Crescimento, centralização e financeirização de Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT) no Brasil: estudo de empresas selecionadas entre 2008 e 2016

Growth, centralization, and financialization of Diagnostic and Therapeutic Support Services (SADT) in Brazil: a study of selected companies from 2008 to 2016

Crecimiento, centralización y financiarización de Servicios de Apoyo a la Diagnosis y Terapia (SADT) en Brasil: estudio de empresas seleccionadas entre 2008 y 2016

Artur Monte-Cardoso Lucas Salvador Andrietta Sobre os autores

Resumos

Este artigo discute a dinâmica do subsetor de Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT) no Brasil entre 2008 e 2016. Por meio de uma abordagem exploratória, a pesquisa buscou operacionalizar conceitos-chave na literatura sobre o padrão de acumulação que caracteriza o capitalismo contemporâneo. A pesquisa investigou a atuação de seis empresas de diagnósticos brasileiras em três dimensões principais: (1) patrimonial; (2) contábil-financeira; e (3) política. Os resultados mostram um subsetor em franco crescimento, via aumento do volume e dos preços de serviços comercializados. As evidências corroboram traços de um padrão de acumulação financeirizado, notadamente estratégias agressivas de fusões e aquisições por parte de empresas líderes e, como resultado, a centralização. Algumas outras características associadas ao conceito de financeirização, porém, parecem não ter relevância. Discute-se ainda o horizonte concorrencial nas atividades do subsetor de SADT e seus possíveis efeitos para o esforço de consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Palavras-chave:
Serviço de Diagnóstico; Setor Privado; Economia da Saúde


This article discusses the dynamics of the Diagnostic and Therapeutic Support Services subsector from 2008 to 2016 in Brazil. Through an exploratory approach, the study aimed to operationalize key concepts from the literature on the pattern of accumulation characterizing contemporary capitalism. The research focused on the activity of six Brazilian diagnostic companies in three main dimensions: (1) net worth; (2) accounting-finance; and (3) policy. The results reveal a subsector experiencing vigorous growth via increases in the volume and prices of the services provided. The evidence corroborates traits of a pattern of financialized accumulation, especially aggressive strategies of mergers and acquisitions by leading companies, with centralization as a result. However, some characteristics associated with the concept of financialization appear not to be relevant. The article also discusses the prospects for competition in activities in the Diagnostic and Therapeutic Support Services subsector and the possible effects for the effort to consolidate Brazilian Unified National Health System (SUS).

Keywords:
Diagnostic Services; Private Sector; Health Economic


Este artículo discute la dinámica del subsector de Servicios de Apoyo a la Diagnosis y Terapia (SADT) en Brasil entre 2008 y 2016. A través de un abordaje exploratorio, la investigación buscó operacionalizar conceptos clave en la literatura sobre el patrón de acumulación que caracteriza el capitalismo contemporáneo. La investigación se centró en la actuación de seis empresas de diagnósticos brasileñas en tres dimensiones principales: (1) patrimonial; (2) contable-financiera y; 3) política. Los resultados muestran un subsector en franco crecimiento, vía aumento del volumen y de los precios de servicios comercializados. Las evidencias corroboran trazos de un patrón de acumulación financiarizado, estrategias marcadamente agresivas de fusiones y adquisiciones por parte de empresas líderes y, como resultado, la centralización. Algunas otras características asociadas al concepto de financiarización, no obstante, parecen no tener relevancia. Se discute incluso el horizonte competitivo en las actividades del subsector de SADT y sus posibles efectos para el esfuerzo de consolidación del Sistema Único de Salud.

Palabras-clave:
Servicios de Diagnóstico; Sector Private; Economía de la Salud


Introdução

Este artigo analisa empresas do subsetor de Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT) no período de 2008 a 2016. O estudo apresenta dados primários produzidos por um esforço de pesquisa mais abrangente e orientado pelo objetivo de identificar as expressões da financeirização no setor de saúde brasileiro.

A expressão SADT abrange grupo heterogêneo de atividades, classificadas pelo papel auxiliar atribuído às tecnologias envolvidas em modelos de cuidado tradicionais 11. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas da saúde: assistência médico-sanitária 2009. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv46754.pdf (acessado em 01/Dez/2021).
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. Elas podem estar relacionadas ao diagnóstico, como análises clínicas, anatomia patológica e exames de imagem, por exemplo, como hemogramas, eletrocardiogramas, radiografias, endoscopia, ultrassonografia, tomografia computadorizada, ressonância magnética, entre muitos outros; podem também ter caráter terapêutico direto ou auxiliar de áreas como fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional até diálises, quimioterapias, radioterapias e mesmo centros de terapia intensiva (CTIs) e unidades de tratamento intensivo (UTIs).

Enquanto subconjunto das atividades econômicas, esta classificação leva à caracterização de um segmento bastante diversificado, mas que ganha relativa coesão pela organização dos sistemas de saúde e pelas relações que estabelecem com outros provedores de serviços assistenciais - como clínicas e hospitais. Tradicionalmente, os testes diagnósticos - incluindo análises clínicas, exames de imagem e anatomia patológica - têm maior destaque por ser parte decisiva da obtenção de informações para o diagnóstico 22. National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine. Improving diagnosis in health care. Washington, DC: The National Academies Press; 2015.. A produção desses serviços ocorre tanto dentro de estabelecimentos assistenciais - ambulatoriais e hospitalares - como em estabelecimentos dedicados exclusiva ou principalmente a essas atividades. Paralelamente, também constata-se crescimento destacado de alguns subsegmentos, como clínicas oncológicas e de diálise, por exemplo 33. Martins LO. O segmento da medicina diagnóstica no Brasil. Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba 2014; 16:139-45..

