes. Não obstante o progresso alcançado, baixas coberturas vacinais com a VOP prevalecem em áreas politicamente conturbadas, em áreas onde se constata “cansaço” dos DNV gerados ao longo dos anos sem pólio e em outras áreas onde surgem movimentos antivacinas. Tais condições criaram ambiente favorável à ocorrência frequente e disseminada de cVDPV, predominantemente o tipo 2. Os vírus vivos contidos na VOP têm o potencial de recuperar sua neurovirulência e causar paralisias clinicamente similares àquelas causadas pelo vírus selvagem 1414. Kew OM, Morris-Glasgow V, Landaverde M, Burns C, Shaw J, Garib Z, et al. Outbreak of poliomyelitis in Hispaniola associated with circulating type 1 vaccine-derived poliovirus. Science 2002; 296:356-9.. Os primeiros cVDPV datam de 1988 no Egito 1414. Kew OM, Morris-Glasgow V, Landaverde M, Burns C, Shaw J, Garib Z, et al. Outbreak of poliomyelitis in Hispaniola associated with circulating type 1 vaccine-derived poliovirus. Science 2002; 296:356-9.. Conhecidos retrospectivamente, após a investigação de casos semelhantes ocorridos na região do Caribe, os surtos no Egito se prolongaram por quatro anos, até a interrupção da transmissão. Em 2000-2001, pela primeira vez, um surto associado ao vírus tipo 1 derivado da vacina (cVDPV1) foi detectado na Ilha de Hispaniola (Haiti e República Dominicana) 1414. Kew OM, Morris-Glasgow V, Landaverde M, Burns C, Shaw J, Garib Z, et al. Outbreak of poliomyelitis in Hispaniola associated with circulating type 1 vaccine-derived poliovirus. Science 2002; 296:356-9.. Todos os casos foram em crianças não vacinadas e todos ocorreram em comunidades com coberturas vacinais variando entre 7% e 40%. Ocorreram 13 casos na República Dominicana e 8 no Haiti, aí incluídos dois casos fatais. O cVDPV1 que circula no meio ambiente tem propriedades biológicas indistinguíveis do WPV e, possivelmente, se originou de uma dose de VOP administrada entre 1998 e 1999. A OPAS declarou a epidemia na Ilha de Hispaniola emergência regional e prontamente foram realizados os DNV nos dois países. O resultado obtido com a vacinação, atingindo cobertura vacinal homogêneas acima de 95%, repetida durante três anos, controlou a epidemia, mas outros surtos se multiplicaram em todas as regiões do mundo, durante as duas décadas seguintes, vis-à-vis o aumento da utilização da VOP trivalente e, por consequência, maior circulação de vírus vacinal no meio ambiente 1515. Kew OM, Roland WS, Esther MG, Walter RD, Mark AP. Vaccine-derived polioviruses and the endgame strategy for global polio eradication. Annu Rev Microbiol 2005; 59:587-635..

Tempo 4

As estratégias da erradicação, sobretudo a utilização da VOP, são redefinidas e adequadas para responder aos novos cenários epidemiológicos de ocorrência de casos de pólio paralítica associados aos cVDPV. Em um cenário de ausência de circulação do WPV tipo 2 (WPV2), cuja erradicação mundial foi certificada em 2015, a VOP teve sua formulação alterada para conter apenas os vírus tipo 1 e tipo 3. O vírus tipo 3 (WPV3), ausente desde 2012, teve sua erradicação certificada em 2019. Com a erradicação do WPV3, a VOP foi modificada para conter apenas o vírus tipo 1. Nessa nova formulação, a VOP monovalente para o tipo 1 tem sido utilizada nas áreas endêmicas do Paquistão e Afeganistão, últimos reservatórios de WPV1 no mundo.

