Adesão à terapia antirretroviral de pessoas vivendo com HIV/aids em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

Adherence to antiretroviral therapy by people living with HIV/AIDS in Florianópolis, Santa Catarina State, Brazil

Adherencia al tratamiento de personas que viven con VIH/SIDA en Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

Marcos Paulo Marzollo Maria Maitê Peres de Carvalho Anaclaudia Gastal Fassa Sobre os autores

Resumos

A adesão à terapia antirretroviral (TARV) é fundamental para obter o controle da infecção por HIV, evitando complicações clínicas e o desenvolvimento de cepas de HIV resistentes. Vários municípios brasileiros estão comprometidos com a meta 90-90-90, que prevê que 90% dos casos de HIV/aids sejam diagnosticados, que 90% destes estejam em tratamento e, destes, 90% alcancem a supressão viral. Entretanto, existem apenas três estudos brasileiros que avaliam a adesão à TARV a partir de dados secundários de dispensação. Este estudo objetivou estimar a prevalência de adesão ao tratamento no Município de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, examinando sua associação com aspectos demográficos, de utilização de saúde e características clínicas. Realizou-se um estudo transversal com o uso de dados secundários do prontuário eletrônico e dados nacionais, dos Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (SICLOM) e Sistema de Controle de Exames Laboratoriais (SISCEL), de pessoas vivendo com HIV/aids no município de abril de 2020 a março de 2021. A prevalência de adesão à TARV foi de cerca de 85%. Pessoas brancas, do sexo masculino, que tinham acompanhamento tanto na atenção primária à saúde (APS) quanto na atenção secundária tinham maior adesão ao tratamento. A idade e o número de consultas apresentaram associação direta com adesão à TARV. O processo de descentralização do cuidado ao usuário vivendo com HIV/aids é o caminho para uma assistência mais integral, porém desafios técnicos e éticos ainda precisam ser enfrentados. A qualificação profissional, o correto referenciamento com articulação em rede e a atenção às questões de sigilo e confidencialidade precisam ser reforçadas de forma a ampliar a adesão ao tratamento.

Palavras-chave:
Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; HIV; Terapia Antirretroviral de Alta Atividade; Adesão à Medicação


Adherence to antiretroviral therapy (ART) is essential to control HIV infections and avoid clinical complications and the development of resistant HIV strains. Several Brazilian municipalities have committed themselves to the 90-90-90 target, which aims at diagnosing 90% of HIV/AIDS cases, treating 90% of them, and virally suppressing 90% of them. However, only three Brazilian studies have assessed adherence to ART from secondary dispensing data. This study aimed to estimate the prevalence of adherence to treatment in the Municipality of Florianópolis, Santa Catarina State, Brazil, examining its association with demographic, health access, and clinical characteristics. A cross-sectional study was conducted using secondary national data from electronic medical records and Medication Logistic Control System (SICLOM) and Laboratory Test Control System (SISCEL) regarding people living with HIV/AIDS in the municipality from April 2020 to March 2021. We found an about 85% prevalence of adherence to ART. White men with follow-ups both in primary and secondary care showed greater adherence to treatment. Age and number of consultations directly related to adherence. Decentralizing care for users living with HIV/AIDS is the way to more comprehensive care but technical and ethical challenges still require solutions. Professional training, correct network referrals, and attention to confidentiality issues must be reinforced to expand treatment adherence.

Keywords:
Acquired Immunodeficiency Syndrome; HIV; Highly Active Antiretroviral Therapy; Medication Adherence


La adherencia a la terapia antirretroviral (TARV) es fundamental para controlar la infección por VIH, evitando complicaciones clínicas y el desarrollo de cepas de VIH resistentes. Varios municipios brasileños están comprometidos con la meta 90-90-90, que estima el diagnóstico del 90% de los casos de VIH/SIDA, que el 90% de estos reciban tratamiento y, de estos, el 90% logran llegar a la supresión viral. Sin embargo, solo hay tres estudios brasileños que evalúan la adherencia al TARV con base en datos secundarios sobre la dispensación. Este estudio tuvo por objetivo estimar la prevalencia de adherencia al tratamiento en la ciudad de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil y su asociación con aspectos demográficos, uso de la salud y características clínicas. Se realizó un estudio transversal con los datos secundarios de la historia clínica electrónica y los datos nacionales del Sistema de Control Logístico de Medicamentos (SICLOM) y Sistema de Control de Pruebas de Laboratorio (SISCEL) de las personas que viven con VIH/SIDA en ese municipio en el período de abril de 2020 a marzo de 2021. La prevalencia de adherencia al TARV fue casi del 85%. Las personas de raza blanca, del sexo masculino, que recibían seguimiento en la atención primaria o en la atención secundaria tuvieron mayor adherencia al tratamiento. La edad y el número de consultas se asociaron directamente con la adherencia al TARV. El proceso de descentralización de la atención a los usuarios que viven con VIH/SIDA y sida es la forma de brindar una atención más integral, pero aún se deben enfrentar desafíos técnicos y éticos. Es necesario mejorar la calificación profesional, la correcta derivación con articulación en red y tener cuidado al secreto y la confidencialidad para que se intensifique aún más la adherencia al tratamiento.