A viabilidade de provisão fora de estabelecimentos assistenciais permitiu a criação de unidades especializadas, centralizando serviços em nível local ou regional. Também facilitaram a constituição de mercados de serviços de diagnóstico em diferentes contextos nacionais e de sistemas de saúde.

Apesar de seu caráter auxiliar, o conjunto dessas atividades ocupa papel destacado no funcionamento dos sistemas de saúde. No caso brasileiro, as dificuldades de acesso e realização de exames é questão central para o Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda que a produção desses serviços seja realizada em diversos contextos, notadamente dentro dos próprios hospitais, predominam empresas privadas especializadas. Santos e colaboradores 44. Santos IS, Uga MAD, Porto SM. O mix público-privado no Sistema de Saúde Brasileiro: financiamento, oferta e utilização de serviços de saúde. Ciênc Saúde Colet 2008; 13:1431-40. mostram que 92% da oferta nessa modalidade de serviços no Brasil - incluindo o SUS e a rede privada - eram feitas pelo setor privado e, de acordo com o DATASUS (Departamento de Informática do SUS), 84% dos exames de alta complexidade do SUS são contratados da rede privada 55. Valor Setorial. Medicina diagnóstica: laboratórios, hospitais e operadoras. Valor Econômico: Análise Setorial 2017; Ed. Especial.. O segmento consta como componente relevante dentro da cadeia de valor da saúde no país 66. Pedroso MC, Malik AM. Cadeia de valor da saúde: um modelo para o sistema de saúde brasileiro. Ciênc Saúde Colet 2012; 17:2757-72., integrando o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) 77. Gadelha CAG. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciênc Saúde Colet 2003; 8:521-35..

No resto do mundo, o setor também ocupa papel relevante, embora em configurações distintas. Nos Estados Unidos, país com maior gasto em saúde no mundo, o mercado tem clara clivagem entre análises clínicas e exames de imagem. No primeiro, estimado em USD 80 bilhões 88. Laboratory Corp of America Holdings. Form 10-K annual report. https://ir.labcorp.com/static-files/acb1bdbd-2fba-4427-abfc-e7e53b3620bc (acessado em 01/Dez/2021).
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, as maiores empresas são a LabCorp, com receitas anuais de USD 11,5 bilhões (sendo USD 7,0 bilhões em diagnósticos), e a Quest Diagnostics, com USD 7,7 bilhões, em 2019, ambas entre as maiores empresas de capital aberto do país - 274ª e 410ª posição, respectivamente 99. Fortune Magazine. Fortune 500, 2019. https://fortune.com/fortune500/2019/ (acessado em 16/Dez/2020).
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. Outras empresas são a Bioreference, com receitas de USD 1,3 bilhões, e a australiana Sonic Health, com vendas de USD 1,0 bilhões no país. No segmento de exames de imagem, destaca-se a RadNet, com receitas de USD 1,1 bilhões em 2020. Os números, superlativos para padrões brasileiros, sugerem, contudo, que os hospitais ainda respondem por parte significativa desses serviços em um país que gastou USD 3,8 trilhões, ou 17,7% do PIB, com saúde em 2019 1010. Centers for Medicare & Medicaid Services. National health expenditures 2020 highlights. https://www.cms.gov/files/document/highlights.pdf (acessado em 16/Dez/2020).
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. Destacam-se, ainda, as receitas globais da Sonic Health, USD 8,6 bilhões de receitas (com atividades em Estados Unidos e Europa) e a também australiana Healius, com USD 2,2 bilhões apenas no ramo de análise clínicas. Na Europa, os maiores grupos são o alemão Synlab, com receitas de EUR 2,6 bilhões, e a Suíça Unilabs, com cerca de EUR 1,0 bilhões de receitas.

A exploração desse segmento revela alto dinamismo e potencial econômico, merecendo inclusive um neologismo próprio. A expressão “medicina diagnóstica”, que não constitui uma área específica de conhecimento ou especialidade médica, disseminou-se no mundo corporativo e também acadêmico para classificar estabelecimentos e empresas que comercializam serviços bastante distintos do ponto de vista técnico-operacional, mas que se aglutinam por afinidades e economias de escopo do mercado brasileiro 1111. Campana GA, Faro LB, Gonzalez CPO. Fatores competitivos de produção em medicina diagnóstica: da área técnica ao mercado. J Bras Patol Med Lab 2009; 45:295-303.. Com esse rótulo, o segmento figura com destaque em boletins, levantamentos e análises empresariais, reforçando os objetivos deste estudo. Em 2015, seu faturamento aproximado foi de BRL 25 bilhões, sendo que as líderes do segmento têm como fonte pagadora predominante as empresas de plano de saúde, laboratórios menores (modalidade denominada business-to-business), hospitais, o pagamento direto privado e, em proporção pequena, o SUS 1212. Andrietta LS. Acumulação de capital na saúde brasileira [Tese de Doutorado]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2019.. Ainda assim, estudos e análises sobre o subsetor são escassos diante de sua importância econômica e assistencial.