Diante de dificuldades operacionais, políticas e econômicas para executar as ações preconizadas e conter os surtos de cVDPV, disseminados em vários países, a meta de erradicação global foi mais uma vez adiada, agora para 2012. Uma vez mais a meta não foi alcançada. Com a circulação do cVDPV em expansão, aumentou a utilização da VOP monovalente para o tipo 2, gerando mais surtos. Para responder aos crescentes desafios e atingir a meta de erradicação global, a GPEI desenvolveu um plano, Endgame, para o período 2013-2018, focalizando no estágio final da erradicação e na era pós-erradicação. No plano estão identificados os países prioritários para a erradicação e ações correspondentes à situação epidemiológica. Em 2013, a OMS declarou a erradicação da pólio emergência internacional, segundo o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), estabelecendo um comitê de emergência para monitorar a situação e assessorar a GPEI no processo de erradicação global, agora sem data definida. O desenvolvimento de um terceiro sistema de vigilância foi introduzido a partir de 2015 visando a identificar e controlar indivíduos portadores de imunodeficiência, outra fonte de espalhamento do vírus derivado da vacina, pela excreção prolongada de poliovírus (iVDPV) 1616. World Health Organization. Global Polio Surveillance Action Plan, 2018-2020. Geneva: World Health Organization; 2019.,1717. Aylward RB, Cochi SL. Framework for evaluating the risks of paralytic poliomyelitis after global interruption of wild poliovirus transmission. Bull World Health Organ 2004; 82:40-6.. Embora não se conheça totalmente a magnitude do problema, a tendência é de redução do número de indivíduos naquela condição que excretam o poliovírus, através de tratamento com antivirais e da mortalidade precoce de parte dos imunodeficientes, ao longo da infância 1717. Aylward RB, Cochi SL. Framework for evaluating the risks of paralytic poliomyelitis after global interruption of wild poliovirus transmission. Bull World Health Organ 2004; 82:40-6.. Os excretores de poliovírus são casos raros entre os imunodeficientes que, normalmente, não excretam poliovírus por longos períodos; uma pequena proporção deles pode excretar o poliovírus por períodos mais longos, por mais de seis meses. Um estudo realizado em sete países de média e baixa renda entre 2008-2013, investigou 562 indivíduos imunodeficientes 1818. Li L, Ivanova O, Driss N, Tiongco-Recto M, Silva R, Shahmahmoodiet S, et al. Poliovirus excretion among persons with primary immune deficiency disorders: summary of a seven-country study series. J Infect Dis 2014; 210 Suppl 1:S368-72.. Desses, apenas um excretou poliovírus durante mais de seis meses (ponto de corte, no estudo, para definir excretores de longo prazo). Um estudo mais recente 1919. Macklin G, Liao Y, Takane M, Dooling K, Gilmour S, Mach O, et al. Prolonged excretion of poliovirus among individuals with primary immunodeficiency disorder: an analysis of the World Health Organization registry. Front Immunol 2017; 8:1103. analisou todos os casos (n = 101) de iVDPV ocorridos entre 1962 e 2016 no registro de imunodeprimidos que mantém a OMS. A mediana do período de excreção foi de 1,3 ano e 90% dos indivíduos pararam de excretar depois de 3,7 anos. Observou-se uma mudança na ocorrência de casos em países de alta renda para os de renda média ao longo do período estudado, chamando a atenção para o aumento de risco para a transmissão do poliovírus, nestes países, após cessar o uso da VOP. No estudo, a variável síndrome de imunodeficiência e lugar de residência em países de alta renda foi fator de risco para excretores de longo prazo. O plano do Endgame foi revisado e ganhou nova versão atualizada que está em vigor para o período 2019-2023 2020. Global Polio Eradication Initiative. Polio eradication & endgame strategic plan 2019-2023. Geneva: World Health Organization; 2019.. Evidenciada a persistência de circulação de cVDPV e a necessidade de reduzir a utilização da VOP, foi introduzida a estratégia para substituir a VOP pela VIP em todo o mundo 2020. Global Polio Eradication Initiative. Polio eradication & endgame strategic plan 2019-2023. Geneva: World Health Organization; 2019.,2121. Bandyopadhyay AS, Garon J, Seib K, Orenstein WA. Polio vaccination: past, present and future. Future Microbiol 2015; 10:791-808.,2222. John TJ, Dharmapalan D. The moral dilemma of the polio eradication. Indian J Med Ethics 2019; 4:294-7.. A Shift, nome da estratégia em inglês, como ficou conhecida, deveria ser completada ao longo de 2014 e 2015, quando todos os países introduzissem em seu calendário básico de vacinação, duas doses da VIP, aos quatro meses e outra aos seis meses de idade. A introdução da VIP na rotina teve como objetivo garantir imunidade para o poliovírus tipo 2 e permitir a total substituição da VOP trivalente pela bivalente para tipo 1 e tipo 3, o que ocorreu globalmente em 2016 na imunização de rotina e campanhas 2323. World Health Organization. Polio vaccines: WHO position paper - March, 2016. Wkly Epidemiol Rec 2016; 91:145-68.. Para viabilizar a substituição de forma escalonada, levou-se em consideração a capacidade de produção mundial da VIP, os custos, treinamento de pessoal e readequação da rede de frio. A introdução da VIP começou um ano antes da interrupção do uso da VOP trivalente, para permitir o aumento da produção e redução do preço da vacina. Ainda hoje, a produção e disponibilidade da VIP é inferior à demanda e, aliadas ao alto custo, vários países têm dificuldades de obtê-la. Em 2016, a OMS estabeleceu prioridades para garantir que não faltasse a VIP para países de alto risco 2424. Global Polio Eradication Initiative. The introduction of IPV, the OPV switch, and risk mitigation. https://www.who.int/immunization/diseases/poliomyelitis/endgame_objective2/inactivated_polio_vaccine/Update_on_supply_constraints_for_IPV-APRIL2016-final.pdf (acessado em 18/Mai/2020)
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. Embora todos tenham feito a transição da VOP3 para VOP2, 35 países de menor risco não introduziram a VIP no tempo previsto, ou tiveram de suspender a vacinação com VIP após iniciada. Outros 14 países só introduziram a VIP na imunização infantil de rotina em 2018 e outros dois países apenas em 2019. No final de 2019, ainda havia uma coorte de aproximadamente 43 milhões de crianças não vacinadas com VIP e, portanto, sem imunidade para o poliovírus tipo 2 2525. Sutter RW, Cochi SL. Inactivated poliovirus vaccine supply shortage: is there light at the end of the tunnel? J Infect Dis 2019; 220:1545-6..