Palabras-clave:
Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida; VIH; Terapia Antirretroviral Altamente Activa; Cumplimiento de la Medicación


Introdução

A adesão à terapia antirretroviral (TARV) para o tratamento da infecção pelo HIV assume papel essencial do ponto de vista da efetividade do tratamento. A ingestão de medicamentos deve ser superior a 95% das doses de antirretrovirais para que haja uma supressão viral sustentada 11. Paterson DL, Swindells S, Mohr J, Brester M, Vergis EN, Squier C, et al. Adherence to protease inhibitor therapy and outcomes in patients with HIV infection. Ann Intern Med 2000; 133:21-30.. O comportamento de baixa adesão relaciona-se diretamente com a falência terapêutica, podendo induzir o desenvolvimento e a transmissão de cepas de HIV resistentes a medicamentos, prejudicando o controle da doença. Nesse contexto, a necessidade de utilizar outros esquemas terapêuticos mais complexos e com maior potencial de efeitos adversos pode comprometer ainda mais a adesão 22. World Health Organization. How AIDS changed everything - MDG6: 15 years, 15 lessons of hope from the AIDS response. https://www.unaids.org/en/resources/documents/2015/MDG6_15years-15lessonsfromtheAIDSresponse (acessado em 26/Ago/2022).
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Os avanços tecnológicos para fármacos antirretrovirais de maior facilidade posológica, maior potência e com menores efeitos adversos, sua dispensação gratuita no Brasil e o estabelecimento de uma linha de cuidado integral desses usuários resultaram na diminuição de internações por doenças oportunistas e na consequente queda da mortalidade 33. Lacerda JS, Paulo RG, Aoyama EA, Rodrigues GMM. Evolução medicamentosa do HIV no Brasil desde o Azt até o coquetel disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde. Revista Brasileira Interdisciplinar de Saúde 2019; 1:83-91.. A percepção da infecção pelo HIV como condição crônica e o consequente aumento de pessoas vivendo com a aids implicou a reorganização do modelo de atenção à saúde, anteriormente centralizado nos serviços de atenção especializada (SAE), para um modelo orientado pela atenção básica. Esse modelo prevê o matriciamento entre os diferentes níveis de atenção, que se responsabilizam por diferentes pontos da linha de cuidado, considerando as necessidades individuais, complexidade das ações e necessidade de intervenções, seja do ponto de vista clínico ou de suporte a situações biopsicossociais encontradas 33. Lacerda JS, Paulo RG, Aoyama EA, Rodrigues GMM. Evolução medicamentosa do HIV no Brasil desde o Azt até o coquetel disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde. Revista Brasileira Interdisciplinar de Saúde 2019; 1:83-91.,44. Camargo LA, Capitão CG, Filipe EMV. Saúde mental, suporte familiar e adesão ao tratamento: associações no contexto HIV/Aids. Psico-USF 2014; 19:221-32..

Estima-se que cerca de 840 mil pessoas estejam contaminadas pelo HIV no Brasil. Uma série histórica nacional apontou que, entre 2009 a 2015, o número de pessoas em tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) passou de 231 mil para 455 mil, um aumento de 97% 55. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia pós-exposição (PEP) de risco à infecção pelo HIV, IST e hepatites virais. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/protocolo_clinico_diretrizes_terapeuticas_profilaxia_exposicao_hiv_ist_hepatites_virais.pdf (acessado em 26/Ago/2023).
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. Apesar de significativos, tais dados refletem uma epidemia diferente da atual, porque as políticas de acesso ao diagnóstico, bem como a cobertura, eram diferentes e os tratamentos tinham mais efeitos colaterais.

