Mudanças recentes e continuidade da dependência tecnológica e econômica na indústria farmacêutica no Brasil

Recent changes and continuity of technological and economic dependency in the pharmaceutical industry in Brazil

Cambios recientes y continuidad de la dependencia tecnológica y económica en la industria farmacéutica en Brasil

Paulo Henrique de Almeida Rodrigues Roberta Dorneles Ferreira da Costa Silva Catalina Kiss Sobre os autores

Resumos

Este artigo apresenta os resultados de pesquisa sobre a indústria farmacêutica no Brasil, no período recente, realizada no âmbito do projeto multicêntrico Complexo Econômico-Industrial da Saúde, Inovação e Dinâmica Capitalista: Desafios Estruturais para a Construção do Sistema Universal de Saúde no Brasil. Os quatro componentes estudados sobre a evolução da indústria farmacêutica no Brasil foram: as políticas industriais do Estado; as mudanças na composição financeira e patrimonial das empresas de capital nacional, a evolução da produção; e o comportamento da balança comercial. As análises levaram em consideração o marco teórico proposto por Luiz Filgueiras e Reinaldo Gonçalves a respeito da implantação de um “modelo liberal e periférico” na economia brasileira a partir dos anos 1990. Foram levantados e analisados dados sobre: a situação das Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP) para medicamentos entre 2009 e 2020; da Pesquisa Industrial Anual (PIA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1996 e 2018; e os dados da evolução da balança comercial do setor entre 1996 e 2019. Os resultados evidenciam que a agenda do Estado para o setor favoreceu o crescimento da produção de medicamentos genéricos, dos medicamentos isentos de prescrição (MIP) e deu início a alguns projetos de transferência de tecnologia via PDPs para a produção de medicamentos biológicos e sintéticos. Apesar dessa evolução, o Brasil se mantém dependente da importação de insumos químicos e farmacêuticos e de medicamentos acabados. Isto nos mantém em situação de vulnerabilidade tecnológica e econômica em relação aos fornecedores mundiais, além de um aprofundamento do déficit da balança comercial do setor.

Palavras-chave:
Indústria Farmacêutica; Política Pública; Desenvolvimento Industrial; Medicamentos Genéricos


This article presents the results of a study on the pharmaceutical industry in Brazil in the recent period, as part of the multicenter project Health Economic-Industrial Complex, Innovation and Capitalist Dynamics: Structural Challenges for Construction of the Universal Health System in Brazil. The four components studied in the evolution of the Brazilian pharmaceutical industry were: State industrial policies; changes in the financial and shareholding composition of companies with domestic capital; trends in production; and trade balance behavior. The analyses considered the theoretical framework proposed by Luiz Filgueiras and Reinaldo Gonçalves concerning the implementation of a “liberal and peripheral model” in the Brazilian economy since the 1990s. Data were collected and analyzed on the situation with the Product Development Partnerships (PDP) for medicines from 2009 to 2020 from the Annual Industrial Survey (PIA) of the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE) from 1996 to 2018 and data on the evolution of the sector’s trade balance from 1996 to 2019. The results show that the State’s agenda for the sector favored the growth in production of generic drugs and over-the-counter drugs and started some technology transfer projects via PDPs for production of biological and synthetic drugs. Despite this evolution, Brazil is still dependent on the importation of chemical and pharmaceutical inputs and finished drugs. This keeps Brazil in a situation of technological and economic vulnerability in relation to global suppliers, besides a growing trade deficit in the sector.

Keywords:
Drug Industry; Public Policy; Industrial Development; Generic Drug


Este artículo presenta los resultados de investigación sobre la industria farmacéutica en Brasil, durante el período reciente, realizada en el ámbito del proyecto multicéntrico Complejo Económico-Industrial de la Salud, Innovación y Dinámica Capitalista: Desafíos Estructurales para la Construcción del Sistema Universal de Salud en Brasil. Los cuatro componentes estudiados sobre la evolución de la industria farmacéutica en Brasil fueron: las políticas industriales del Estado; los cambios en la composición financiera y patrimonial de las empresas de capital nacional, la evolución de la producción; y el comportamiento de la balanza comercial. Los análisis tuvieron en consideración el marco teórico propuesto por Luiz Filgueiras y Reinaldo Gonçalves, respecto a la implantación de un “modelo liberal y periférico” en la economía brasileña, a partir del año 1990. Se recabaron y analizaron datos sobre: la situación de las Colaboraciones de Desarrollo Productivo (PDP por su sigla en portugués) para medicamentos entre 2009 y 2020; de la Encuesta Industrial Anual (PIA), del Instituto Brasileño de Geografía y Estadística (IBGE), entre 1996 y 2018; y los datos de la evolución de la balanza comercial del sector entre 1996 y 2019. Los resultados evidencian que la agenda del Estado para el sector favoreció el crecimiento de la producción de medicamentos genéricos, de los medicamentos exentos de prescripción (MIP) y comenzó algunos proyectos de transferencia de tecnología vía PDPs para la producción de medicamentos biológicos y sintéticos. A pesar de esa evolución, Brasil sigue siendo dependiente de la importación de insumos químicos y farmacéuticos y de medicamentos acabados. Esto nos mantiene en una situación de vulnerabilidad tecnológica y económica, en relación con los proveedores mundiales, además de una profundización del déficit de la balanza comercial del sector.