Complementando a estratégia de imunização na rotina dos programas, manteve-se a terceira dose com a VOP bivalente. Países com condições econômicas mais favoráveis, como os de alta renda, substituíram totalmente a VOP pela VIP anos antes. O Brasil e outros 31 países das Américas continuam utilizando a VOP bivalente nas doses de reforço, aos 15 meses e quatro anos 2626. Pedreira C, Thrush E, Rey G, Chevez AE, Jauregui B. The path towards polio eradication over the 40 years of the Expanded Program on Immunization in the Americas. Rev Panam Salud Pública 2017; 41:e154.. A dificuldade para se obter a VIP continua sendo o maior desafio para a era pós-erradicação, apesar de vários países estarem utilizando a vacina com doses fracionadas. A possibilidade de usar doses fracionadas da VIP 2626. Pedreira C, Thrush E, Rey G, Chevez AE, Jauregui B. The path towards polio eradication over the 40 years of the Expanded Program on Immunization in the Americas. Rev Panam Salud Pública 2017; 41:e154.,2727. Anand A, Molodecky NA, Pallansch MA, Sutter RW. Immunogenicity to poliovirus type 2 following two doses of fractional intradermal inactivated poliovirus vaccine: a novel dose sparing immunization schedule. Vaccine 2017; 35:2993-8.,2828. Haldar P, Agrawal P, Bhatnagar P, Tandon R, McGray S, Zehrung D, et al. Fractional-dose inactivated poliovirus vaccine, India. Bull World Health Organ 2019; 97:328-34. deverá aumentar a cobertura vacinal e a consequente redução de suscetíveis ao poliovírus. A utilização da VIP em doses fracionadas (0,1mL ao invés de 0,5mL) supõe mudanças no calendário de vacinação - 6 e 14 semanas - e procedimento de administração (intradérmica ao invés de intramuscular) 2828. Haldar P, Agrawal P, Bhatnagar P, Tandon R, McGray S, Zehrung D, et al. Fractional-dose inactivated poliovirus vaccine, India. Bull World Health Organ 2019; 97:328-34.. Mas o problema da circulação do cVDPV2 não está resolvido. Se, por um lado, a VIP tem alta efetividade em conferir imunidade, sem o risco de produzir vírus derivados da vacina, por outro, ela não confere o mesmo tipo de imunidade da VOP que previne a transmissão de pessoa a pessoa, necessária para conter os surtos de cVDPV. Assim, simultaneamente à ampliação do uso da VIP e buscando responder em curto espaço de tempo, entre 2020 e 2021, aos surtos que ocorrem em países de África, Ásia e Oriente Médio, a GPEI investiu no desenvolvimento de duas novas vacinas vivas, nVOP, resultado de técnicas genéticas que reduzem a reversão do vírus à neurovirulência 2929. Van Damme P, De Coster I, Bandyopadhyay AS, Revets H, Withanage K, De Smedt P, et al. The safety and immunogenicity of two novel live attenuated monovalent (serotype 2) oral poliovirus vaccines in healthy adults: a double-blind, single-centre phase 1 study. Lancet 2019; 394:148-58.. Os resultados positivos dos estudos da Fase I das 2 vacinas candidatas foram animadores e os estudos de Fase II iniciaram em 2018. Há expectativa de que os resultados, se positivos, devem acelerar o licenciamento e a utilização da nVOP2 antes do final de 2020 3030. Global Polio Eradication Initiative. GPEI strategy for control of cVDPV2, 2020-2021. http://polioeradication.org/wp-content/uploads/2020/02/GPEI-nOPV-cVDPV2-strategy-fact-sheet-20200205.pdf (acessado em 18/Mai/2020).
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,3131. World Health Organization. Statement of the twenty-fifth polio IHR Emergency Committee. https://www.who.int/news/item/23-06-2020-statement-of-the-25th-polio-ihr-emergency-committee (accessado em 23/Jun/2020).
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.