Financeirização em empresas do setor de saúde

O conceito de financeirização denota a disseminação de um padrão sistêmico de produção, gestão e denominação da riqueza característico do capitalismo contemporâneo 1313. Braga JCS. Financeirização global: o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: Tavares MC, Fiori JL, organizadores. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Editora Vozes; 1997. p. 195-242.. Este processo se desdobra em múltiplas dimensões, condicionando a organização do sistema econômico mundial. Assume traços específicos em contextos periféricos como o brasileiro e traz implicações relevantes para os sistemas de proteção social e as políticas de saúde em particular 1414. Sestelo J, Cardoso AM, Braga IF, Mattos LV, Andrietta LS. A financeirização das políticas sociais e da saúde no Brasil do século XXI: elementos para uma aproximação inicial. Economia e Sociedade 2017; 26 n.spe:1097-126.. Neste estudo, a unidade de análise são empresas e grupos econômicos, sob o pressuposto de que mesmo aquelas dedicadas às atividades não financeiras têm papel ativo na amplificação dos fenômenos associados à financeirização 1515. Serfati C. O papel ativo dos grupos predominantemente industriais na financeirização da economia. In: Chesnais F, organizador. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã; 1998. p. 141-81..

A forma do capital financeiro - entendido como fusão das formas parciais do capital que ganha proeminência a partir do final do século XIX 1616. Hilferding R. El capital financiero. Madrid: Tecnos; 1973. - se caracteriza pelo alto grau de concentração e mobilidade e na centralização das decisões de investimento por agentes detentores de recursos financeiros expressivos. A integração de múltiplos setores de atividade a este padrão de acumulação impulsiona novas exigências de valorização da riqueza, provocando mudanças em mercados sensíveis, como os de produtos e serviços de saúde 1212. Andrietta LS. Acumulação de capital na saúde brasileira [Tese de Doutorado]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2019.. A financeirização se desdobra no acirramento de padrões concorrenciais, o que se expressa por meio de vários fenômenos: (i) a primazia da maximização do valor para acionistas na estratégia de grandes grupos econômicos; (ii) a formação ou o aprofundamento de oligopólios e a centralização de capital, sobretudo por meio de fusões e aquisições; (iii) o aumento das escalas de produção e de investimento, exigindo maiores recursos financeiros e maior endividamento; (iv) instabilidade e volatilidade no mercado financeiro com implicações para a alocação de ativos reais; (v) a participação crescente de instituições financeiras “tradicionais”, como bancos e seguradoras, e de investidores institucionais, como fundos de pensão, fundos mútuos, fundos de investimento etc., no controle acionário de empresas não financeiras; (vi) a tendência à abertura de capital na bolsa (nacional e internacional) para viabilizar a captação de recursos; (vii) a intensificação da presença de capital internacional em mercados com grande potencial de exploração como o brasileiro; e (viii) a incorporação de novas estratégias à “função objetivo”, alheios à sua atividade-fim originária 1313. Braga JCS. Financeirização global: o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: Tavares MC, Fiori JL, organizadores. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Editora Vozes; 1997. p. 195-242.,1515. Serfati C. O papel ativo dos grupos predominantemente industriais na financeirização da economia. In: Chesnais F, organizador. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã; 1998. p. 141-81.,1717. Lazonick W, O'Sullivan M. Maximizing shareholder value: a new ideology for corporate governance. Economia e Sociedade 2000; 29:13-35.,1818. Plihon D. As grandes empresas fragilizadas pela finança. In: Chesnais F, organizador. A finança mundializada. São Paulo: Boitempo; 2005. p. 133-51.,1919. Karwowski E, Stockhammer E. Financialisation in emerging economies: a systematic overview and comparison with Anglo-Saxon economies. Econ Polit Stud 2017; 5:60-86.,2020. van der Zwan N. State of the art. Making sense of financialization. Socio-Economic Review 2014; 12:99-129..

Enfatiza-se que esta disseminação se dá, também, de forma ativa por empresas de todos os setores como decorrência e expressão da própria lógica de valorização do capital, e não por desvirtuação de sua conduta ou imposição externa. Por essa razão, abordagens empíricas ao nível da firma têm se consolidado, ainda que haja dificuldades operacionais 2121. Davis L. Identifying the "financialization" of the nonfinancial corporation in the U.S. economy: a decomposition of firm-level balance sheets. J Post Keynes Econ 2016; 39:115-41.. Assim, espera-se que empresas originárias de qualquer ramo de atividade - na medida em que aumentam seu porte e ganham proeminência - se engajem para gerar resultados orientados por indicadores de retorno sobre o investimento, preferencialmente no curto-prazo, para aumentar o valor de mercado em bolsa, para pagar dividendos e outras formas de apropriação da riqueza, intensificando fusões e aquisições multissetoriais, entre outras. Outro desdobramento é a complexificação da gestão, que se reflete na adoção de práticas de governança corporativa sob a lógica da holding, que avalia os resultados de cada unidade operacional como investimentos separados. Prevê-se que as grandes empresas desenvolvam múltiplas estratégias na sua “função objetivo” - como a produção de bens e serviços, a incorporação de progresso técnico, a inserção no comércio internacional e em cadeias globais de valor - mas que também incluam atividades estritamente financeiras, como aplicações financeiras - em títulos, ações, moedas, derivativos etc. - e participação minoritária em outras empresas, inclusive de setores não relacionados a ela 22. National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine. Improving diagnosis in health care. Washington, DC: The National Academies Press; 2015.,1313. Braga JCS. Financeirização global: o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: Tavares MC, Fiori JL, organizadores. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Editora Vozes; 1997. p. 195-242.,1515. Serfati C. O papel ativo dos grupos predominantemente industriais na financeirização da economia. In: Chesnais F, organizador. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã; 1998. p. 141-81..