Palabras-clave:
Industria Farmacéutica; Política Pública; Desarrollo Industrial; Medicamentos Genéricos


Introdução

No início do século XXI, o Estado brasileiro procurou retomar uma política desenvolvimentista que envolveu projetos para a indústria farmacêutica no Brasil, elencada entre os setores estratégicos da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE). Essa política envolveu o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o Ministério da Fazenda e o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Para dar conta do componente estratégico dos fármacos e medicamentos da Política foi criado, em 2003, o Fórum de Competitividade da Cadeia Produtiva Farmacêutica (FCCPF), que incluía diversos órgãos ligados ao Ministério da Saúde, inclusive a Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE). Das articulações em torno do componente estratégico de fármacos e medicamentos surgiram duas novas políticas industriais: o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma), de responsabilidade do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no âmbito do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, iniciado em 2004; e as Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP), em 2008, de responsabilidade do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS), coordenado pelo Ministério da Saúde 11. Gadelha CAG, Temporão JG. Desenvolvimento, inovação e saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1891-902.,22. Guimarães R. A indústria farmacêutica e seus desafios. Cadernos do Desenvolvimento 2018; 13:183-203.,33. Kiss C. Os desafios do Estado brasileiro para garantia do acesso de medicamentos: um estudo sobre os encontros e desencontros das políticas sanitária e industrial [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2018..

O Profarma visou, sobretudo, fortalecer a indústria farmacêutica brasileira para que esta ampliasse a produção de medicamentos genéricos, além da produção interna de farmoquímicos. Em todas as fases do Programa as metas prioritárias envolviam a ampliação das exportações, a criação de setores de inovação nas empresas, a diminuição da desigualdade regional e o desenvolvimento de projetos voltados para o consumo de massas 44. Palmeira Filho PL. Catch up da indústria farmacêutica nacional e financiamento à inovação: o caso da atuação do BNDES através do Profarma [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Escola de Química, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2013.. As PDP envolvem a associação de pelo menos um laboratório público com um laboratório privado, este é o responsável pela internalização da produção do insumo farmacêutico 55. Vargas MA, Almeida ACS, Guimarães ALC. Parcerias para desenvolvimento produtivo (PDPS-MS): contexto atual, impactos no sistema de saúde e perspectivas para a política industrial e tecnológica na área de saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2017. (Texto para Discussão, 20)., compreendem quatro fases de produção do medicamento e do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) e visavam à redução da vulnerabilidade econômica e sanitária do país, utilizando o poder de compra do Estado 11. Gadelha CAG, Temporão JG. Desenvolvimento, inovação e saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1891-902.. As duas primeiras fases visam o registro do medicamento e a compra do medicamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de um laboratório público, durante dez anos. A terceira fase contempla o processo de transferência de tecnologia do laboratório privado para o laboratório público, porém os IFA utilizados ainda podem ser importados. A quarta e última fase envolve o desenvolvimento do IFA pelo parceiro privado, um laboratório farmoquímico, e por fim o encerramento do ciclo de transferência de tecnologia para a produção do medicamento e do IFA localmente, com a alteração pós-registro encaminhada pelo laboratório público para a inclusão de novo produto farmoquímico/biológico e produtor de IFA nacional 55. Vargas MA, Almeida ACS, Guimarães ALC. Parcerias para desenvolvimento produtivo (PDPS-MS): contexto atual, impactos no sistema de saúde e perspectivas para a política industrial e tecnológica na área de saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2017. (Texto para Discussão, 20)..

Tais políticas industriais fizeram parte de uma iniciativa voltada para a retomada do papel do Estado como indutor do crescimento econômico, que ficou conhecida como “neodesenvolvimentismo”. Não rompia, entretanto, com os pilares do neoliberalismo, como a estabilidade monetária, austeridade fiscal e a não discriminação do capital internacional - tentando, desta forma, reunir princípios inconciliáveis da economia política: o liberalismo e o intervencionismo estatal 66. Sampaio Jr. PA. Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo: tragédia e farsa. Serv Soc Soc 2012; (112):672-88.,77. Boito Jr. A. As bases políticas do neodesenvolvimentismo. Fórum Econômico da FGV. https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16866/Painel%203%20-%20Novo%20Desenv%20BR%20-%20Boito%20-%20Bases%20Pol%20Neodesenv%20-%20PAPER.pdf (acessado em 20/Jun/2020).
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. Essa agenda visava promover o desenvolvimento de interesses do empresariado industrial, sem ferir, contudo, a dominação do capital financeiro e sua vinculação com os circuitos de financeirização mundial 66. Sampaio Jr. PA. Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo: tragédia e farsa. Serv Soc Soc 2012; (112):672-88.,88. Diniz E. Empresariado industrial, representação de interesses e ação política: trajetória histórica e novas configurações. Política & Sociedade 2010; 9:101-39.,99. Gonçalves R. Desenvolvimento às avessas: verdade, má-fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento. Rio de Janeiro: LTC; 2013..