Em 2021, a taxa de detecção nacional foi de 14,1 casos por 100 mil habitantes, observando-se uma queda em comparação com 2012 (20,2%) 66. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. HIV/AIDS 2021. Boletim Epidemiológico 2021; número especial.. O Brasil assinou em 2013 o compromisso de atingir, até 2020, a meta 90-90-90. Essa meta tríplice para o controle do HIV foi proposta pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) e prevê que: (1) 90% de todas as pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA) sejam diagnosticadas, reiterando o esforço para a ampliação do acesso ao diagnóstico do HIV; (2) 90% dos HIV+ diagnosticados estejam em tratamento antirretroviral, estimulando a ampliação do acesso à TARV; e (3) 90% dos usuários tratados estejam com carga viral indetectável, um dos indicadores de boa adesão ao tratamento 77. Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS. 90-90-90: uma meta ambiciosa de tratamento para contribuir para o fim da epidemia de AIDS. https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/90-90-90_en_0.pdf (acessado em 26/Ago/2023).
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Existem poucos estudos brasileiros sobre prevalência e fatores associados à adesão à TARV, além disso, a forma de avaliar a adesão ao tratamento varia, limitando a comparabilidade dos achados. Um estudo multicêntrico com representatividade nacional mostrou que, a partir da avaliação de sete estados brasileiros, 75% das PVHA relataram ter tomado pelo menos 95% das doses da TARV, dados similares aos obtidos em países desenvolvidos à mesma época 88. Nemes MIB, Carvalho HB, Souza MFM. Antiretroviral therapy adherence in Brazil. AIDS 2004; 18 Suppl 3:S15-20.. Diversos estudos têm apontado fatores associados à melhoria da adesão medicamentosa. Idade e escolaridade apresentam associação direta com a adesão à TARV, enquanto ter uma crença religiosa, ser usuário de drogas ilícitas, ter dificuldade de acesso aos serviços de saúde, frágil vínculo com a equipe de saúde e percepção de um distrato por parte do profissional ou discriminação física e verbal estão negativamente associados à adesão ao tratamento 99. Maisels L, Steinberg J, Tobias C. An investigation of why eligible patients do not receive HAART. AIDS Patient Care STDS 2001; 15:185-91.,1010. Santos EI, Silva AL, Santana PPC, Teixeira PA. Evidências científicas brasileiras sobre adesão à terapia antirretroviral por pessoas que vivem com HIV/AIDS. Rev Gest Saúde (Brasília) 2016; 7:454-70.,1111. MacCarthy S, Hoffmann M, Nunn A, Silva LAV, Dourado I. Barriers to HIV testing, linkage to care, and treatment adherence: a cross-sectional study from a large urban center of Brazil. Rev Panam Salud Pública 2016; 40:418-26.,1212. Kelly JA, Kalichman SC. Behavioral research in HIV/AIDS primary and secondary prevention: recent advances and future directions. J Consult Clin Psychol 2002; 70:626-39..

Em 2017, o coeficiente de mortalidade por aids do Município de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil foi quase o dobro do da população brasileira, porém, houve uma maior redução em relação a 2007 (33,8%) em comparação com os coeficientes nacionais (6,7%) 1313. Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis. A luta contra a aids em Florianópolis. Boletim Epidemiológico 2018. http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/17_12_2018_14.52.36.3b05e22d7f0787735040095c2682dffa.pdf (acessado em 26/Ago/2022).
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. Nesse contexto, o município lançou a campanha Pare o HIV Floripa 2020, com o estabelecimento de ações intersetoriais em saúde para o enfrentamento da epidemia de HIV 1313. Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis. A luta contra a aids em Florianópolis. Boletim Epidemiológico 2018. http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/17_12_2018_14.52.36.3b05e22d7f0787735040095c2682dffa.pdf (acessado em 26/Ago/2022).
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. Em 2020, Florianópolis apresentou uma taxa de detecção de 34,2 casos por 100 mil habitantes, sendo a quarta capital em diagnósticos, 50% maior que a taxa estadual (19,7) e duas vezes mais que a taxa nacional (14,1) 66. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. HIV/AIDS 2021. Boletim Epidemiológico 2021; número especial.. Desde então nenhum estudo avaliou a adesão ao tratamento do HIV em correspondência aos componentes da meta 90-90-90 assinada pelo município. Assim, este estudo objetivou avaliar a prevalência de adesão medicamentosa à TARV das PVHA, examinando sua associação com aspectos demográficos, de utilização de serviços de saúde e das características clínicas, fornecendo subsídios para a definição de políticas públicas que promovam a adesão ao tratamento.

Metodologia

Realizou-se um estudo transversal com o uso de dados secundários de acompanhamento de saúde de PVHA no Município de Florianópolis. Os dados foram obtidos do Prontuário Eletrônico do Paciente (PEP) da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis, gerenciado pela empresa CELK Saúde, e dos relatórios gerenciais que unificam dados do Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (SICLOM), que concentra os dados das dispensações de TARV, e do Sistema de Controle de Exames Laboratoriais (SISCEL), que concentra as informações sobre carga viral e contagem de CD4, vinculados ao Ministério da Saúde. Nesses sistemas federais, a extração de dados se dá por meio de ferramentas de busca de relatórios gerenciais fornecidas aos municípios, em que dados anuais sobre a dispensação de medicamentos e controle laboratorial do HIV podem ser obtidos pela aplicação de filtros de busca personalizados.

A amostra selecionada foi de PVHA acompanhadas pelo serviço público de saúde, em Florianópolis, de abril de 2020 a março de 2021. O período de estudo foi selecionado em razão da adoção de um novo prontuário eletrônico no município a partir de março de 2019, sem interoperabilidade semântica completa com o sistema de informação anterior e pelo fato de os demais sistemas do Ministério da Saúde fornecerem relatórios com período máximo de um ano.

