A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar no desafio de desvendar iniquidades em grupos interseccionais: debate e agenda de pesquisa

The Brazilian Food Insecurity Scale in the challenge of uncovering inequities in intersectional groups: debate and research agenda

La Escala Brasileña de Inseguridad Alimentaria en el desafío de descubrir inequidades en grupos interseccionales: debate y agenda de investigació

Silvana Oliveira da Silva Sandra Maria Chaves dos Santos Cíntia Mendes Gama Giselle Ramos Coutinho Maria Elisabete Pereira dos Santos Natanael de Jesus Silva Sobre os autores

Agradecemos a leitura interessada e detalhada do artigo de nossa autoria, A Cor e o Sexo da Fome: Análise da Insegurança Alimentar sob o Olhar da Interseccionalidade11. Silva SO, Santos SMC, Gama CM, Coutinho GR, Santos MEP, Silva NJ. A cor e o sexo da fome: análise da insegurança alimentar sob o olhar da interseccionalidade. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00255621., a qual gerou a Carta às Editoras Iniquidades em Insegurança Alimentar: Considerações sobre a Comparabilidade entre Grupos Interseccionais22. Cezimbra VG, Bastos JL, Reicheinheim M. Iniquidades em insegurança alimentar: considerações sobre a comparabilidade entre grupos interseccionais. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00152322.. O reconhecimento dos relevantes resultados sobre a intersecção de gênero/sexo e raça/cor em sua relação com a insegurança alimentar em uma cidade como Salvador (Bahia, Brasil), marcada por desigualdades e iniquidades, mostra que estamos no caminho certo para desvendar fenômenos que se tornam invisíveis no conjunto de problemas sociais que assolam nossa sociedade.

Consideramos igualmente que as questões trazidas pelos autores sobre o poder da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) para responder sobre a insegurança alimentar que incide nos diferentes grupos populacionais, assumindo-se que a escala afere da mesma forma em diferentes grupos, é uma oportunidade para que possamos avançar na compreensão e debate do potencial da escala.

A adoção da EBIA no Brasil foi precedida de estudos de validação desde 2003, que envolveram pesquisadores de vários estados do país, com apoio de pesquisadores internacionais experientes no uso do instrumento em outros contextos 33. Segall-Corrêa AM. Insegurança alimentar medida a partir da percepção das pessoas. Estud Av 2007; 21:143-54.,44. Pérez-Escamilla R, Segall-Corrêa AM. Food insecurity measurement and indicators. Rev Nutr 2008; 21 Suppl:15s-26s.. Considerando a dimensão de acesso aos alimentos como um ponto inicial para a discussão do direito humano à alimentação, a investigação com o uso da EBIA contempla o estudo de variáveis que comprometem o respeito a este direito e a provisão de alimentos. Desde então, pesquisadores têm buscado testar a EBIA para que seja cada vez mais qualificada ao que se propõe, que é medir a percepção e a vivência de acesso aos alimentos com foco na condição econômica. Nesse processo, a EBIA passou por algumas modificações e novas possibilidades, como a redução da quantidade de perguntas e a indicação da possibilidade de uso de versão curta da escala, resultados de análises e avaliação dos seus itens 55. Segall-Corrêa AM, Marin-León L, Melgar-Quiñonez H, Pérez-Escamilla R. Refinement of the Brazilian Household Food Insecurity Measurement Scale: recommendation for a 14-item EBIA. Rev Nutr 2014; 27:241-51..

É reconhecido que a EBIA não alcança todas as dimensões que envolvem a segurança alimentar e nutricional. Kepple & Segall-Corrêa 66. Kepple AW, Segall-Corrêa, AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99. desenvolveram, a partir de vários referenciais e experiências, um modelo conceitual para o debate sobre indicadores e analisaram os alcances e limites da referida escala. A escala adaptada e validada para o Brasil não dá conta de alcançar toda a complexidade do fenômeno, mas tem produzido resultados validados em diferentes experiências, incluindo cortes por renda, por área de domicílio, por regiões do país etc.