Essa tentativa de retomada do desenvolvimento pela mão do Estado comportava outra contradição relacionada ao lugar do país no cenário internacional. O acirramento da disputa pela hegemonia no interior do sistema interestatal capitalista, entre os Estados Unidos de um lado, e a China e a Rússia, de outro 1010. Jacques M. When China rules the world. Londres: Penguin Books; 2012.,1111. Engdahl FW. Target: China. How Washington and Wall Street plan to cage the Asian Dragon. San Diego: Progressive Press; 2014.,1212. Escobar P. Empire of chaos: the roving eye collection. v. 1. Ann Arbor: Nimble Books LLC; 2014., abriu espaços para que o Brasil pudesse encontrar novos espaços internacionais, como no grupo dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), por exemplo 1313. Changsheing S. China, terceiro-mundismo e as relações Brasil/China. In: Zhebith A, organizador. Brasil/China: construindo o BRICS. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 2013. p. 89-118.,1414. Stuenkel O. BRICS e o futuro da ordem global. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra; 2017.. Mas, de outro, o Brasil se encontrava, desde os anos 1990, submetido a uma situação de dependência e subordinação, caracterizada por Filgueiras 1515. Filgueiras L. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf (acessado em 25/Jun/2020).
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e Gonçalves 99. Gonçalves R. Desenvolvimento às avessas: verdade, má-fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento. Rio de Janeiro: LTC; 2013. como “modelo liberal e periférico”, cujas características são: a concentração da produção no setor primário exportador; desnacionalização do aparelho produtivo; atraso do sistema nacional de inovações; e agravamento da dominação financeira. O quadro internacional e a inserção do Brasil no mesmo eram altamente contraditórios, portanto, apresentando ao mesmo tempo oportunidades e limitações.

As recentes mudanças no panorama internacional apontam no sentido de um mundo multipolar devido à ascensão recente de potências como a China, principalmente, além da Rússia e da Índia, num plano inferior, vêm mudando o panorama do sistema interestatal capitalista no século XXI 1616. Fiori JLC. Geopolítica internacional: a nova estratégia imperial dos Estados Unidos. Saúde Debate 2018; 42(n.spec 3):10-7.. Tais mudanças no panorama mundial também estão refletindo na indústria farmacêutica, uma vez que o rápido crescimento da produção e a exportação de IFA e de medicamentos acabados da China e da Índia começam a incomodar o até então inabalável domínio das Big Pharma estadunidenses e europeias 1717. Capanema L, Palmeira Filho PL. Indústria farmacêutica brasileira: reflexões sobre sua estrutura e potencial de investimentos. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social; 2007.,1818. Goedhart H, Read-Brown A. Pharma in China and India: market-specific social risks and opportunities. Amsterdã: Sustainalytics; 2013..

O próprio modelo de negócios das Big Pharma está em crise, impelindo-as a buscar novos caminhos para seus negócios, como: as fusões e aquisições; a redução da verticalização das suas atividades, que inclui parcerias para o desenvolvimento de pesquisas; a aceitação dos medicamentos genéricos em suas carteiras de negócios; a radicalização das estratégias de defesa da propriedade intelectual, via patentes; e, finalmente, a adoção de estratégias comerciais mais agressivas, beirando ou ultrapassando a ilegalidade 11. Gadelha CAG, Temporão JG. Desenvolvimento, inovação e saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1891-902..

A indústria farmacêutica no Brasil deve ser entendida, em primeiro lugar, como parte do setor químico e, em segundo, dentro do quadro de dependência e subordinação imposto pelo “modelo liberal e periférico”, que inclui, como vimos, a concentração da produção brasileira, em geral, no setor primário/exportador. O modelo liberal periférico teve graves consequências sobre a indústria farmacêutica no Brasil, com crescente déficit na balança comercial do setor e grande dependência de importações de fármacos e medicamentos acabados de alto valor agregado, além de concentração do crescimento nos subsetores ligados ao setor primário/exportador, como a produção de medicamentos veterinários e defensivos agrícolas, ou agrotóxicos 1919. Rodrigues PHA, Costa RDF, Kiss C. A evolução recente da indústria farmacêutica brasileira nos limites da subordinação econômica. Physis (Rio J.) 2018; 28:e280104..

Este artigo tem como objetivo discutir a evolução da indústria farmacêutica no Brasil e a influência das políticas estatais para o setor, considerando os constrangimentos do modelo liberal periférico. Para tanto, analisou: as mudanças na composição das empresas de capital nacional sob a influência do Profarma; a evolução das PDP; a dinâmica da produção industrial do setor químico, farmacêutico - medicamentos humanos e veterinários - farmoquímicos e defensivos agrícolas; e, finalmente, as consequências destes processos sobre a balança comercial do setor.

