Notas sobre acumulação de capital e “epidemias” contemporâneas

Notes on capital accumulation and contemporary “epidemics”

Notas sobre acumulación de capital y “epidemias” contemporáneas

Fernando Rugitsky Sobre o autor

Em alguns anos, quando a humanidade tiver finalmente superado o estado de calamidade causado pelo novo coronavírus, é possível que reste a sensação de que a pandemia foi uma crise pontual, um ponto fora das longas curvas de redução da taxa de mortalidade e de aumento da expectativa de vida. Essa sensação, no entanto, poderá desviar a atenção do fato de que a violência das relações sociais capitalistas tem comprometido, para grupos cada vez mais volumosos, o acesso às condições de vida possibilitadas pelos avanços da saúde pública. Ao discutir os impactos da pandemia no Brasil à luz do processo de financeirização do capitalismo, José Carlos de Souza Braga e Giuliano Contento de Oliveira 11. Braga JCS, Oliveira GC. Dinâmica do capitalismo financeirizado e o sistema de saúde no Brasil: reflexões sob as sombras da pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00325020. contribuem para colocar em destaque, justamente, as tensões entre o modo de produção capitalista e a saúde pública.

É inegável que as ciências médicas têm obtido, ao longo dos últimos 200 anos, avanços capazes de permitir que vivêssemos mais tempo e com mais saúde. O sucesso e a agilidade inédita no desenvolvimento de vacinas para o novo coronavírus testemunham a imensa capacidade de cooperação humana e o progresso científico. Mas não é possível eclipsar o fato de que, pelo menos nas últimas duas décadas, tais avanços conviveram com um rastro de sofrimento e de mortes estreitamente vinculado à acumulação capitalista. O que Marx 22. Marx K. O Capital: crítica da economia política. Livro Primeiro, Tomo 2. São Paulo: Abril Cultural; 1996. diz a respeito da maquinaria também vale para a medicina: as contradições inseparáveis da utilização capitalista da medicina não decorrem da própria medicina, mas de sua utilização capitalista. Uma tensão que vem à tona quando se examina a dimensão espacial da economia capitalista em conjunto com as evidências sobre mortalidade.

No início do século XXI, o capitalismo mundial funcionou de acordo com uma articulação triangular, que concentrou, em partes diferentes do planeta, os mercados de consumo, a produção de mercadorias e a produção de insumos primários 33. Rugitsky F. The decline of neoliberalism: a play in three acts. Brazilian Journal of Political Economy 2020; 40:587-603.. Os Estados Unidos e a maior parte dos países europeus assumiram parte substancial do consumo global, enquanto a produção de mercadorias deslocou-se para as novas oficinas do mundo localizadas na Ásia. O terceiro vértice desse triângulo é ocupado pelos países da América do Sul, da África e do Oriente Médio, especializados em prover insumos primários, agrícolas e minerais, para os circuitos globais do capital.

Essa articulação triangular parece ter uma contrapartida pouco notada: uma geografia de sofrimento e morte. O principal país do vértice do consumo - os Estados Unidos - é palco, desde o início do século XXI, de uma “epidemia de mortes” (a expressão é de Case & Deaton 44. Case A, Deaton A. Deaths of despair and the future of capitalism. Princeton: Princeton University Press; 2020.), provocada pela elevação das mortes por três causas: suicídios, overdose de drogas e doenças do fígado causadas pela ingestão de álcool. As três causas de morte, chamadas conjuntamente de “mortes por desespero”, são “todas elas auto-infligidas, rapidamente com uma arma, mais lenta e incertamente com a dependência de drogas e ainda mais lentamente pelo álcool4 (p. 2).