A amostra incluiu usuários registrados no PEP com grupos da Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão (CID-10), relacionados ao HIV/aids e que puderam ser correlacionados a usuários com HIV/aids cadastrados no SICOLM/SISCEL. Consideraram-se como relacionados ao HIV/aids os seguintes grupos do CID-10: Z21 (estado assintomático de infecção por HIV), B20 (doença pelo vírus HIV, resultando em doenças infecciosas e parasitárias), B21 (doença pelo vírus HIV, resultando em neoplasias malignas), B22 (doença pelo vírus HIV, resultando em encefalopatia), B23 (doença pelo vírus HIV, resultando em outras doenças) e B24 (doença pelo vírus HIV não especificada) 1414. Wells RHC, Bay-Nielsen H, Braun R, Israel RA, Laurenti R, Maguin P, et al. CID-10: classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde. São Paulo: Edusp; 2011.. Foram excluídos usuários que se consultavam no setor privado ou em outro município.

A unificação do banco de dados foi realizada no aplicativo Microsoft Access (https://products.office.com/). Foram obtidos e unificados pelo Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) os seguintes relatórios dos sistemas SICLOM e SISCEL: usuários, do Município de Florianópolis, com HIV/aids, cadastrados no sistema (7.306 registros); resultados de carga viral (7.136 registros); lista de usuários com atraso na dispensação (975 registros); e lista de usuários com CD4 < 350 células/mm3 (430 registros). Nesse processo, constatou-se que um usuário na listagem de carga viral e três na listagem de CD4 não tinham CPF e não puderam ser relacionados ao cadastro. Na Figura 1, os dados do SICLOM/SISCEL foram unificados com os dados do PEP, que contava com 5.398 usuários com códigos de doença relacionados ao HIV/aids. Para correlacionar os dados, utilizaram-se o nome completo e a data de nascimento, como chave primária, e CPF de usuários, como chave secundária, obtendo sucesso em 4.452 registros. A escolha do nome completo e data de nascimento como chave primária ocorreu porque o CPF e o Cartão Nacional de Saúde (CNS) estavam mais incompletos ou com valores nulos em relação ao cadastro do SICLOM/SISCEL (Figura 1).

Figura 1
Construção do banco de dados final para análise. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2021.

Foram excluídos do estudo os 946 usuários que não tinham registro no cadastro do SICLOM/SISCEL e constavam no PEP, pois havia indicação de provável mudança de município, uma vez que, ao buscar a dispensação em outro município, o usuário era excluído do cadastro do SICLOM/SISCEL de Florianópolis. Foram excluídos também os 2.854 usuários que tinham cadastro no SICLOM/SISCEL de Florianópolis, mas não tinham registro no PEP, porque esses usuários, em geral, consultavam-se no setor privado ou em outros municípios. No banco de dados do PEP, foram obtidas as variáveis demográficas (sexo, idade e cor/raça) e de utilização de serviços de saúde (acompanhamento por nível de atenção, número de consultas e distribuição geográfica por Distrito Sanitário). Nos relatórios gerenciais do SICLOM/SISCEL, foram obtidas as cargas virais, a situação da dispensação da terapia antirretroviral (em atraso maior do que 30 dias/em dia, conforme filtro na ferramenta de busca do relatório gerencial) e o grau de imunossupressão (CD4 < 350 células/mm3).

A partir das variáveis de carga viral e situação da dispensação, operacionalizou-se o desfecho de adesão medicamentosa. Foram considerados aderentes ao tratamento os usuários com HIV/aids que apresentaram carga viral menor que 50 cópias/mL e que estavam com dispensação da medicação em dia 1515. Gomes RRFM, Machado CJ, Acurcio FA, Guimarães MDC. Utilização dos registros de dispensação da farmácia como indicador da não-adesão à terapia anti-retroviral em indivíduos infectados pelo HIV. Cad Saúde Pública 2009; 25:495-506..

As análises de dados foram realizadas no programa Stata SE 12.0 (https://www.stata.com). Realizou-se a descrição da população estudada em relação aos aspectos demográficos, de utilização de serviços e clínicos com apresentação das frequências absolutas e relativas. Avaliou-se também a relação das características clínicas (grau de imunossupressão e dispensação da TARV com a carga viral). A análise multivariada para examinar a associação entre as variáveis independentes e a adesão medicamentosa seguiu um modelo hierarquizado, tendo no primeiro nível as variáveis demográficas e no segundo nível as variáveis relacionadas à utilização de serviços de saúde. Foi realizada por regressão de Poisson, com ajuste para variância robusta com seleção para trás. Utilizou-se o teste de Wald de heterogeneidade para variáveis categóricas e de tendência linear para variáveis contínuas. Foram mantidas no modelo final as variáveis que apresentaram valor de p < 0,20, e foram consideradas significativas as associações com valor de p < 0,05.