Materiais e métodos

Por ser um setor industrial, a indústria farmacêutica no Brasil tem características bem distintas dos demais setores estudados pela pesquisa Complexo Econômico-Industrial da Saúde, Inovação e Dinâmica Capitalista: Desafios Estruturais para a Construção do Sistema Universal de Saúde no Brasil. O estudo realizado envolveu quatro componentes. O primeiro trata das políticas industriais do Estado para o setor, com destaque para o Proframa do BNDES e as PDP, desenvolvidas pela SCITE, do Ministério da Saúde. O segundo, aborda as mudanças na composição financeira e patrimonial das principais empresas industriais, entre 2008 e 2015 - componente comum às demais partes da pesquisa mais ampla sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) que refletem em parte as políticas industriais. O terceiro diz respeito à dinâmica produtiva, segundo o valor de transformação industrial e da receita líquida de vendas de classes industriais relacionadas com a indústria farmacêutica no Brasil que a compõem. Para tanto, foram levantados os dados da Pesquisa Industrial Anual (PIA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Finalmente, o quarto componente analisa o comportamento da balança comercial do setor.

Em relação às políticas industriais desenvolvidas pelo Estado brasileiro para o setor no período considerado, são discutidos os dados do Profarma e das PDP. Foram estudadas as fases um e dois do Profarma e os valores financiados para os principais laboratórios nacionais, com base em dados das Juntas Comerciais do Rio de Janeiro e São Paulo e do Valor Econômico. O período pesquisado para esse componente foram os anos compreendidos entre 2008 e 2015, relacionado aos demais subprojetos do projeto multicêntrico Complexo Econômico-Industrial da Saúde, Inovação e Dinâmica Capitalista: Desafios Estruturais para a Construção do Sistema Universal de Saúde no Brasil, do qual esta pesquisa fez parte.

Para a análise das PDP, foram consideradas apenas as relativas a medicamentos - biológicos e sintéticos. Foi levado em consideração o processo de desenvolvimento das PDP em relação: à situação (ativas, suspensas e extintas), assim como as fases de desenvolvimento de cada uma. Tais fases são: Fase 1 - submissão e análise de viabilidade da proposta de projeto de PDP; Fase 2 - implementação da proposta e início do monitoramento; Fase 3 - desenvolvimento do produto, transferência e absorção de tecnologia; Fase 4 - finalização do processo de desenvolvimento, transferência e absorção da tecnologia da PDP em condições de produção do produto objeto de PDP no país e portabilidade tecnológica pela instituição pública. Os dados relativos às PDP foram obtidos no site do Ministério da Saúde, compreendendo todo o período desta Política, ou seja, entre 2009 e 2020 2020. Ministério da Saúde. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP). https://antigo.saude.gov.br/saude-de-a-z/parcerias-para-o-desenvolvimento-produtivo-pdp (acessado em 02/Jul/2020).
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Para o estudo das principais empresas do setor foram obtidos dados na mídia especializada, tais como Valor Econômico2121. Valor 1000, maiores empresas e as campeãs em 25 setores e 5 regiões. Valor Econômico 2017; 17(17). e Isto É Dinheiro2222. A reinvenção da Hypermarcas. Isto É Dinheiro 2016; 2 dez. https://www.istoedinheiro.com.br/noticias/negocios/20130906/reinvencao-hypermarcas/130174.
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, dados das Juntas Comerciais do Rio de Janeiro e de São Paulo, e da análise dos anuários estatísticos do mercado farmacêutico produzidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Uma das dificuldades encontradas para pesquisar o setor decorre do fato de que as multinacionais em funcionamento no país são empresas de capital fechado - companhias limitadas ou sociedades anônimas que não negociam ações na bolsa de valores. Como tal, há menor transparência de suas demonstrações contábil-financeiras; como não têm a obrigação de publicarem demonstrações financeiras detalhadas, isto dificulta a análise das mesmas. As movimentações societárias e as mudanças de controle do capital pelas empresas multinacionais estão mais frequentemente relacionadas a movimentos internacionais de capital destas empresas. No período da pesquisa, essa dificuldade foi agravada devido ao acentuado número de fusões e aquisições, tanto de empresas nacionais entre si quanto com as multinacionais, além do estabelecimento de importantes joint-ventures ao longo de determinadas políticas públicas, como ocorreu no ano de 2012.

Para estudar a dinâmica das diferentes classes industriais do setor farmacêutico, foi necessário considerar sua inserção na indústria química como um todo e compará-la com outros segmentos desta ligados ao fornecimento de insumos para a agropecuária, para avaliar os efeitos da reprimarização da economia do modelo liberal periférico. Para tanto, foram considerados dados da PIA do IBGE, relativos à “divisão de Fabricação de Produtos Químicos”, e dentro desta as classes de fabricantes de defensivos agrícolas (Classificação Nacional de Atividades Econômicas - CNAE 1.0 e 2.0 - https://concla.ibge.gov.br/busca-online-cnae.html), a “divisão de Produtos Farmoquímicos e Farmacêuticos” (CNAE 2.0), os “grupos” de fabricantes de “produtos farmoquímicos” e de “produtos farmacêuticos” e as classes de medicamentos para uso veterinário e humano (CNAE 1.0 e 2.0). As variáveis priorizadas da PIA foram: receita líquida de venda e valor de transformação industrial, a primeira por permitir dimensionar o setor e as classes de indústria que o compõe, a segunda por poder ser considerada como uma proxy da lucratividade. Foi considerado o período entre 1996 e 2018.