A financeirização não se expressa, entretanto, em abstrato, mas sim reorientando ou potencializando o padrão concorrencial de cada subsetor específico, com significados próprios no caso do setor saúde e, particularmente, na prestação de serviços assistenciais. Outras iniciativas têm investigado o desempenho e a trajetória de empresas e grupos econômicos da saúde, bem como os desdobramentos que a acumulação de capital no setor tem para uma agenda de afirmação dos princípios fundadores do SUS 2222. Bahia L, Scheffer M, Tavares LR, Braga IF. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2016; 32 Suppl 2:e00154015.,2323. Hiratuka C, Rocha MA, Sarti F. Mudanças recentes no setor privado de serviços de saúde no Brasil: internacionalização e financeirização. In: Gadelha P, Noronha JC, Dain S, Pereira TR, organizadores. Brasil saúde amanhã: população, economia e gestão. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2016. p. 189-220..

Esta pesquisa buscou desenvolver uma metodologia que permitisse avaliar o alcance desse processo nas empresas que atuam no setor de saúde brasileiro. Este artigo tem como objetivo identificar as expressões da financeirização no subsetor de SADT, a partir de empresas selecionadas, considerando-as em suas dimensões patrimonial, contábil e política. Busca-se compreender qual é o alcance das estratégias descritas na literatura na realidade deste segmento e quais suas implicações para a dinâmica do sistema de saúde brasileiro.

Metodologia

O artigo integra um estudo de caráter descritivo e exploratório sobre as expressões da financeirização nas empresas do setor privado de saúde no Brasil, na conjuntura anterior à crise econômica iniciada no final de 2014. A pesquisa incluiu 72 empresas ou grupos empresariais de sete subsetores: planos e seguros de saúde; hospitais e redes hospitalares; serviços de apoio diagnóstico e terapêutico; farmácias e drogarias; indústria farmacêutica; escolas de medicina; e organizações sociais de saúde (OSS). Foram pesquisados dados para o período de 2009 a 2015 nas seguintes dimensões: Patrimonial, Contábil-financeira, e Política 2424. Bahia L, Dal Poz M, Levcovitz E, Costa L, Mattos LV, Andrietta LS, et al. Financeirização do setor saúde no Brasil: desafios teóricos e metodológicos à investigação de empresas e grupos empresariais Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00004420.,2525. Andrietta LS, Monte-Cardoso A. Análise de demonstrações financeiras de empresas do setor de saúde brasileiro (2009-2015): concentração, centralização de capital e expressões da financeirização. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00006020.,2626. Mattos LV, Carvalho EMCL, Barbosa DVS, Bahia L. Financeirização, acumulação e mudanças patrimoniais em empresas e grupos econômicos do setor saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00175820..

No subsetor SADT, as empresas foram selecionadas por critério de magnitude das receitas, predominando empresas que realizam análises clínicas e exames de imagem. O estudo se desenvolveu de acordo com a disponibilidade de dados e com características particulares dos negócios praticados por essas empresas e divulgados por entidades, associações e fontes a elas relacionadas. Por isso, as conclusões não representam a totalidade dos SADT no Brasil, mas sim a dinâmica das empresas que lideram o mercado privado desses serviços.

As empresas selecionadas segundo Receita Líquida em 2015 e participação no faturamento do subsetor são: (1) Diagnósticos da América S.A. (DASA), receita de BRL 2.794 milhões (11,2% do setor); (2) Fleury S.A., BRL 1.895 milhões (7,6%); (3) Instituto Hermes Pardini S.A., BRL 770 milhões (3,1%); (4) Alliar - Centro de Imagens Diagnóstico S.A., BRL 697 milhões (2,8%); (5) Laboratório Sabin de Análises Clínicas Ltda., BRL 560 milhões (2,2%); e (6) Salomão Zoppi Serviços Médicos e Participações S.A., BRL 254 milhões (1%).

A pesquisa desenvolveu o Banco de Dados sobre Empresariamento na Saúde (BDES 1.0) contemplando três dimensões investigadas. Para a Dimensão 1 - patrimonial, o BDES-A sistematizou os dados societários das companhias - forma jurídica, estrutura proprietária e de controle - e de suas operações financeiras e atividades econômicas, coletados em jornais especializados, juntas comerciais e relatórios empresariais entre 2008 e 2016. O BDES-B explora a Dimensão 2 - contábil-financeira, reunindo rubricas do balanço patrimonial e do demonstrativo de resultados do exercício e indicadores contábeis calculados a partir da pesquisa e digitalização de demonstrações financeiras e padronização dos dados de 2009 a 2015, seguindo as Normas do Conselho Financeiro Internacional (International Financial Board Standards, IFRS). A Dimensão 3 - política é contemplada pelo BDES-C, compondo uma matriz de proposições e propositores a partir do levantamento de material produzido pelas empresas, por entidades de classe, associações e sociedades científicas; projetos tramitando no legislativo, entre outras fontes. Os aspectos metodológicos são discutidos em detalhe por Bahia e colaboradores 2424. Bahia L, Dal Poz M, Levcovitz E, Costa L, Mattos LV, Andrietta LS, et al. Financeirização do setor saúde no Brasil: desafios teóricos e metodológicos à investigação de empresas e grupos empresariais Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00004420..