Decerto, a pergunta sobre interseccionalidade não estava ainda posta no cenário dos primeiros estudos, mas as variáveis capazes de expressar o fenômeno estiveram presentes no levantamento sociodemográfico, como usual nos estudos epidemiológicos. Os resultados da pesquisa que gerou o artigo em debate e outros resultados que vêm sendo obtidos com a aplicação da escala no Brasil, e em outros países, são suficientemente robustos para trazer a interseccionalidade de gênero e raça para o foco da discussão.

O desenvolvimento de um questionário deve ser contínuo para melhorar sua adequação. Nesse contexto, para avaliação e validação da EBIA, alguns estudos têm buscado explorar as variações psicométricas da escala considerando as diferentes características do entrevistado. O estudo de Hackett et al. 77. Hackett M, Melgar-Quiñonez H, Pérez-Escamilla R, Segall-Corrêa AM. Gender of respondent does not affect the psychometric properties of the Brazilian Household Food Security Scale. Int J Epidemiol 2008; 37:766-74. testou a EBIA explorando as variações de gênero em grande amostra nacional da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2004). As entrevistadas do sexo feminino apresentaram maior quantidade de respostas afirmativas para a insegurança alimentar. A diferença de gênero na experiência com a fome, assim como na sua interpretação, já tem sido levantada por pesquisadores, e, como resultado da avaliação da EBIA por meio do modelo Rasch, os autores encontraram que o resultado da EBIA poderia ser comparado entre os sexos, sem viés da ferramenta. Os autores chamaram a atenção para a necessidade dessa investigação considerando outros subgrupos, entre eles, por raça/cor.

Destaca-se que estudos sobre a insegurança alimentar no Brasil têm de forma significativa e recorrente revelado que entrevistados(as) negros(as) apresentam maior insegurança alimentar 88. Gubert MB, Segall-Corrêa AM, Spaniol AM, Pedroso J, Coelho SEAC, Pérez-Escamilla R. Household food insecurity in black-slaves descendant communities in Brazil: has the legacy of slavery truly ended? Public Health Nutr 2017; 20:1513-22.. Esses resultados dialogam com a condição social e econômica da população negra no Brasil, que é vitimada pelo racismo e, consequentemente, vulnerabilizada pela pobreza e por dificuldades de ascensão social que impedem a manutenção da própria vida devido à falta do alimento básico. O estudo em questão buscou incorporar a variável raça/cor de uma forma diferenciada, a partir do cruzamento com a variável sexo, a fim de basear a discussão da interseccionalidade, que assume que, quando olhamos para mais de um marcador social, conseguimos visualizar novas nuances das desigualdades impostas pela articulação dos sistemas de poder na vida dos diferentes grupos que são beneficiados ou prejudicados a depender de suas identidades sociais. Para tal investigação, foi utilizada uma amostra representativa da cidade de Salvador, que mantém uma característica diferenciada, pois é a cidade proporcionalmente mais negra do país, com cerca de 80% da população de autodeclarados pretos e pardos 99. Santos E, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al. QUALISalvador: qualidade do ambiente urbano na cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022..

As diferenças sociais e econômicas entre os grupos estudados, homem branco, mulher branca, homem negro e mulher negra, têm sido levantadas no país há algumas décadas 1010. Carneiro S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro; 2011.,1111. Rosa W. Sexo e cor/raça como categorias de controle social: uma abordagem sobre desigualdades socioeconômicas a partir dos dados do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça - Terceira Edição. In: Bonetti AL, Abreu MA, organizadoras. Faces da desigualdade de gênero e raça no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2011. p. 111-27.. Essas análises consideram o processo de colonização e a reprodução do racismo e do sexismo que marcam os países colonizados e apresentam consequências negativas para o homem negro e a mulher negra.