Por se tratar de uma pesquisa envolvendo dados de seres humanos, o projeto foi inicialmente submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel; parecer nº 4.370.829). Em seguida, a partir da aprovação no CEP, o projeto foi submetido à Comissão de Acompanhamento de Projetos de Pesquisa em Saúde (Capps), vinculado à Escola de Saúde Pública da Prefeitura Municipal de Florianópolis, obtendo autorização para acesso aos bancos de dados e realização do projeto pelo OF/070/SMS/GAB/ESP/2020. As identidades dos usuários e o sigilo dos dados individuais obtidos foram preservados.

Resultados

A população estudada foi composta por 4.452 PVHA em acompanhamento no serviço público de saúde do Município de Florianópolis. Da população avaliada, metade dos usuários tinha até 39 anos, 67,3% eram do sexo masculino e 79,6% eram brancos (Tabela 1).

Tabela 1
Descrição das pessoas vivendo com HIV/aids que fazem acompanhamento pelo Sistema Único de Saúde. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2021 (n = 4.452).

Do ponto de vista da utilização dos serviços de saúde, 50,5% faziam acompanhamento de sua condição nos níveis primário e secundário e 62,9% dos usuários tiveram mais de 11 consultas com diferentes profissionais de saúde no ano. O Distrito Sanitário Centro teve o maior número de usuários em acompanhamento, seguido dos distritos Norte, Continente e, por fim, Sul (Tabela 1). Porém, essa distribuição é afetada pelo tamanho da população dos distritos. A prevalência de usuários em acompanhamento pelo HIV em relação à população cadastrada em cada Distrito Sanitário foi de 0,9% no Centro, 0,8% no Continente, 0,6% nos distritos Norte e Sul. O Município de Florianópolis conta com a totalidade da sua população cadastrada.

Quanto às características clínicas do acompanhamento, 84,8% da população apresentaram carga viral indetectável, 92,7% tinham níveis de imunocompetência (CD4 acima de 350 células/mm3) e 86,7% estavam em dia em relação à retirada de terapia antirretroviral nas Unidades Dispensadoras de Medicamentos (Tabela 1).

Ao examinar a carga viral em relação às diferentes características clínicas, observou-se que, entre usuários imunocompetentes, 83,8% apresentavam valores laboratoriais indetectáveis (< 50 cópias/mL), enquanto em usuários com imunossupressão grave (CD4 < 200 células/mm3) o controle laboratorial foi evidenciado em 47,4%. A prevalência de adesão ao tratamento, considerando usuários que estavam retirando as terapias antirretrovirais em dia e tinham carga viral indetectável, foi de 86,4% (Tabela 2). Quanto aos aspectos demográficos, a idade apresentou associação direta com adesão ao tratamento para HIV/aids. Usuários com 60 anos ou mais foram 16% mais aderentes ao tratamento (intervalo de 95% de confiança - IC95%: 1,08-1,24) do que aqueles com até 29 anos de idade. As mulheres eram 5% menos aderentes do que os homens (IC95%: 0,91-0,99), e pretos e pardos eram cerca de 13% menos aderentes do que os brancos (Tabela 3).

Tabela 2
Avaliação das características clínicas de acordo com o nível de carga viral das pessoas vivendo com HIV/aids que fazem acompanhamento pelo Sistema Único de Saúde. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2021 (n = 4.452).
Tabela 3
Adesão ao tratamento do HIV, prevalência de aderentes e fatores associados. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2021 (n = 4.452).

Quanto à utilização de serviços de saúde, o acompanhamento em ambos os níveis, primário e secundário de atenção, esteve associado com um aumento de 8% na adesão ao tratamento (IC95%: 1,04-1,08), em comparação com aqueles que realizavam acompanhamento somente na atenção primária à saúde (APS). No mesmo parâmetro, aqueles que realizavam acompanhamento apenas na atenção secundária eram 14% menos aderentes (IC95%: 0,74-1,00). O número de consultas teve associação direta com a adesão ao tratamento, sendo 12% maior nos que realizaram mais de seis consultas por ano do que entre usuários que realizaram seis consultas ou menos. O Distrito Sanitário a que o usuário é adscrito não esteve associado à adesão ao tratamento (Tabela 3).

Discussão

O estudo indica que o município ainda não atingiu a meta de 90% dos usuários com parâmetros de supressão viral (carga viral abaixo de 50 cópias/mL) e com dispensação da medicação em dia, entretanto, está próximo da meta. A frequência de supressão viral, de cerca de 85%, foi similar à encontrada tanto para o nível nacional quanto para a Região Sul em estudo de coorte conduzido em 2014-2015 com dados do SICLOM/SISCEL 1616. Meireles MV, Pascom ARP, Duarte EC. Factors associated with early virological response in HIV-infected individuals starting antiretroviral therapy in Brazil (2014-2015): results from a large HIV surveillance cohort. J Acquir Immune Defic Syndr 2018; 78:e19-27.. Pessoas do sexo masculino, de cor/raça branca e que tinham acompanhamento em ambos os níveis de atenção apresentaram maior adesão ao tratamento medicamentoso. As variáveis idade e número de consultas estiveram diretamente associadas com a adesão.