Os resultados exploram resultados das três dimensões. Na primeira, apresentam-se informações societárias e sobre operações de fusões e aquisições. Na segunda, apresentam-se quatro categorias. O Porte é medido por Receita Líquida (vendas operacionais), Ativo Total (haveres à disposição da empresa) e Patrimônio Líquido (capital relativo aos proprietários). O Desempenho é avaliado pelo Retorno sobre o Capital Próprio (= Lucro Líquido/Patrimônio Líquido), pela Margem Líquida (= Lucro Líquido/Receita Líquida) e Giro do Ativo (= Receita Líquida/Ativo Total), sendo Lucro Líquido aquele atribuído a proprietários/acionistas ao final do exercício. O Padrão de Endividamento é medido pela Participação de Capital de Terceiros (= Passivo/Patrimônio Líquido), em que Passivo é deveres com terceiros. A Relevância de ativos financeiros é medida por Disponibilidades (caixa e ativos financeiros de curto prazo) por Ativo Total e pelo indicador Receita Financeira/Receita Líquida. Na terceira, apresenta-se a pesquisa de entidades associativas do setor e de suas proposições.

Resultados

Dimensão patrimonial

Observa-se, no Quadro 1, que a maioria (cinco de seis) das empresas selecionadas atua na forma de sociedade anônima, sendo quatro delas de capital aberto: DASA (data de entrada na bolsa: 2004), Fleury (2009) e, já no final do período da pesquisa, Alliar (2016) e Hermes Pardini (2017). O controle acionário é majoritariamente nacional, com a presença de sócios-fundadores, grupos familiares ou pessoas físicas - notadamente, médicos - no comando. É comum a presença de investidores institucionais ou bancos como sócios minoritários - caso do Fleury, Hermes Pardini e Alliar ao final de 2016, bem como foi o da DASA até a atual família proprietária assumir o controle em 2010. Já Sabin e Salomão Zoppi eram controlados por suas sócias e seus sócios. As sedes das companhias seguem a presença geográfica das operações de origem, sendo três em São Paulo, duas em Minas Gerais e uma no Distrito Federal.

Quadro 1
Características gerais de empresas selecionadas do subsetor de serviços de apoio ao diagnóstico e terapia segundo sede, natureza jurídica, perfil de acionistas e sócios, estrutura e controle de capital, presença e magnitude, atividades econômicas e assistenciais. Brasil, 2017.

Durante o período, houve expansão geográfica em cinco de seis empresas. A concorrência se nacionalizou, contudo o mercado é segmentado geograficamente e mediado por “bandeiras” - marcas seguindo perfis de consumo, nacionais ou regionais mantidas após aquisição. A ampliação das operações gerou economias de escalas reportadas nos relatórios das empresas, em especial no segmento de Análises Clínicas, com aumento de postos de coleta e atendimento e simultânea centralização do processamento em unidades maiores. Há ênfases de mercado específicas: o Hermes Pardini concentra-se nas análises clínicas, inclusive no processamento para terceiras empresas; o grupo Alliar foi formado nas atividades de Imagem. As empresas registram ainda atividades econômicas diversas correlatas ou complementares às centrais: por exemplo, pesquisa, serviços de informação, gestão de ativos intangíveis, venda e licenciamento de franquias, entre outras.

O crescimento do setor de SADT também se explica por sua presença destacada nas operações patrimoniais, apresentadas na Tabela 1: mais de 25% das aquisições do setor saúde (59 de 223) e duas das sete fusões. Foram movimentados BRL 9,6 bilhões entre 2008 e 2015. Das 74 operações identificadas no subsetor, 63 foram aquisições ou compras de participação, principalmente de empresas menores, totalizando cerca de BRL 3,6 bilhões. Todas as empresas realizaram uma quantidade relevante de compras, com destaque para Alliar, que se constituiu a partir de empresas menores. Em termos de valores totais, Fleury foi a empresa que mais se destacou, seguida de DASA e Alliar, no valor médio das operações, Fleury e DASA responderam por operações muito maiores que as demais.

Tabela 1
Número e valores (milhões de reais) de operações patrimoniais realizadas por empresas brasileiras selecionadas * de Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT), acumulados de 2008 a 2016.

Houve pequena participação nas vendas, apenas nove operações de venda total, venda de participação e oferta pública de ações. O volume de recursos envolvidos, cerca de BRL 6 bilhões, supera bastante o que foi gasto com aquisições. Estas operações são relativas à entrada de investidores institucionais, como fundos de investimentos e seguradoras no Hermes Pardini, Alliar e Fleury. No caso do DASA, também ocorreram vendas de ativos para atender a determinações do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em função de uma fusão e da entrada do ex-proprietário da Amil no controle do DASA. Uma operação de fusão envolvendo quatro laboratórios originou a fundação da Alliar em 2010. Em janeiro de 2017, fora do período da pesquisa, a empresa Salomão Zoppi foi adquirida pela DASA.

Dimensão contábil-financeira

As medianas dos indicadores de Porte do subsetor SADT, apresentadas na Tabela 2, são relativamente pequenas, explicado por haver duas empresas de destaque, DASA e Fleury, junto com outras três menores, Hermes Pardini, Alliar e Salomão Zoppi - não foram encontradas demonstrações contábeis do Sabin. No quesito Ativo Total, a mediana do subsetor (BRL 1.497 milhões em 2015) é inferior à das Empresas de Capital Aberto e do setor saúde, mas cresce mais durante o período 2009-2015 (57% contra 8% de empresas de capital aberto - ECA e setor saúde). Nesta rubrica, o DASA é a sétima maior empresa - a maior dentre aquelas de Ativo inferior a BRL 10 bilhões - e Fleury é a 11ª maior. Quanto ao Patrimônio Líquido, o crescimento (75%) da mediana do subsetor SADT o fez atingir, ao final do período, um patamar superior ao das ECA e compatível com o setor saúde (BRL 745 milhões em 2015). Destacam-se, em 2015, novamente DASA e Fleury, como oitava e 13ª maiores empresas, respectivamente, mas também a Alliar, que fica acima da mediana do setor saúde. Por fim, na rubrica Receitas Líquidas está o pior resultado do subsetor: sua mediana em 2015 (BRL 697 milhões) é inferior às das ECA e do setor saúde (BRL 707 e BRL 2,304 milhões, respectivamente). Somente o DASA, a 16ª maior, está acima da mediana do setor saúde. A composição de Ativos e Patrimônios Líquidos relativamente maiores que as Receitas - em relação ao setor saúde - sugere que o setor apresente menores Giro do Ativo e Endividamento.