Os dados a respeito da balança comercial foram obtidos junto à base do sistema Comex Stat do Ministério do Desenvolvimento, Industrial e Comércio Exterior (http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home, acessado em 20/Jul/2020). Para a melhor compreensão dos dados usados, é necessário esclarecer que como o sistema não fornece dados suficientemente detalhados, foi necessário utilizar, como uma aproximação dos dados de exportação e importação de IFAs, os relativos à “matéria-prima orgânica”, mesmo sabendo que tais insumos servem para outras classes de indústria, como as de fertilizantes e agrotóxicos. Os valores da PIA foram corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA) do IBGE, e os da balança comercial pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPC) dos Estados Unidos 2323. Inflation.eu. Inflação histórica Estados Unidos - IPC. https://pt.inflation.eu/taxas-de-inflacao/estados-unidos/inflacao-historica/ipc-inflacao-estados-unidos.aspx (acessado em 26/Jul/2020).
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Resultados e discussão

As políticas industriais para a indústria farmacêutica no Brasil

O BNDES desempenhou um papel central na condução das políticas industriais para o setor como o principal banco de investimentos público. Isso aconteceu, inicialmente, com o Profarma e a partir de 2008 com as PDPs. Segundo Vargas et al. 55. Vargas MA, Almeida ACS, Guimarães ALC. Parcerias para desenvolvimento produtivo (PDPS-MS): contexto atual, impactos no sistema de saúde e perspectivas para a política industrial e tecnológica na área de saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2017. (Texto para Discussão, 20)., entre 2004 e 2015 houve três fases do Programa: (1) Profarma I, a partir de 2004, com ênfase na expansão da capacidade produtiva dos laboratórios; (2) Profarma II, depois de 2008, com ênfase na inovação incremental; e (3) Profarma III, depois de 2012, com ênfase no financiamento de novas plantas produtivas para os medicamentos biotecnológicos. Em relação ao fomento industrial para a indústria farmacêutica no Brasil no período, foi possível identificar os seguintes empréstimos do Profarma para os dez maiores fabricantes do setor (Tabela 1), pelos principais agentes financeiros envolvidos - BNDES, FINEP e Banco do Brasil, no período estudado.

Tabela 1
Empréstimos e financiamentos do Estado brasileiro para as 10 maiores industrias farmacêuticas no Brasil, 2008-2015.

Os dados mostram que o BNDES foi de longe a principal fonte de financiamento, com 77% do total, seguido pelo Banco do Brasil (BB), com 20,9% do total. Quatro empresas de capital nacional - Hypermarcas, EMS, Aché e Eurofarma - ficaram com 74,5% dos empréstimos, embora um laboratório estrangeiro, a Novartis, tenha recebido 20,4% do total financiado para os dez maiores grupos da indústria farmacêutica no Brasil, oriundos de um empréstimo de BRL 800 milhões do BNDES. Essas quatro empresas de capital nacional estiveram entre as dez maiores do mercado brasileiro, em grande parte, por conta do Profarma, o que constituía um dos objetivos do Programa 2424. Mitidieri TL, Pimentel VP, Braga CH, Pieroni JP. Há espaços competitivos para a indústria farmoquímica brasileira? Reflexões e propostas para políticas públicas. BNDES Setorial 2015; 41:43-78..

Em relação às PDP, foi possível identificar 112 produtos farmacêuticos (Tabela 2), dos quais 60 projetos estão ativos, 19 suspensos e 33 extintos. Dos que estão ativos, 46 são para a transferência tecnológica de medicamentos de origem sintética e 14 para biotecnológicos. Dentre os ativos, 25 estavam nas fases 3 e 4 em maio de 2020.

Tabela 2
Situação das Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDPs) para medicamentos, por situação, tipo de medicamento e fases de desenvolvimento, maio de 2020.

Das 19 PDP suspensas, 12 eram para medicamentos biotecnológicos e 7 eram para medicamentos sintéticos. Segundo o Ministério da Saúde, os motivos de suspensão seriam por: recomendação de órgãos de controle (Controladoria-Geral da União - CGU e Tribunal de Contas da União - TCU) - nove suspensões atendem a este critério; decisão Judicial; desacordo com o cronograma; falta de avanços esperados; falta de investimentos na estrutura; solicitação de saída do parceiro privado; não enquadramento de um projeto como PDP; entre outros 2525. Ministério da Saúde. Esclarecimento sobre fase de suspensão de 19 PDPs. https://antigo.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45590-esclarecimento-sobre-fase-de-suspensao-de-19-pdps (acessado em 25/Jul/2020).
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. É importante frisar que 3 das 19 PDP suspensas estavam em fase 3 de desenvolvimento, sendo descontinuadas sob a alegação de desconformidade com o programa de investimento e estrutura fabril, o que causou indignação por parte da Associação dos Laboratórios Oficiais do Brasil (Alfob), cujo presidente, Ronaldo Dias, considerou ser “(...) um verdadeiro desmonte de milhões de reais de investimentos que foram feitos pelos laboratórios (...). Os laboratórios não têm mais como investir a partir de agora. (...) isso traz o maior golpe da história dos laboratórios públicos2626. Mathias M, Torres R. O governo ataca os laboratórios públicos. Outras Palavras 2020; 16 jul. https://outraspalavras.net/outrasaude/o-maior-golpe-da-historia-dos-laboratorios-publicos/.. A denúncia da Alfob menciona perda anual de ao menos BRL 1 bilhão para o setor e risco de desabastecimento.