A associação positiva entre idade e adesão medicamentosa à TARV é consistente com a literatura 66. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. HIV/AIDS 2021. Boletim Epidemiológico 2021; número especial.,1717. Azmach NN, Hamza TA, Husen AA. Socioeconomic and demographic statuses as determinants of adherence to antiretroviral treatment in HIV infected patients: a systematic review of the literature. Curr HIV Res 2019; 17:161-72.. As percepções de maior fragilidade da saúde para o desenvolvimento de imunossupressão e o tratamento concomitante de outras doenças crônicas aumentam a utilização de serviços de saúde, que é um dos principais fatores relacionados à melhor adesão 1818. Mann SC, Castillo-Mancilla JR. HIV, aging, and adherence. Curr Opin HIV AIDS 2020; 15:134-41..

A menor adesão das mulheres ao tratamento está de acordo com outros estudos e pode estar relacionada à maior estigmatização, falta de suporte no relacionamento interpessoal, maior necessidade e preocupação associada à aprovação no relacionamento marital, além de maior prevalência de depressão 1919. Puskas CM, Forrest JI, Parashar S, Salters KA, Cescon AM, Kaida A, et al. Women and vulnerability to HAART non-adherence: a literature review of treatment adherence by gender from 2000 to 2011. Curr HIV/AIDS Rep 2011; 8:277-87.. Este estudo não avaliou a adesão ao tratamento de acordo com a orientação sexual e identidade de gênero. Entretanto, a literatura aponta que homossexuais do sexo masculino têm mais suporte social de seus grupos e organizações não governamentais, além de menos medo de compartilhar o diagnóstico com parceiros e amigos, fatores que influenciam positivamente a adesão 2020. Stirratt MJ, Remien RH, Smith A, Copeland OQ, Dolezal C, Krieger D. The role of HIV serostatus disclosure in antiretroviral medication adherence. AIDS Behav 2006; 10:483-93.,2121. Langebeek N, Gisolf EH, Reiss P, Vervoort SC, Hafsteinsdóttir TB, Richter C, et al. Predictors and correlates of adherence to combination antiretroviral therapy (ART) for chronic HIV infection: a meta-analysis. BMC Med 2014; 12:142..

Em acordo com o resultado deste estudo, no cenário nacional, a cor/raça preta/parda esteve associada a menores níveis de adesão à TARV e continuidade do cuidado 1717. Azmach NN, Hamza TA, Husen AA. Socioeconomic and demographic statuses as determinants of adherence to antiretroviral treatment in HIV infected patients: a systematic review of the literature. Curr HIV Res 2019; 17:161-72.,2222. Ahnquist J, Wamala SP, Lindstrom M. Social determinants of health - a question of social or economic capital? Interaction effects of socioeconomic factors on health outcomes. Soc Sci Med 2012; 74:930-9.. Essa variável é marcador de menor nível econômico e escolaridade, maior vulnerabilidade social e maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde, resultando em iniquidade na adesão ao tratamento do HIV 2323. Pascom ARP, Meireles MV, Benzaken AS. Sociodemographic determinants of attrition in the HIV continuum of care in Brazil, in 2016. Medicine (Baltimore) 2018; 97(1 Suppl):S69-74..

A maior adesão medicamentosa em PVHA que se consultaram exclusivamente na APS, quando comparada à atenção secundária, indica que a política de descentralização da atenção à saúde desse grupo de usuários é adequada 44. Camargo LA, Capitão CG, Filipe EMV. Saúde mental, suporte familiar e adesão ao tratamento: associações no contexto HIV/Aids. Psico-USF 2014; 19:221-32.. Porém, o número de PVHA que fazem acompanhamento tanto na atenção primária quanto na atenção secundária sugere que, mesmo em um cenário de oferta restrita de serviço de infectologia, pessoas de baixo risco estão acessando a atenção secundária. Embora a consulta em ambos os níveis de atenção esteja associada à maior adesão ao tratamento, ela pode indicar iniquidade no acesso, requerendo revisão da política municipal para um cuidado descentralizado e integral de qualidade, de forma a aperfeiçoar a oferta de serviços na rede de atenção à saúde.