Tabela 2
Porte do setor saúde e das empresas do setor de Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT), segundo Ativo, Patrimônio Líquido e Receita Líquida (mediana, em BRL milhões, 2015, deflacionados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor - IPCA).

Conforme a Tabela 3, o subsetor SADT apresentou rentabilidade sobre capital próprio (ROE, na sigla usualmente difundida, do inglês return on equity) inferior ao do setor saúde na maior parte do período, embora superior ao das empresas de Capital Aberto e das Maiores Empresas. O ROE pode ser decomposto num produto de outros três indicadores: Margem Líquida, Giro do Ativo e Endividamento (1 - Participação do Capital de Terceiros). O subsetor se destaca na Margem Líquida, com mediana superior ou igual à do setor saúde - expressando a Margem Operacional e boa lucratividade relativa dos SADT. Contudo o subsetor possui tanto a mediana como o valor do Giro do Ativo de suas empresas inferior à do setor saúde, revelando, talvez, o peso dos equipamentos no Ativo Imobilizado; e, também, o resultado do subsetor e das empresas como um todo na Participação do Capital de Terceiros se destaca negativamente na mesma comparação e até mesmo com ECA e Melhores & Maiores da Exame. Estes dois indicadores corroboram a sugestão posta na análise dos dados de porte.

Tabela 3
Desempenho do setor saúde e das empresas de Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT), medido por Indicadores selecionados de Retorno, Lucratividade, Giro do Ativo e Endividamento, em %.

No quesito Importância de Aplicações Financeiras apresentado na Tabela 4, as Disponibilidades sobre Ativo são compatíveis com o Setor Saúde e estão à frente das ECA, sendo Hermes Pardini, Salomão Zoppi e Fleury acima da mediana em diversos anos. Quanto às Receitas Financeiras sobre as Receitas Líquidas, a mediana do subsetor é inferior à das ECA, mas superior à do Setor Saúde. DASA, Fleury e Hermes Pardini são os destaques. Embora os resultados não apresentem resultado excepcional, pode-se dizer que o subsetor se destaca relativamente na acumulação de ativos financeiros e na geração de rendas financeiras.

Tabela 4
Relevância de Aplicações Financeiras do setor saúde e das empresas do setor de Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT), segundo indicadores selecionados (%).

Dimensão política

Entre as entidades vinculadas ao subsetor, foram levantadas as de profissões, como aquelas vinculadas à Associação Médica Brasileira (AMB) - Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML, fundada em 1944) e Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR, em 1948) - e as vinculadas a atividades de diagnóstico - Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC, em 1967). Entre as entidades empresariais, destacam-se a Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial (CBDL, em 1991), reunindo empresas do setor de produtos e equipamentos para diagnóstico in vitro e in vivo, a Associação Brasileira das Clínicas de Diagnóstico por Imagem (ABCDI, em 2001), departamento do CBR, que congrega pessoas jurídicas vinculadas às atividades de radiologia, diagnóstico e terapia por imagem, e a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed, em 2010), representante das grandes empresas.

As proposições políticas identificadas em geral seguem dois perfis principais. A maior parte dos temas abordados diz respeito a questões técnicas ou normativas relacionadas a protocolos, vigilância sanitária e controle de qualidade. Eventualmente, esta agenda evidencia disputas concorrenciais em nichos específicos, como no caso da possibilidade de realização de testes e outros procedimentos em farmácias e drogarias. Em temas regulatórios com implicações mais abrangentes, empresas e entidades do subsetor tendem a participar e subscrever iniciativas de proposição dos planos de saúde, suas principais fontes pagadoras.

Discussão

Os principais resultados que corroboram as hipóteses de financeirização no subsetor de SADT são a quantidade e a ênfase dada às operações de Fusões e Aquisições nas estratégias das grandes empresas; além disso, o ritmo do crescimento do seu porte, especialmente do seu capital (Ativo) e das duas maiores empresas. Observou-se, de maneira geral, aumento da profissionalização da gestão das companhias, mesmo onde predomina o controle familiar. Com isso, as práticas de governança corporativa de mercado se disseminaram, em especial aquelas de valorização no mercado acionário para as quatro companhias abertas: por exemplo, auditorias internas, práticas de transparência e compliance, a divulgação regular de relatórios de administração, sustentabilidade socioambiental, relação com investidores, entre outros. O perfil estilizado dessa trajetória poderia ser descrito como a empresa familiar média que gradualmente racionaliza suas atividades para tornar-se atrativa à compra por uma das líderes já estabelecidas, grupos econômicos de outros subsetores ou, ainda, investidores institucionais e empresas financeiras. O aporte de recursos geralmente dispara um movimento agressivo de fusões e aquisições de empresas menores para a conquista de praças comerciais que acompanham, em larga medida, a distribuição geográfica dos clientes de planos de saúde privados.