A epidemia das mortes por desespero não afeta homogeneamente a população dos Estados Unidos, mas especialmente as pessoas brancas que não cursaram Ensino Superior. O estudo minucioso de Case & Deaton 44. Case A, Deaton A. Deaths of despair and the future of capitalism. Princeton: Princeton University Press; 2020. para revelar suas causas e sua distribuição demográfica deixa claro que elas não podem ser compreendidas sem levar em consideração os efeitos do deslocamento da produção de mercadorias para a Ásia. Com a saída do capital, empregos estáveis são eliminados e comunidades são desestruturadas, no chamado rust belt. A angústia de parte dessas comunidades é instrumentalizada pela extrema-direita, o que ajuda a explicar a eleição de Donald Trump, em 2016. Parte dessas comunidades busca refúgio nos opioides e no álcool, engrossando as fileiras das mortes por desespero. Com essa trajetória de mortalidade, observa-se uma convergência das taxas de mortalidade entre brancos e negros nos Estados Unidos, na primeira década do século XXI, antes da crise dos opioides atingir as comunidades negras 44. Case A, Deaton A. Deaths of despair and the future of capitalism. Princeton: Princeton University Press; 2020.. Desde 2015, de acordo com estimativas do Global Burden of Disease (Carga Global de Morbidade), overdose de drogas é a principal causa de morte de pessoas entre 15 e 49 anos nos Estados Unidos, aumentando quase dez vezes em menos de três décadas. Em 1990, era apenas a nona causa de morte, atrás de câncer, doenças cardiovasculares, homicídios, entre outras.

No vértice das oficinas do mundo, talvez um dos casos mais simbólicos seja o dos suicídios na fábrica da Foxconn, nos subúrbios de Shenzhen, na China 55. Merchant B. The one device: the secret history of the iPhone. Nova York: Little Brown; 2017.. A fábrica emprega centenas de milhares de trabalhadores e é umas das principais responsáveis pela produção do iPhone. Além disso, é parte de um conglomerado que emprega mais de um milhão de pessoas, o terceiro maior empregador privado do mundo, atrás apenas do Walmart e do McDonald’s. Em 2010, foram registradas 18 tentativas de suicídio de trabalhadores da fábrica e 14 mortes. Sobrecarregados por uma administração caracterizada como “agressiva e dissimulada” 55. Merchant B. The one device: the secret history of the iPhone. Nova York: Little Brown; 2017. e por jornadas de 12 horas de trabalho, os trabalhadores, um após o outro, começaram a se jogar dos edifícios de alojamento. A empresa reagiu prontamente. Mas, em vez de enfrentar as causas do desespero, decidiu instalar redes ao lado dos prédios, para amortecer as quedas, além de exigir que os trabalhadores assinassem compromissos de que não cometeriam suicídio.

O caso é apenas uma ilustração da violência do processo de proletarização em curso na China, em que a migração do campo para as cidades é feita sob intenso controle governamental. É importante ressalvar que as taxas de suicídio na China apresentaram declínio nas últimas décadas, mas que tal declínio parece ser predominantemente influenciado pela queda do suicídio rural (ver, por exemplo, Jiang et al. 66. Jiang H, Hahne J, Hu M, Fang J, Shen M, Xiao S. Changing of suicide rates in China, 2002-2015. J Affect Disord 2018; 240:165-70.). A desindustrialização do emprego observada nos rust belts do Norte Global e que deixou como legado a epidemia de mortes por desespero nos Estados Unidos não pode ser representada como simplesmente vantajosa aos trabalhadores asiáticos. O capital migra para pagar menores salários e lucrar com condições de vida mais precárias.

No terceiro vértice do triângulo, isto é, nos países exportadores de insumos primários, o que salta aos olhos são as mortes violentas. Se a violência nos países do Oriente Médio chama mais a atenção, com seus carros-bomba e execuções filmadas, os recordes são atingidos na América Latina: oito das dez cidades mais violentas do mundo, medidas pela taxa de homicídio, estão na região 77. Smolski A. Class struggle and violence in Latin American cities. Latin Am Perspect 2021; 48:280-4.. De acordo com as estimativas do Global Burdens of Disease, a taxa de homicídio na América Latina é mais de cinco vezes maior do que a média mundial. A despeito das causas da violência serem múltiplas, é palpável a relação entre a concentração geográfica de homicídios e os agudos índices de desigualdade de renda da região.