Quanto as 33 PDP extintas, 29 diziam respeito a medicamentos sintéticos e 4 a biotecnológicos. Foram diversos os motivos da extinção: desistência do laboratório público; desinteresse do parceiro privado; dificuldades de desenvolvimento tecnológico por parte da empresa privada; falta de perspectiva de compra do medicamento pelo Ministério da Saúde; o medicamento não atendia as diretrizes clínicas do SUS; e não cumprimento das exigências do marco regulatório das PDP. Dezoito PDP foram extintas entre 2014 e 2015 e as 15 restantes foram extintas a partir de 2016. Em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, ocorreram todas as 19 suspensões e duas extinções de PDP, num total de 21 projetos descontinuados.

Mudanças na conformação das principais empresas de capital nacional

Para crescerem no mercado, as empresas nacionais passaram a adotar estratégias comerciais agressivas, fusões e aquisições e abriram para o capital financeiro, como revelado pelos dados de mercado coletados e analisados pela pesquisa. Isso foi facilitado pelo incentivo governamental na primeira fase do Profarma. Como resultado, surgiram novos grupos econômicos que figuram desde 2015 entre os 10 primeiros no mercado farmacêutico. No ano de 2018, quatro grupos nacionais estão entre os seis principais que faturaram mais de BRL 3 bilhões, a saber: (1) EMS, que resultou da fusão entre o EMS com os laboratórios Sigma, Legrand, Novaquímica e Germed; (2) Aché e Biossintética; (3) Eurofarma que fundiu com a Mormenta; e (4) o grupo Hypera, resultado da Hypermarcas com a Neo Química, Brainfarma, Neolatina, Cosmed e Mantecorp 2727. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Anuário estatístico do mercado farmacêutico 2018. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2019..

A estratégia de fortalecer a formação de grupos econômicos levou a uma concentração do mercado; em 2018 os 20 maiores grupos respondiam por 65,8% do faturamento total 2727. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Anuário estatístico do mercado farmacêutico 2018. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2019.. Tal situação contrastava diretamente com o que acontecia no ano de 1999, quando foi aprovada a chamada Lei dos Genéricos (Lei nº 9.787/19992828. Brasil. Lei nº 9.787 de 10 de fevereiro de 1999. Altera a Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária, estabelece o medicamento genérico, dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em produtos farmacêuticos e dá outras providências. Diário Oficial da União 1999; 11 fev.), em que apenas um laboratório nacional, o Aché, figurava entre as dez maiores indústrias pelo critério de vendas. Esse crescimento no valor de vendas, entretanto, deve-se à opção mercadológica das empresas nacionais em focar nos genéricos e nos medicamentos isentos de prescrição (MIP); ambos são de baixo valor agregado e baixa incorporação tecnológica.

A participação do capital financeiro foi decisiva para o processo de fusões e aquisições. As aquisições bilionárias pela Hypermarcas de empresas de medicamentos (Farmasa, NeoQuímica, Mantecorp, Luper), entre 2008 e 2010, foram viabilizadas pela entrada de investidores financeiros no capital da empresa (Fundo de investimentos, como BlackRock, World Capital e Votorantim). Também foi feita uma oferta pública de ações, que pulverizou no mercado cerca de 40% de seu capital.

A EMS é controlada pelo Grupo NC (financeiro), inclusive com participação no mercado imobiliário (ACS Incorporadora), compondo o grupo de empresas de investimento e participações (NCPar e NC Invest), além de uma concessionária para administrar a parceria público-privada (PPP) com o governo de São Paulo, entre outras. A EMS criou nos Estados Unidos a Brace Pharma, dedicada a participações em pequenas empresas inovadoras de biotecnologia. A empresa ainda participa de vários projetos de PDPs. Permanece como sociedade anônima de capital fechado de controle familiar, sendo chefiada pelo empresário Carlos Sanchez.

O laboratório Aché, que figura entre os maiores grupos desde os anos 1950, permanece como sociedade anônima de capital fechado e também seguiu o caminho das aquisições, no período recente. Adquiriu a Melcon, em 2010, e os nacionais Nortis e Laboratório Tiraju, em 2016. A empresa é controlada por três famílias por meio dos fundos de investimentos Lajota, Vincitore e Infinity (33% cada). A Eurofarma também é uma sociedade anônima de capital fechado, de controle familiar. Apresenta como peculiaridades ter realizado aquisições em países latino-americanos, entre 2009 e 2015, e ter seu ponto forte na produção de medicamentos de inovação.

Um desdobramento político do fortalecimento das empresas nacionais foi a criação do Grupo Farma Brasil em 2012, entidade que representa as nove maiores empresas farmacêuticas nacionais (Hypermarcas, EMS, Aché, Eurofarma, Cristália, Libbs, Biolab, Hebron União Química). No ano em que foi criado, esse grupo respondia por cerca de 36% do mercado nacional, sendo que 45% do seu faturamento advêm de compras públicas, segundo levantado por esta pesquisa.