É notável que o mercado da chamada “medicina diagnóstica”, apenas uma parcela dos SADT, permanece ainda muito pulverizado: as seis empresas somaram 22,1% das receitas em 2011 e 27,9% em 2015 33. Martins LO. O segmento da medicina diagnóstica no Brasil. Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba 2014; 16:139-45.,1111. Campana GA, Faro LB, Gonzalez CPO. Fatores competitivos de produção em medicina diagnóstica: da área técnica ao mercado. J Bras Patol Med Lab 2009; 45:295-303.,1212. Andrietta LS. Acumulação de capital na saúde brasileira [Tese de Doutorado]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2019.. Contudo há uma clara tendência à centralização do mercado em poucas empresas líderes, sendo que todas as pesquisadas cresceram no período. Considerando o volume de aquisições de setores como laboratórios e hospitais no período posterior 55. Valor Setorial. Medicina diagnóstica: laboratórios, hospitais e operadoras. Valor Econômico: Análise Setorial 2017; Ed. Especial.,2626. Mattos LV, Carvalho EMCL, Barbosa DVS, Bahia L. Financeirização, acumulação e mudanças patrimoniais em empresas e grupos econômicos do setor saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00175820., é provável que tal processo continue, a depender de fatores como existência de empresas com perfil de negócios/clientela compatível com as grandes empresas, capacidade de financiamento de aquisições etc.

O subsetor não se revelou um investimento especialmente atraente: a mediana do retorno sobre o capital próprio é menor que a do setor saúde pesquisado. Ainda assim, as empresas de SADT se destacam pela lucratividade, em especial diante das maiores empresas e das empresas de capital aberto, o que poderia ser um diferencial. Chama atenção o baixo endividamento, sugerindo que o uso de capital de terceiros não foi decisivo para a consolidação do setor em poucas grandes empresas, mas que essa estratégia - recorrendo aos mercados bancário ou de capitais - pode ser mais utilizada no futuro.

O perfil dos clientes do subsetor, documentados nos relatórios Anuais das empresas e na mídia especializada, revelou os planos de saúde são a fonte pagadora predominante. Assim, a concorrência pela aquisição e criação de operações de diagnóstico segue a distribuição geográfica e a segmentação por clientelas daquele setor. Esta ligação não se resume às receitas, mas expressa também um circuito de acumulação de capital mais amplo e ainda em desenvolvimento, que contempla operações patrimoniais cruzadas entre grupos empresariais de ambos os subsetores.

A hipótese 1717. Lazonick W, O'Sullivan M. Maximizing shareholder value: a new ideology for corporate governance. Economia e Sociedade 2000; 29:13-35.,1818. Plihon D. As grandes empresas fragilizadas pela finança. In: Chesnais F, organizador. A finança mundializada. São Paulo: Boitempo; 2005. p. 133-51.,1919. Karwowski E, Stockhammer E. Financialisation in emerging economies: a systematic overview and comparison with Anglo-Saxon economies. Econ Polit Stud 2017; 5:60-86. de que a relevância das aplicações financeiras se manifestaria mesmo nas empresas não financeiras não se concretizou. Pelo contrário, a tendência é de redução da razão entre receitas financeiras e operacionais, a despeito da importância relativa de ativos financeiros no subsetor. Como tais empresas praticamente só apresentaram resultados financeiros líquidos negativos no período, relativiza-se a expectativa da generalização de ganhos financeiros entre as empresas de SADT. Sem embargo, é inegável que a manutenção de uma significativa carteira de ativos financeiros é parte integrante da gestão empresarial.

Algumas limitações do estudo precisam ser explicitadas para melhor aproveitamento dos resultados. A quantidade de empresas (seis) e o período estudado (sete anos) captam o universo das grandes empresas, mas não permitem maiores generalizações. O critério de seleção excluiu atividades com importância tradicional ou crescente, como as terapias - hemodiálises, oncológicas etc. Dessa forma, o trabalho não caracteriza o subsetor de maneira integral, mas fornece importantes subsídios para tal.

A escolha da pesquisa de ter como unidade de análise as empresas individualmente não permite esgotar certas hipóteses teóricas sobre a financeirização. Afinal, observou-se grande conjunto de operações patrimoniais cujas decisões e implicações se referem aos seus grupos proprietários. É difícil captar na totalidade a magnitude, o ritmo e a flexibilidade de certas operações e seu significado mais abrangente. Além disso, certas operações complexas exigem olhar mais detido e aprofundado, envolvendo acordos entre acionistas para o controle empresarial, a distribuição de recursos sob a forma de dividendos (podendo voltam para as empresas, para o setor ou migram para outros investimentos, inclusive estrangeiros); e o destino dos recursos obtidos por famílias ou grupos que venderam empresas ou participações. Novos estudos devem aprimorar a metodologia para captar as estratégias de grupos econômicos multissetoriais num sentido mais abrangente e suas implicações para o setor saúde.

Este trabalho abordou majoritariamente o período anterior à crise econômica iniciada em 2014, captando um momento de expansão da economia nacional e do subsetor. Os dados contábeis, especialmente, cobrem o período até 31 de dezembro de 2015. Cabe registrar que uma futura ampliação do escopo deste estudo enriqueceria a compreensão sobre as implicações da crise no sistema de saúde, especialmente seu caráter contratendencial. Em consonância aos dados de 2015 aqui apresentados, há evidências abundantes de que, apesar da desaceleração econômica dos anos seguintes, o setor privado na saúde continuou se expandindo, sustentado por reajustes de preço e, também, pelo aumento da oferta de serviços, com ligeira queda na cobertura por planos privados e com aprofundamento de desigualdades 2727. Andrietta LS, Levi ML, Scheffer MC, Alves MT, Oliveira BL, Russo G. The differential impact of economic recessions on health systems in middle-income settings: a comparative case study of unequal states in Brazil. BMJ Global Health 2020; 5:e002122.,2828. Andrietta LS, Monte-Cardoso A, Sestelo JA, Scheffer MC, Bahia L. Empresas de planos de saúde no Brasil: crise sanitária e estratégias de expansão. In: Gadelha P, Noronha JC, Castro L, Pereira TR, organizadores. Economia e financiamento do sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Livres; 2021. p. 235-262..