A impressão de que a desigualdade de renda estava caindo na primeira década do século XXI logo mostrou-se precipitada 88. Medeiros M, Souza P, Castro F. O topo da distribuição de renda no Brasil: primeiras estimativas com dados tributários e comparação com pesquisas domiciliares (2006-2012). Dados Rev Ciênc Sociais 2015; 58:7-36.. A redução da disparidade salarial produzida por políticas de elevação do salário mínimo e de transferência de renda, viabilizadas pelo boom das commodities, está sendo revertida na maior parte dos países e nunca afetou a imensa concentração de renda e riqueza no topo. O papel desses países de fornecer insumos primários para o capitalismo global excluiu a maior parte de suas populações dos circuitos da acumulação de capital, relegando-a à função de exército industrial de reserva. Como consequência, as elites proprietárias locais, estreitamente vinculadas à plutocracia global, encastelam-se atrás de muros defendidos por seguranças particulares, enquanto as maiorias, que há tempos foram expulsas do campo pelo avanço da agricultura capitalista, aglomeram-se em cidades que oferecem apenas empregos precários e infraestrutura pública insuficiente. Surpreendente seria se tais cidades não fossem violentas.

Um exame mais detalhado da distribuição geográfica das taxas de mortalidade e das causas das mortes permitiria aprofundar os vínculos entre a dimensão espacial da acumulação de capital e a geografia de sofrimento e morte. Como afirmam Braga & Oliveira 11. Braga JCS, Oliveira GC. Dinâmica do capitalismo financeirizado e o sistema de saúde no Brasil: reflexões sob as sombras da pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00325020., no capitalismo contemporâneo o direito à (vida) tem preço e custa caro. A financeirização do capitalismo indubitavelmente acentua a insegurança econômica e a precariedade da vida das grandes maiorias, mas ela precisa ser examinada em conjunto com sua contrapartida geográfica. A mobilidade cada vez maior da produção capitalista nivelou por baixo as condições de vida dos trabalhadores, transformando a maior parte da humanidade em população excedente para o capital. Nessas condições, os avanços da medicina e da saúde pública, que poderiam emancipar a humanidade das doenças e das mortes precoces, convivem com epidemias de desespero e de violência. No momento em que parece se vislumbrar o fim da pandemia em alguns lugares do mundo, é crucial lembrar que o enfrentamento do adoecimento contemporâneo requer não apenas vacinas, mas também prover saúde universal de qualidade e conter a violência das relações sociais capitalistas.

Agradecimentos

À Lucia Del Picchia, pela leitura atenta e pelas sugestões de revisão.

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  • 1
    Braga JCS, Oliveira GC. Dinâmica do capitalismo financeirizado e o sistema de saúde no Brasil: reflexões sob as sombras da pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00325020.
  • 2
    Marx K. O Capital: crítica da economia política. Livro Primeiro, Tomo 2. São Paulo: Abril Cultural; 1996.
  • 3
    Rugitsky F. The decline of neoliberalism: a play in three acts. Brazilian Journal of Political Economy 2020; 40:587-603.
  • 4
    Case A, Deaton A. Deaths of despair and the future of capitalism. Princeton: Princeton University Press; 2020.
  • 5
    Merchant B. The one device: the secret history of the iPhone. Nova York: Little Brown; 2017.
  • 6
    Jiang H, Hahne J, Hu M, Fang J, Shen M, Xiao S. Changing of suicide rates in China, 2002-2015. J Affect Disord 2018; 240:165-70.
  • 7
    Smolski A. Class struggle and violence in Latin American cities. Latin Am Perspect 2021; 48:280-4.
  • 8
    Medeiros M, Souza P, Castro F. O topo da distribuição de renda no Brasil: primeiras estimativas com dados tributários e comparação com pesquisas domiciliares (2006-2012). Dados Rev Ciênc Sociais 2015; 58:7-36.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2021
  • Aceito
    05 Abr 2021
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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