A política das PDPs, que tinha como uma de suas prioridades a absorção de tecnologia para a produção de medicamentos biotecnológicos, favoreceu que esses grandes grupos se associassem em joint-ventures para explorar esse mercado. Dessa forma, a EMS se associou à Hypermarcas, Aché e União Química para formar a BioNovis para a produção de medicamentos biotecnológicos no país, assim como foi formada a Orygen por joint-venture entre o Biolab, Cristália, Eurofarma e Libbs, em 2012. A Orygen foi atingida, entretanto, pela política do atual governo que suspendeu em 2019 dezoito contratos de PDP com sete laboratórios públicos sob a alegação de irregularidades, principal razão para a cessação das atividades da Orygen em dezembro de 2019. É importante destacar que a Bionovis detém oito dos 14 contratos ativos de PDP para produtos biotecnológicos (57,1% do total), os demais estão distribuídos entre a Cristália (um) e a Libbs (cinco).

As consequências do modelo liberal periférico sobre a dinâmica produtiva da indústria farmacêutica no Brasil

A indústria farmacêutica no Brasil, assim como a indústria química, da qual faz parte, teve sua dinâmica afetada pela inflexão neoliberal a partir de 1990, e que vem levando o país para a reprimarização da produção interna. Como evidenciam os dados da Tabela 3, os setores ligados ao agronegócio, fabricantes de defensivos agrícolas, ou agrotóxicos, além de medicamentos de uso veterinário, cresceram em ritmo superior ao dos fabricantes de medicamentos para uso humano. Ocorreu, ao mesmo tempo, uma drástica redução da produção interna de farmoquímicos devido ao fim da proteção tarifária para a produção interna, ocorrida nos anos 1990. Em todo o período analisado, a participação dos farmoquímicos na produção total de farmacêuticos e farmoquímicos foi de apenas 1,27%, confirmando o enfraquecimento da produção de farmoquímicos apontada por Mitidieri et al. 2424. Mitidieri TL, Pimentel VP, Braga CH, Pieroni JP. Há espaços competitivos para a indústria farmoquímica brasileira? Reflexões e propostas para políticas públicas. BNDES Setorial 2015; 41:43-78., que ocorreu principalmente nos anos 1990, depois da abertura comercial.

Tabela 3
Evolução percentual da receita líquida de vendas e do valor da transformação industrial de setores relacionados com a indústria farmacêutica no Brasil, 1996-2018.

A análise da evolução dos dados sobre a receita líquida de vendas (RLV) e o valor da transformação industrial (VTI) mostram que as classes de fabricantes que apresentaram as maiores taxas de crescimento no período foram as de medicamentos para uso veterinário (RLV = 599,7%; e VTI = 476,1%), seguidas pela de defensivos agrícolas (RLV = 420,7%; e VTI = 284,1%). As empresas fabricantes de medicamentos para uso humano registraram crescimento relativo menor (RLV = 288,3%; e VTI = 215,7%). A classe de menor crescimento foi a de produtos farmoquímicos (RLV = 117,2%; e VTI = 92,9%), apesar de que nos anos de 2016 a 2018 tenha apresentado um salto de crescimento (RLV = 103,9%; e VTI = 253,9%) em relação aos anos compreendidos entre 2001 e 2015. Tais desenvolvimentos tiveram consequências na piora da balança comercial do setor, como veremos a seguir.

Aprofundamento do déficit da balança comercial do setor

Apesar de figurar como o sexto maior mercado mundial de medicamentos 2929. Bermudez JAZ, Luiza VL, Silva RM. Assistência farmacêutica e acesso a medicamentos: superando a utopia. In: Bermudez JAZ, Costa JCS, Noronha JC, organizadores. Desafios do acesso a medicamentos no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Livres; 2020. p. 63-120. como resultado das políticas liberalizantes adotadas a partir de 1990, a balança comercial do setor deteriorou muito. Além do déficit comercial crescente na área, o país tem uma produção muito baixa e decrescente de IFA, fazendo com que mais de 90% das necessidades do setor sejam atendidas por importações, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Farmoquímica e de Insumos Farmacêuticos (ABIQUIFI) 2424. Mitidieri TL, Pimentel VP, Braga CH, Pieroni JP. Há espaços competitivos para a indústria farmoquímica brasileira? Reflexões e propostas para políticas públicas. BNDES Setorial 2015; 41:43-78.. Isso aconteceu apesar de um dos objetivos das políticas governamentais visar ao aumento da produção interna de farmoquímicos 11. Gadelha CAG, Temporão JG. Desenvolvimento, inovação e saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1891-902.,3030. Alencar TOS, Paim JS. Reforma Sanitária Brasileira e políticas farmacêuticas: uma análise dos fatos produzidos entre 2003 e 2014. Saúde Debate 2017; 41(n.spec 3):45-59.. A piora da balança comercial do setor pode ser vista nos dados da Tabela 4.

Tabela 4
Valores referentes à balança comercial para medicamentos acabados e matéria-prima orgânica, corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor dos Estados Unidos *. Brasil, 1996-2019.