A organização da atenção à saúde orientada pelo cuidado inicial realizado pela atenção primária, com maior proximidade entre o serviço de saúde e o domicílio, oferece melhoria no acesso e amplia a satisfação do usuário com o cuidado 2424. Leon C, Koosed T, Philibert B, Raposo C, Benzaken AS. HIV/AIDS health services in Manaus, Brazil: patient perception of quality and its influence on adherence to antiretroviral treatment. BMC Health Serv Res 2019; 19:344.. Entretanto, essa descentralização ainda enfrenta desafios técnicos e éticos. Vários profissionais da APS não se sentem preparados para realizar o acompanhamento das PVHA; existem problemas de referência e contrarreferência, em que usuários encaminhados não são orientados ou são orientados, mas não retornam ao serviço de APS. Além disso, considerando a centralidade do médico no acompanhamento das PVHA, aqueles que já tinham vínculo com a atenção secundária relutam em migrar seu acompanhamento para a APS, e usuários têm receio de que o sigilo e a confidencialidade sejam prejudicados ao consultarem-se próximo de seus domicílios 2525. Melo EA, Maksud I, Agostini R. Cuidado, HIV/Aids e atenção primária no Brasil: desafio para a atenção no Sistema Único de Saúde? Rev Panam Salud Pública 2018; 42:e151..

Os protocolos municipais preveem a regularidade semestral de consultas 2626. PACK Global Adulto. PACK Brasil adulto: practical approach to care Kit. Kit de cuidados em atenção primária. https://knowledgetranslation.co.za/wp-content/uploads/2020/04/PACK-Brazil-National-2020-print-COVID-19-SAMPLE.pdf (acessado em 26/Ago/2022).
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. O estudo mostrou que pessoas que consultaram mais de seis vezes em um ano têm maior adesão ao tratamento, entretanto, a interpretação desse resultado deve ser feita com cautela, porque não houve distinção entre as consultas para o cuidado do HIV/aids e outras consultas clínicas ou procedimentos que exigem recorrência, como curativos. O maior número de consultas pode indicar o componente atitudinal do usuário de busca por saúde, mas também pode refletir um bom vínculo com o profissional de saúde. Um estudo apontou que as PVHA que apresentam frequentação aos serviços abaixo do ideal (ao menos duas consultas no ano com intervalo mínimo de três meses entre elas) levam o dobro do tempo para atingir supressão viral. A retenção ao tratamento tem papel central na supressão viral sustentada, porém, a adesão medicamentosa varia ao longo do tempo 2727. Crawford TN, Thornton A. Retention in continuous care and sustained viral suppression. J Int Assoc Provid AIDS Care 2017; 16:42-7..

Não há consenso na literatura em relação a um padrão ouro para a avaliação da adesão à TARV 2828. Chesney MA. The elusive gold standard. Future perspectives for HIV adherence assessment and intervention. J Acquir Immune Defic Syndr 2006; 43 Suppl 1:S149-55.. A contagem de comprimidos, o registro de dispensação, o autorrelato e o monitoramento eletrônico e laboratorial são os métodos de aferição da adesão mais comumente encontrados 2929. Mûnene E, Ekman B. Does duration on antiretroviral therapy determine health-related quality of life in people living with HIV? A cross-sectional study in a regional referral hospital in Kenya. Glob Health Action 2014; 7:23554., mas os pontos de corte para a caracterização da adesão por meio da dispensação também variam. A avaliação da adesão pelo registro de dispensação é considerada prática em função de seu baixo custo, da eliminação do viés de memória por parte do usuário e da facilidade na avaliação de amostras maiores, em comparação com as medidas de autorrelato 3030. Bangsberg David R. Preventing HIV antiretroviral resistance through better monitoring of treatment adherence. J Infect Dis 2008; 197 Suppl 3:S272-8..

As diferentes formas de aferição da adesão à TARV dificultam a análise de consistência dos achados. Um estudo mostrou que 41% dos usuários considerados aderentes por medida de autorrelato eram classificados como não aderentes pela dispensação documentada. Outros, que compararam as duas medidas com a efetividade do tratamento, chegaram à conclusão que a medida de autorrelato superestima em até duas vezes a adesão medicamentosa 3131. Grossberg R, Zhang Y, Gross R. A time-to-prescription-refill measure of antiretroviral adherence predicted changes in viral load in HIV. J Clin Epidemiol 2004; 57:1107-10.,3232. Fairley C, Permana A, Read T. Long-term utility of measuring adherence by self-report compared with pharmacy record in a routine clinic setting. HIV Med 2005; 6:366-9..

A utilização de dados secundários implicou algumas limitações. O atual prontuário eletrônico começou a ser utilizado em março de 2018 e a migração do sistema anterior não foi completa, assim, o histórico dos usuários foi referente ao período de utilização do sistema novo. A avaliação foi restrita a usuários do sistema público, porque, embora os dados de dispensação disponíveis incluíssem tanto usuários do sistema público quanto do privado, os dados de laboratório eram relativos apenas a usuários do sistema público. Além disso, os relatórios fornecidos não dispunham de dados sociodemográficos, como identidade de gênero, orientação sexual, uso de drogas, escolaridade e ocupação, que a literatura aponta como importantes na avaliação da adesão medicamentosa. Por fim, os relatórios gerenciais não dispõem de informações sobre o tempo de tratamento do usuário ou sobre o momento da realização dos exames laboratoriais, limitando a avaliação mais detalhada do cuidado.