Além da tendência de maior centralização do setor, novas combinações de negócios incluíram empresas e atividades de SADT. Destaca-se, inicialmente, a abertura de capital de Alliar (2016) e Hermes Pardini (2017), já mencionados. As empresas também diversificaram ou integraram outras atividades: o Fleury incorporou atividades como atendimento primário, cuidado para empresas, telemedicina, infusão de medicamentos, oftalmologia, fertilidade, day clinic etc., atingindo 16% das receitas em 2019; o Alliar participa, desde 2015, de consórcio para gestão e operação de serviços de diagnóstico para o Estado da Bahia; o grupo Hermes Pardini consolidou suas atividades de imagem, ramo em que o Sabin entrou a partir de 2015; o Alliar aumentou o peso das análises laboratoriais nas suas atividades.

Um movimento mais intenso de integração vertical ocorreu por iniciativa de empresas de planos de saúde, que adquiriram ou desenvolveram serviços próprios de diagnóstico, como o Grupo NotreDame Intermédica e a Hapvida. Em 2019, o DASA se fundiu com o grupo hospitalar Ímpar (dos mesmos proprietários), enquanto o grupo hospitalar Rede D’Or tentou adquirir o Alliar em 2021 2929. Koike B. Dasa une operações com rede de hospitais Ímpar. Valor Econômico 2019; 8 nov. https://valor.globo.com/empresas/noticia/2019/11/08/dasa-une-operacoes-com-rede-de-hospitais-impar.ghtml.
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https://valor.globo.com/empresas/noticia...
. Operações que tornam menos nítidas as fronteiras entre os serviços oferecidos exigem novas pesquisas que ultrapassem o limite das empresas e dos subsetores como unidades de análise.

Os resultados confirmaram ainda que a dinâmica deste subsetor não deve ser negligenciada na compreensão de problemas estruturais do sistema de saúde brasileiro. A conclusão de que a acumulação neste subsetor se apoia, também, numa tendência de alta dos preços de exames e outros serviços. Note-se que o aumento de preços tende a se generalizar, independentemente da escala das empresas e de sua localização. Mesmo sendo o mercado de SADT relativamente pulverizado, empresas pequenas de alcance local ou regional contam com empresas maiores para a realização efetiva de exames mais complexos, o que tem se exacerbado continuamente por inovações logísticas e comerciais.

A questão dos preços também remete a potenciais dificuldades para o SUS, considerando sua grande dependência da provisão privada e a concorrência direta com planos privados, que têm conseguido repassar custos aos seus pacientes. Os resultados do trabalho sugerem que a dinâmica de acumulação do setor depende fortemente de planos de saúde, desembolso direto e demanda de empresas menores - o que também evidencia as dificuldades de consolidação do setor público. Mesmo sendo altamente dependente da contratação de serviços privados, o SUS não protagoniza a oferta de SADT nem ocupa posição estratégica na demanda dos segmentos mais dinâmicos desse setor. Nesse cenário, tendem a se manter a segmentação e a privatização do sistema de saúde brasileiro, e a crônica insuficiência de oferta desses serviços por meio da rede pública.

Considerações finais

Este trabalho trata de um subsetor com produção acadêmica relativamente pequena. Isso se justifica pela própria organização da oferta dos serviços de SADT, muito vinculada internacionalmente à assistência hospitalar. Os grupos da “medicina diagnóstica”, que integram diagnóstico laboratorial e por imagem, não são inteiramente um fenômeno brasileiro, mas têm aqui grande importância, justificando mais trabalhos sobre o subsetor.

O uso intensivo de serviços de diagnóstico é uma tendência mais profunda da própria medicina e da assistência à saúde em geral 3131. Clarke AE, Shim JK, Mamo L, Fosket JR, Fishman JR. Biomedicalization: technoscientific transformations of health, illness, and U.S. Biomedicine. Am Sociol Rev 2003; 68:161-94.. Portanto a ampliação absoluta do gasto com tais serviços - e mesmo relativa ao total - é esperada. Inovações tecnológicas estão sendo desenvolvidas, criando novos paradigmas de cuidado, como a genômica ou medicina personalizada. Na medida em que são incorporadas, elas impactam práticas profissionais e sistemas de saúde não apenas com seus benefícios, mas com maiores desigualdades de acesso. Do ponto de vista nacional, a tendência também exacerba a dependência tecnológica de fornecedores estrangeiros de equipamentos e insumos, como a pandemia de COVID-19 explicitou. No horizonte das empresas, ainda estão disputas regulatórias por nichos de mercado, como a entrada de farmácias na realização de exames 3232. Martins E. Anvisa estuda autorizar farmácias a realizar exames laboratoriais. O Globo 2020; 19 out. https://oglobo.globo.com/brasil/anvisa-estuda-autorizar-farmacias-realizar-exames-laboratoriais-24699875.
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Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, edital nº 41/2013).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2021
  • Revisado
    10 Dez 2021
  • Aceito
    06 Jan 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br