A insegurança alimentar medida pela EBIA, ao longo dos anos, tem demonstrado sua íntima relação com a condição social dos grupos estudados e, especialmente, com os indicadores de renda e educação 1212. Lignani JB, Palmeira PA, Antunes MML, Salles-Costa R. Relationship between social indicators and food insecurity: a systematic review. Rev Bras Epidemiol 2020; 23:e200068., de tal forma que domicílios de baixa renda e/ou com responsável de baixa escolaridade apresentam maior insegurança alimentar. Nas análises por raça/cor realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e por diferentes pesquisadores brasileiros, a população negra, e em particular as mulheres negras, é representada majoritariamente nas piores condições de vida, considerando diferentes indicadores, como renda e escolaridade. Nesse contexto, as diferenças da insegurança alimentar encontradas entre os grupos podem ser atribuídas às iniquidades históricas e extremamente atuais que atingem a população negra. Reforçam também a capacidade da EBIA para a identificação dos grupos mais vulneráveis à insegurança alimentar.

Posto isso, no que tange à qualificação do instrumento utilizado, é recomendável que as características psicométricas da EBIA para variações de raça/cor e gênero/sexo de forma cruzada sejam exploradas. Novas análises devem ser realizadas para melhorar a qualidade metodológica e corroborar as possibilidades de uso deste instrumento de aferição, especialmente devido à manutenção da insegurança alimentar no Brasil. Ficamos gratas pela possibilidade de o artigo gerar novas hipóteses. Diante da relevância da EBIA para a investigação da insegurança alimentar, abre-se então a chance para estudos mais metodológicos e, decerto, temos interesse em seguir conversando sobre o tema e estamos à disposição para novos trabalhos nesse sentido.

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  • 1
    Silva SO, Santos SMC, Gama CM, Coutinho GR, Santos MEP, Silva NJ. A cor e o sexo da fome: análise da insegurança alimentar sob o olhar da interseccionalidade. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00255621.
  • 2
    Cezimbra VG, Bastos JL, Reicheinheim M. Iniquidades em insegurança alimentar: considerações sobre a comparabilidade entre grupos interseccionais. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00152322.
  • 3
    Segall-Corrêa AM. Insegurança alimentar medida a partir da percepção das pessoas. Estud Av 2007; 21:143-54.
  • 4
    Pérez-Escamilla R, Segall-Corrêa AM. Food insecurity measurement and indicators. Rev Nutr 2008; 21 Suppl:15s-26s.
  • 5
    Segall-Corrêa AM, Marin-León L, Melgar-Quiñonez H, Pérez-Escamilla R. Refinement of the Brazilian Household Food Insecurity Measurement Scale: recommendation for a 14-item EBIA. Rev Nutr 2014; 27:241-51.
  • 6
    Kepple AW, Segall-Corrêa, AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99.
  • 7
    Hackett M, Melgar-Quiñonez H, Pérez-Escamilla R, Segall-Corrêa AM. Gender of respondent does not affect the psychometric properties of the Brazilian Household Food Security Scale. Int J Epidemiol 2008; 37:766-74.
  • 8
    Gubert MB, Segall-Corrêa AM, Spaniol AM, Pedroso J, Coelho SEAC, Pérez-Escamilla R. Household food insecurity in black-slaves descendant communities in Brazil: has the legacy of slavery truly ended? Public Health Nutr 2017; 20:1513-22.
  • 9
    Santos E, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al. QUALISalvador: qualidade do ambiente urbano na cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022.
  • 10
    Carneiro S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro; 2011.
  • 11
    Rosa W. Sexo e cor/raça como categorias de controle social: uma abordagem sobre desigualdades socioeconômicas a partir dos dados do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça - Terceira Edição. In: Bonetti AL, Abreu MA, organizadoras. Faces da desigualdade de gênero e raça no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2011. p. 111-27.
  • 12
    Lignani JB, Palmeira PA, Antunes MML, Salles-Costa R. Relationship between social indicators and food insecurity: a systematic review. Rev Bras Epidemiol 2020; 23:e200068.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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