Nos parâmetros laboratoriais, embora usuários que apresentavam carga viral de 50-1.000 cópias ou acima de 1.000 cópias tenham sido considerados não aderentes, parte deles poderia ser aderente, mas iniciante no tratamento, ainda sem tempo hábil para atingir a supressão viral. Esse erro de classificação subestima a prevalência de adesão ao tratamento. Apesar das limitações, o estudo utiliza a mesma estratégia de outras pesquisas na mensuração do desfecho, permitindo a comparabilidade dos achados. Para aprofundar a compreensão dos fatores que determinam a adesão ao tratamento, futuros estudos com dados secundários mais completos ou dados primários devem incluir um maior detalhamento dos aspectos sociodemográficos e avaliar a qualidade e a integralidade da atenção às PVHA, incluindo estudos longitudinais que avaliem a retenção ao tratamento.

Um estudo nacional aponta que, assim como Florianópolis, outras regiões do país apresentam uma adesão à TARV de cerca de 80% 2323. Pascom ARP, Meireles MV, Benzaken AS. Sociodemographic determinants of attrition in the HIV continuum of care in Brazil, in 2016. Medicine (Baltimore) 2018; 97(1 Suppl):S69-74., indicando que ainda são necessários esforços para alcançar a meta 90-90-90. Porém, em novembro de 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) atualizou as metas para o ano de 2025, estabelecendo o alcance de 95% para os três critérios já existentes. O conceito de cuidado no controle do HIV foi ampliado, adicionando duas novas metas: 95% de mulheres acessando tratamento e serviço de saúde sexual e reprodutiva e 95% de cobertura de serviços para acompanhamento e eliminação de transmissão vertical. Além disso, passou-se a requerer que 90% das PVHA, ou que sejam consideradas populações de risco, tenham acompanhamentos de serviços de saúde que considerem o contexto e que tenham abordagens centradas no paciente 3333. Heath K, Levi J, Hill A. The Joint United Nations Programme on HIV/AIDS 95-95-95 targets: worldwide clinical and cost benefits of generic manufacture. AIDS 2021; 35 Suppl 2:S197-203..

Considerando que o município ainda não tinha alcançado as metas anteriores, as novas metas implicarão desafios adicionais, requerendo políticas públicas mais amplas e efetivas para diagnóstico, tratamento e adesão ao cuidado, especialmente levando em conta a sobrecarga dos serviços de saúde no contexto pandêmico. Ao incluir metas específicas para populações de risco, população vulnerável, mulheres e crianças recém-nascidas para a realização de atenção integral, com abordagens centradas no paciente, a OMS reforça o protagonismo da APS na coordenação desse cuidado 3434. De Lay PR, Benzaken A, Karim QA, Aliyu S, Amole C, Ayala G, et al. Ending AIDS as a public health threat by 2030: time to reset targets for 2025. PLoS Med 2021; 18:e1003649.. A alta prevalência de PVHA em Florianópolis que consultam na APS de forma exclusiva ou combinada com a Atenção Secundária pode ser um facilitador para o alcance das novas metas.

Este estudo sugere que a descentralização da atenção às PVHA é uma estratégia útil na ampliação da adesão, entretanto, ainda precisa ser completada. Para isso, é fundamental a formação dos profissionais da APS, para que se sintam preparados para a oferta desse serviço. É necessário que a equipe de saúde tenha formação para o acolhimento desses usuários que apresentam situação de saúde particularmente sensível à confidencialidade. É preciso que os profissionais dos diferentes níveis de atenção utilizem os protocolos e trabalhem articuladamente, construindo uma relação de confiança, de forma que o usuário transite de forma otimizada na referência e contrarreferência, pautado pelas mesmas indicações.

À luz dos princípios do SUS de universalidade do acesso, equidade e atenção integral, a APS deve identificar populações vulneráveis e que contam com baixo apoio social, realizando busca ativa para realização de diagnóstico, tratamento e monitoramento da adesão. Isso pode ser feito por meio de articulações intersetoriais com Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), policlínicas, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros dispositivos oficiais da rede de saúde municipal, bem como outros equipamentos sociais do território que possam auxiliar no cuidado dessas populações.

A OMS incorpora o conceito de autonomia à adesão medicamentosa, exigindo o entendimento e a concordância do usuário nas recomendações pactuadas, o que estimula uma postura proativa no seu próprio cuidado 3535. World Health Organization. Adherence to long-term therapies: evidence for action. Genebra: World Health Organization; 2003.. É importante a educação em saúde dos usuários tanto para o autocuidado como para que saibam o nível de atenção adequado a eventuais necessidades em saúde. Essas recomendações são úteis para todos os municípios brasileiros que estão buscando as metas propostas pela OMS, em processo de descentralização da atenção às PVHA.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2022
  • Revisado
    08 Dez 2022
  • Aceito
    28 Dez 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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