Benefícios econômicos da erradicação vs. controle

O aspecto econômico da erradicação deve ser considerado. Em 2013, a GPEI em sua primeira versão do Endgame 2013-2018, estimou que para implementar o plano seria necessário um custo adicional de USD 5 bilhões, além dos USD 9 bilhões utilizados na erradicação desde 1988. Os benefícios de erradicar a pólio poderão ser ampliados para além da área da saúde. Algumas modelagens trabalham com projeções de despesas evitadas com a erradicação, tais como a produção de vacinas, as atividades de vacinação e de vigilância, incluindo laboratórios e o custo social de indivíduos com paralisia. A GPEI estimou, com base em projeções de Tebbens et al. 3232. Tebbens R, Pallansch M, Cochi S, Wassilak S, Linkins J, Sutter R, et al. Economic analysis of the Global Polio Eradication Initiative. Vaccine 2010; 29:334-43., que a erradicação deverá significar uma economia de USD 40-50 bilhões até 2035, considerando que as despesas nos primeiros anos foram maiores com a erradicação, mas ao longo do tempo ela tende a ser progressivamente menor do que a estratégia de controle.

Principais desafios para a erradicação final da pólio

Em 2020, como previsto no plano do endgame, a GPEI avaliou o estágio atual da vigilância do poliovírus em 40 países considerados prioritários para se atingir a erradicação final 3333. Greene SA, Ahmed J, Datta SD, Burns CC, Quddus A, Vertefeuille JF, et al. Progress toward polio eradication - worldwide, January 2017-March 2019. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2019; 68:458-62.. Os critérios de seleção e a lista dos países prioritários estão explicitados no plano 2019-2023 2020. Global Polio Eradication Initiative. Polio eradication & endgame strategic plan 2019-2023. Geneva: World Health Organization; 2019.. Foram analisados os indicadores da qualidade do desempenho da vigilância de PFA não pólio em menores de 15 anos (> 2/100 mil) e a proporção de casos (> 80%) com amostras adequadas (duas amostras com intervalo de 24 horas e colhidas dentro de 14 dias do início da paralisia) enviadas ao laboratório de referência. Os resultados indicam que, de modo geral, os países apresentaram declínio nos indicadores de vigilância, de 2018 a 2019. Evidenciou-se o declínio da proporção de países que cumpriram os dois indicadores, de 83% em 2018 para 63% em 2019. Em 2019, os números de casos associados a WPV1 e a cVDPV2 aumentaram, respectivamente, para 176 e 368, com mais de 40 surtos de cVDPV na África e Ásia. Em 2020, até 5 de agosto, foi notificado um total de 85 casos de pólio paralítica por WPV1 em dois países (Afeganistão e Paquistão) e 210 casos de cVDPV em 15 países da África, Ásia e Pacífico Ocidental. O comitê de emergência do RSI para a pólio em sua mais recente reunião, em junho de 2020 3131. World Health Organization. Statement of the twenty-fifth polio IHR Emergency Committee. https://www.who.int/news/item/23-06-2020-statement-of-the-25th-polio-ihr-emergency-committee (accessado em 23/Jun/2020).
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, considerando a pandemia de COVID-19, emitiu uma declaração alertando para o alto risco de importação/exportação de poliovírus, tanto selvagem como cVDPV, devido à redução das ações de bloqueio para a contenção do vírus e à diminuição das vacinações de rotina. É importante notar que vários países vêm diminuindo as coberturas vacinais de rotina, não só de pólio mas do esquema básico de vacinação infantil, nos últimos anos. Baixas coberturas vacinais propiciaram a reintrodução do sarampo nas Américas em 2018 e a ampliação da circulação do cVDPV em países que, historicamente, têm tido dificuldade de alcançar coberturas vacinais adequadas. No entanto, a possibilidade de se utilizar a nVOP para conter os surtos de cVDPV, combinada ao aumento de coberturas vacinais com VIP, indica caminhos promissores para interromper a transmissão do WPV1 e do cVDPV. Após a interrupção da transmissão do WPV, a substituição da VOP pela VIP deverá ser completada a médio prazo. Na ausência de circulação de poliovírus, na fase pós-certificação da erradicação, a contenção de todos os poliovírus em laboratórios será fundamental para eliminar a possibilidade de reintrodução acidental do vírus na comunidade 2020. Global Polio Eradication Initiative. Polio eradication & endgame strategic plan 2019-2023. Geneva: World Health Organization; 2019.,2626. Pedreira