Saúde é democracia: diversidade, equidade e justiça social

Rosana Teresa Onocko-Campos Isabela Cardoso de Matos Pinto Maurício Lima Barreto Sobre os autores

Para gerar uma confiança ativa, o conhecimento perito precisa ser validado democraticamente. Na verdade, as declarações científicas são tratadas pela opinião pública como verdades proposicionais contestáveis, e é por esse motivo que os sistemas peritos precisam se tornar dialógicos (...). O que está em jogo é a criação de uma confiança ativa que gere solidariedade social entre indivíduos e grupos” (Chantal Mouffe 11. Mouffe C. Sobre o político. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2015., p. 43).

Entre os dias 21 e 24 de novembro de 2022 aconteceu em Salvador, Bahia, o 13º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, o nosso “Abrascão”. O tema do Congresso foi Saúde É Democracia: Diversidade, Equidade e Justiça Social. Nossa escolha da frase Saúde É Democracia foi uma proposital referência ao discurso do professor Sergio Arouca na abertura da 8ª Conferência Nacional de Saúde e ao movimento da Reforma Sanitária 22. Portal Fiocruz. Democracia é saúde. VideoSaúde 2020; 20 abr. https://portal.fiocruz.br/video/democracia-e-saude (acessado em Jan/2023).
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. Há momentos na história de um povo em que o recurso ao passado se torna fundamental para iluminar o futuro. Tema caro para a sociedade brasileira e bastante atual, em um período em que as forças democráticas do país se unificaram e elegeram um novo governo que, certamente, retomará o processo democrático rompido desde o golpe de 2016. Ao retrocesso democrático, acoplou-se a pandemia da COVID-19, que afligiu duramente a sociedade brasileira, em grande parte em decorrência do mais absoluto descaso do Poder Executivo federal. Neste contexto dramático, sentiu-se a necessidade de que reflexões e debates iniciados na 8ª Conferência fossem reatualizadas no último Abrascão.

A inspiração buscada naquele momento marcante da história da saúde no nosso país nos serviu para relembrar questões relevantes e caras para a Saúde Coletiva, entre as quais destaca-se: a determinação social do processo de saúde e doença; a necessidade de criação e consolidação de um sistema de saúde que permita tornar realidade a ideia de que esta é um direito de todos os cidadãos e cidadãs a ser garantido pelo Estado; e a advertência de que entre as principais mazelas a serem enfrentadas estão as desigualdades e as iniquidades na exposição aos riscos de doença e ao acesso aos serviços de saúde. Tudo isso enfatiza a premência de garantir respeito à diversidade e destaca a luta permanente pela justiça social e pela equidade.

Estarrecidos - e um pouco perplexos -, podemos constatar a gritante atualidade dessas questões que nos foram postas pela histórica conferência. Para agravá-las, vivenciamos desde 2018 um governo de extrema-direita que, propositalmente, atentou contra a democracia, promoveu o caos, sucateou recursos, negou e distorceu a ciência e perseguiu seus agentes de variadas formas. O grau de ataque aos direitos, à ciência e à própria vida levou diferentes autores a denominar as ações desse governo como necropolítica, em razão de seu caráter ultraneoliberal, antifeminista, racista e genocida 33. Brum E. “Há indícios significativos para que autoridades brasileiras, entre elas o presidente, sejam investigadas por genocídio”. El País 2020; 22 jul. https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-22/ha-indicios-significativos-para-que-autoridades-brasileiras-entre-elas-o-presidente-sejam-investigadas-por-genocidio.html.
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. Por estas razões, resolveu-se acrescer ao tema as palavras “diversidade”, “equidade” e “justiça social”. A Saúde Coletiva brasileira, a, mais uma vez, convocar seus membros para seu maior congresso, quis contribuir como campo científico, ético e político à formulação das soluções que o Brasil precisará para novamente se reerguer soberano e restabelecer a ordem democrática.

O ineditismo do momento nos fez também analisar a necessidade de inovação no campo da Saúde Coletiva, permitindo o destaque de novas questões emergentes e relevantes, e, ao mesmo tempo, a necessidade de reafirmar nossa identidade como campo diversificado, heterogêneo, integrado e multidisciplinar. Ser inclusivo é dispor-se ao novo, ao inusitado, à transformação. Por isso, não se buscou reproduzir na montagem do Congresso a importante e ampla especialização de nosso campo. Consideramos, na ocasião, que essa perspectiva da Saúde Coletiva já estava fartamente representada nos demais congressos das grandes áreas. Buscamos nos reinventar, nos recriar, nos multiplicar como campo fértil e gerador de novas questões e propositor de soluções e alternativas.

O enfrentamento às desigualdades sociais, à pobreza e à violação dos direitos humanos nos levou a repensar as bases das políticas públicas e seu papel na transformação desse quadro de exclusão que marginaliza milhões de pessoas. Foram pensadas políticas democráticas e inclusivas que levem em conta a diversidade e as demandas da população e que propiciem a convivência dessas multiplicidades étnicas, religiosas, de tradições, gostos e sensibilidades. Que a agenda de prioridades do novo governo democrático inclua o combate à pobreza e a todas as formas de discriminação social e política.