No aprofundamento do déficit, destacam-se dois saltos: de 2006 para 2007, de USD 4,1 bilhões para USD 5,5 bilhões; e de 2017 para 2018, de USD 9,1 bilhões para USD 11,5 bilhões (balança comercia - setor farmacêutico). O crescimento das importações de produtos acabados prontos para a venda sugere aumento da dependência tecnológica, fato destacado por outros autores 3130. Giomo D, Barcelos MA. Comércio internacional e especialização produtiva brasileira. Blucher Engineering Proceedings 2016; 3:283-302.. A Figura 1 apresenta a evolução dos dados do déficit para matérias-primas orgânicas, que são insumos para produtos químicos e farmacêuticos.

Figura 1
Evolução do déficit da balança comercial brasileira para medicamentos, matérias primas orgânicas e o total do setor, 1996 a 2018.

A semelhança entre as duas curvas demonstra que o déficit decorrente da importação das matérias-primas orgânicas influencia diretamente a balança comercial do setor. O aumento do déficit também é em função do crescimento da importação de produtos acabados. A Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (ABIFINA) aponta um déficit de USD 2,356 bilhões em relação ao comércio de farmoquímicos 3231. Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades. Saldo comercial - química fina. http://www.abifina.org.br/estatisticas_saldo.php (acessado em 25/Jul/2020).
http://www.abifina.org.br/estatisticas_s...
. O crescimento exponencial do déficit da balança comercial evidencia uma grande dependência tecnológica e comercial, vulnerabilidade externa do setor, e fragiliza a assistência farmacêutica no SUS, tal como apontam, entre outros, Gadelha & Temporão 11. Gadelha CAG, Temporão JG. Desenvolvimento, inovação e saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1891-902..

Considerações finais

As duas principais políticas governamentais para o setor - Profarma e PDP - contribuíram para o aumento da escala de produção das empresas de capital nacional por meio tanto de fusões e aquisições quanto de ampliação de suas plantas industriais. No período recente, houve um aumento da concentração do mercado; atualmente os 20 maiores fabricantes representam 65,8% de todas as vendas 2727. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Anuário estatístico do mercado farmacêutico 2018. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2019.. O crescimento da produção, num primeiro momento, foi dirigido para os medicamentos genéricos e MIP. A partir de 2008, a política das PDP contribuiu para que alguns desses fabricantes começassem a se capacitar para produzir medicamentos biotecnológicos e sintéticos de mais complexidade, formando-se inclusive joint-ventures para a produção de biossimilares.

Dentre os benefícios propostos pelas PDP havia a garantia de compras centralizadas pelo Ministério da Saúde, o que estimulou os investimentos realizados pelas empresas, que contaram com recursos públicos de fomento industrial. As mudanças políticas ocorridas a partir de 2016, entretanto, reverteram parcialmente os avanços possibilitados nos anos anteriores. Como foi visto, o Ministério da Saúde extinguiu diversos projetos de PDP em 2019, com prejuízos financeiros para o erário público, instabilidade jurídica tanto para os laboratórios oficiais quanto para os privados, interrompendo a tentativa de redução da vulnerabilidade externa.

O exame da dinâmica industrial do setor deixou claro como a escolha política pelo modelo liberal e periférico, nos anos 1990, e sua manutenção posterior fortaleceram os setores econômicos ligados à produção primária/exportadora, o que foi confirmado pelos dados analisados a respeito da produção industrial. De acordo com o que mostramos, o crescimento das indústrias fabricantes de defensivos agrícolas e de medicamentos veterinários - diretamente ligados às commodities agropecuárias - foi muito superior ao dos fabricantes de medicamentos para uso humano. A produção de farmoquímicos continuou insignificante, contribuindo para a vulnerabilidade externa da indústria farmacêutica no Brasil, evidenciada na atual crise da COVID-19.

O exame da balança comercial mostrou o desenvolvimento de um forte e crescente déficit comercial no setor, que também está relacionado ao modelo liberal e periférico. O setor tornou-se muito dependente da importação de praticamente todos os IFA, assim como de uma quantidade crescente de medicamentos acabados de maiores valores agregados e conteúdo tecnológico. Isso aconteceu apesar das duas políticas governamentais que visavam a reduzir a vulnerabilidade externa do setor farmacêutico brasileiro.

É preciso dizer, por fim, que o crescimento das empresas farmacêuticas de capital nacional, que contou com o apoio das políticas de fomento industrial do Estado brasileiro, não alterou o quadro de dependência comercial, científica e tecnológica. Tais iniciativas mostram que as intervenções governamentais em favor da indústria farmacêutica no Brasil, entre 2003 e 2016, refletiram uma visão limitada por ter procurado conciliar o objetivo de promover o desenvolvimento industrial e tecnológico por indução estatal com a permanência dos pilares do neoliberalismo, que não alterou o quadro de subordinação do país aos países centrais do sistema interestatal capitalista implícito no modelo liberal e periférico.

Agradecimentos

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento da pesquisa Complexo Econômico-Industrial da Saúde, Inovação e Dinâmica Capitalista: Desafios Estruturais para a Construção do Sistema Universal de Saúde no Brasil (projeto CNPq nº 405077/2013-0) da qual fez parte o componente que gerou este artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2020
  • Revisado
    04 Ago 2020
  • Aceito
    28 Set 2020
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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