C, Thrush E, Rey G, Chevez AE, Jauregui B. The path towards polio eradication over the 40 years of the Expanded Program on Immunization in the Americas. Rev Panam Salud Pública 2017; 41:e154.. Nesse sentido, os países das Américas iniciaram em 2015 a destruição de todos os WPV, cVDPV e Sabin tipo 2, de acordo com o plano regional de contenção do vírus na era pós-erradicação 2626. Pedreira C, Thrush E, Rey G, Chevez AE, Jauregui B. The path towards polio eradication over the 40 years of the Expanded Program on Immunization in the Americas. Rev Panam Salud Pública 2017; 41:e154.. Nesse cenário de dificuldades para interromper as cadeias de transmissão do WPV1 e conter a circulação do cVDPV, dificuldades que são circunstanciais mas que poderão persistir a médio prazo, reemerge a antiga controvérsia de erradicação versus controle da pólio 3434. Razum O, Sridhar D, Jahn A, Zaidi S, Ooms G, Müller O. Polio: from eradication to systematic, sustained control. BMJ Glob Health 2019; 4:e001633.. O debate que iniciou na década de 1990 3535. Taylor CE, Cutts F, Taylor ME. Ethical dilemmas in current planning for polio eradication. Am J Public Health 1997; 87:922-5.,3636. Sutter RW, Cochi SL. Ethical dilemmas in worldwide polio eradication programs. Am J Public Health 1997; 87:913-6. argumentava, de um lado, que a erradicação como programa vertical desviaria recursos que deveriam ser investidos no desenvolvimento dos sistemas de atenção primária e, particularmente, do programa de imunizações nos países menos favorecidos economicamente. Do outro lado, foram produzidas evidências que corroboraram o impacto positivo na estruturação tanto da atenção primária quanto dos programas de imunizações. A erradicação da pólio nas Américas teve papel estruturante na atenção primária, organizando o serviço e liderando outras ações de saúde pública, segundo o relatório produzido por uma comissão independente 3737. Pan American Health Organization. The impact of the expanded program on immunization and the polio eradication initiative on health systems in the Americas: final report of the "Taylor Commission". Washington DC: Pan American Health Organization; 1995.. O relatório é cauteloso ao reconhecer que o impacto da erradicação foi positivo no contexto específico da estrutura sanitária da América Latina e não poderia ser extrapolado para regiões que tivessem sistemas sanitários menos desenvolvidos. Mais recentemente, estudos semelhantes foram realizados em outros continentes e seus resultados corroboraram os da Comissão Taylor nas Américas, mas não foram suficientemente contundentes para encerrar a controvérsia 3737. Pan American Health Organization. The impact of the expanded program on immunization and the polio eradication initiative on health systems in the Americas: final report of the "Taylor Commission". Washington DC: Pan American Health Organization; 1995.,3838. Closser S, Cox K, Parris TM. The impact of polio eradication on routine immunization and primary health care: a mixed-methods study. J Infect Dis 2014; 210 Suppl 1:S504-13..

A escolha da VOP, nos programas de imunização e na erradicação, tem sido objeto de polêmica ao longo das décadas. O potencial em produzir casos de VAPP e ser a fonte de circulação disseminada do cVDPV, leva o debate sobre a vacina para o campo da ética médica, ao considerar que qualquer caso de paralisia produzido pela vacina não é eticamente aceitável 2222. John TJ, Dharmapalan D. The moral dilemma of the polio eradication. Indian J Med Ethics 2019; 4:294-7.. A introdução da nVOP deverá interromper a circulação do cVDPV2 e a progressiva substituição da VOP pela VIP, ainda que fracionada, deverá resolver o problema da imunidade individual ao poliovírus. Essas duas estratégias têm o potencial de conter, além do poliovírus, o debate ético que acompanha a trajetória de utilização da VOP e a proposta de erradicação. Poderá ser revitalizante para os sistemas de saúde, particularmente nos países menos favorecidos, completar o trabalho de erradicação da poliomielite. O impacto positivo do sucesso da erradicação poderá se estender aos programas de imunização, da atenção primária e de outras ações de saúde pública.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2020
  • Revisado
    03 Set 2020
  • Aceito
    08 Set 2020
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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