Partindo da ideia dos direitos sociais e da construção de valores sólidos de cidadania participativa, buscou-se produzir um grande 13º Congresso que nos permitisse maior capacidade de discernimento, de crítica e de formulação de proposições para o desenvolvimento social e humano no Brasil neste novo momento da nossa vida política e restabelecimento da democracia. Porém, buscou-se também que isso se desse a partir do entendimento de um Brasil conectado com as grandes problemáticas mundiais e com as soluções globais e regionais.

As atividades foram organizadas em 13 eixos temáticos assim arranjados:

Eixo 1: Relações saúde, ambiente e sociedade;

Eixo 2: Desafios e caminhos para (re)construção do Brasil e o papel das políticas sociais;

Eixo 3: Sistema Único de Saúde: desafios persistentes e perspectivas;

Eixo 4: Cidadania: fragilidades e potências da participação social;

Eixo 5: A pandemia de COVID-19 e seus legados;

Eixo 6: Saúde Coletiva em um mundo globalizado;

Eixo 7: Saúde Coletiva e as transformações no mundo do trabalho;

Eixo 8: Saúde Coletiva e epistemologias;

Eixo 9: Saúde Coletiva e soberania;

Eixo 10: Saúde Coletiva e a interação entre suas três subáreas;

Eixo 11: Educação e formação em Saúde Coletiva;

Eixo 12: Saúde Coletiva, informação e comunicação: diálogos sobre novos cenários e desafios;

Eixo 13: Interseccionalidades, lutas sociais e direitos humanos na Saúde Coletiva.

Essa forma de organizar, inclusive, a recepção dos trabalhos produziu inicialmente estranhamentos, dúvidas e incertezas que foram sendo galgadas passo a passo. Os grupos de trabalho de cada um desses eixos temáticos tiveram a responsabilidade da montagem das demais atividades, como rodas de conversa e mesas redondas, nas quais se buscou com afinco a representatividade em termos de etnia, raça/cor e gênero. Buscou-se também trazer às atividades centrais a necessária renovação geracional - jovens pesquisadores compuseram momentos importantes da grade de programações. Também foi um sucesso de público a série de “Cafés Intergeracionais”, no primeiro horário da manhã, em que pesquisadores sêniores conversaram informalmente sobre suas trajetórias e acerca dos desafios da área com grupos de novos pesquisadores.

Houve, ao final, a inscrição de mais de 7.000 trabalhos, o que resultou na organização pela Comissão Científica de 985 comunicações coordenadas, 4.519 comunicações assíncronas e de mais de 200 outras atividades entre mesas e debates; o trabalho metódico, dedicado e responsável da Comissão Científica foi formidável. Mais de 6.000 congressistas passaram pelo Centro de Convenções. Foi também o Abrascão com maior número de isenções, chegando quase aos mil participantes que foram beneficiados com descontos ou dispensa da taxa de inscrição.

O trabalho participativo realizado junto aos movimentos sociais desde o início de 2022 resultou no “Abrasco em Movimento”: espaço onde as mensagens, as rodas e as expressões artísticas exauriram de outra maneira as demandas dos movimentos sociais endereçadas aos sanitaristas. Refletiu-se a necessidade da proximidade entre cientistas e os movimentos sociais, mostrando-se a relevância da transversalidade de questões como gênero, raça/cor, etnicidade, entre outras destacadas. Este congresso foi um espaço plural para discussão dos problemas atuais e das prioridades para a saúde que possam ser incluídas na agenda do governo democrático e progressista, que agora se inicia.

Em suma, a 13º Abrascão atuou para celebrar a democracia e a perene luta da Saúde Coletiva por uma sociedade mais justa e permitiu formular ideias a serem apresentadas como contribuições neste novo renascer democrático, que se iniciou no primeiro de janeiro de 2023, quando foi encerrado um período perverso e anticiência, de destruição das políticas de saúde e de todas as políticas pró-equidade e de sustentabilidade ambiental.

Temos a certeza de que poderemos reverter o modelo seguido nos últimos anos, o qual, alegando um suposto crescimento econômico que de fato não aconteceu, produziu o aumento das desigualdades, a desproteção social e a degradação ambiental. Precisamos, em seu lugar, construir um modelo que busque o bem-estar da sociedade, a proteção do meio ambiente e que estimule as políticas públicas a buscarem seus fundamentos nas ciências, no conhecimento e na vontade da maioria da sociedade - fundamentos sem os quais nunca teremos uma sociedade inclusiva e saudável.

A indicação da Dra. Nisia Trindade, uma respeitada pesquisadora e gestora pública, para o Ministério da Saúde, ao lado da criação de vários ministérios (Povos Indígenas, Igualdade Racial, Mulheres) dedicados a implementar ações pró-equidade, é um grande início do governo que ora se inaugura.

Vivas à Democracia!

Vivas para as lutas pela equidade e pela justiça social, em todas as esferas da vida!

Vivas à Saúde Coletiva!

Vivas à Abrasco!

Vivas à Ciência e ao conhecimento!

Por um reluzente futuro para a saúde do povo brasileiro!

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2023
  • Aceito
    19 Jan 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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