Epidemia de HIV, tecnologias de prevenção e as novas gerações: tendências e oportunidades para a resposta à epidemia

Epidemia del VIH, tecnologías de prevención y las nuevas generaciones: tendencias y oportunidades para responder a la epidemia

Alexandre Grangeiro Dulce Ferraz Laio Magno Eliana Miura Zucchi Márcia Thereza Couto Ines Dourado Sobre os autores

Resumo:

A Organização das Nações Unidas tem destacado a possibilidade de eliminar a epidemia de HIV como um problema de saúde pública. Porém, um aumento da incidência em adolescentes e jovens tem indicado um maior distanciamento entre a resposta ao HIV e as especificidades próprias das novas gerações, que pode estender a epidemia por um longo período. Frente a isso, é discutido que a oferta de uma cesta universal de métodos preventivos, mesmo que altamente eficazes, e um conservadorismo que internalizou o estigma em políticas governamentais, inviabilizam o adequado e necessário diálogo entre as atuais políticas preventivas e as necessidades das novas gerações. Estas gerações que são marcadas por uma representação social da aids com menor gravidade; novas performances de gênero e de orientação sexual; e a busca de um maior protagonismo nas interações afetivas e sexuais, o que inclui o uso mais frequente de aplicativos de encontro de parcerias e de substâncias na cena de sexo. É apresentado como proposta de uma nova política a hierarquização da oferta de métodos preventivos, com a priorização da profilaxia pré-exposição (PrEP) e o enfrentamento dos determinantes sociais da epidemia do HIV, incluindo estratégias de redução do estigma. Reforça-se, ainda, a importância da participação de adolescentes e jovens na construção da política e a necessidade de uma resposta intersetorial.

Palavras-chave:
HIV; Políticas Públicas; Adolescentes; Sexualidade; Identidade de Gênero

Resumen:

Las Naciones Unidas señalan la posibilidad de eliminar la epidemia del VIH como un problema de salud pública. Sin embargo, un incremento de la incidencia de esta enfermedad en adolescentes y jóvenes muestra una mayor distancia entre la respuesta al VIH y las especificidades de las nuevas generaciones, lo que puede extender la epidemia durante un largo periodo. En este contexto, se discute que la oferta de una canasta universal de métodos preventivos, aunque altamente efectivos, y que un conservadurismo que interiorizó el estigma en las políticas gubernamentales hacen inviable un adecuado y necesario diálogo entre las políticas preventivas actuales y las necesidades de las nuevas generaciones. Estas generaciones están marcadas por una representación social del sida con menos gravedad, por nuevas actuaciones de género y orientación sexual y por la búsqueda de un mayor protagonismo en las interacciones afectivas y sexuales, que incluye el uso más frecuente de aplicaciones para encontrar parejas y de sustancias en la escena sexual. Se presenta como propuesta de una nueva política la priorización de la oferta de métodos preventivos, con la priorización de la profilaxis preexposición (PrEP) y la confrontación de los determinantes sociales de la epidemia del VIH, que incluyen estrategias para reducir el estigma. También refuerza la importancia de la participación de los adolescentes y jóvenes en la construcción de la política y la necesidad de una respuesta intersectorial.

Palabras-clave:
VIH; Políticas Públicas; Adolescentes; Sexualidad; Identidad de Género

A epidemia de HIV nas novas gerações

O recrudescimento da epidemia de HIV nas novas gerações 11. Szwarcwald CL, Souza Júnior PRB, Pascom ARP, Coelho RA, Ribeiro RA, Damacena GN, et al. HIV incidence estimates by sex and age group in the population aged 15 years or over, Brazil, 1986-2018. Rev Soc Bras Med Trop 2002; 55 Suppl 1:e0231. enseja uma pergunta obrigatória: as atuais políticas de prevenção são suficientes para reverter essa tendência ou será necessário construir, com a sociedade, outras bases e estratégias para o enfrentamento desse novo cenário?

Mudanças na forma como as novas gerações estabelecem seus arranjos afetivos e sexuais, junto com o surgimento de métodos preventivos mais eficazes, apontam para a necessidade de uma reformulação da política, sem que isto signifique abandonar aprendizados dos últimos 40 anos. E, talvez, essa necessidade de reformulação seja urgente, para não perder o tempo oportuno de evitar uma incidência da infecção ainda maior do que a das últimas quatro décadas.

Adolescentes e jovens têm sido particularmente atingidos pela epidemia de HIV. Tanto que o Programa Conjunto das Nações Unidas para a Aids (UNAIDS) estima que, somente em 2019, 28% das novas infecções no mundo ocorreram na faixa etária de 15 a 24 anos 22. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Young people and HIV. https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/young-people-and-hiv_en.pdf (accessed on 03/Aug/2023).
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. Um padrão que se repete no Brasil, onde 25% das infecções foram registradas em pessoas com 15 a 24 anos ao longo dos anos de 2010 33. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico HIV/Aids 2022; (número especial). https://www.gov.br/aids/pt-br/central-de-conteudo/boletins-epidemiologicos/2022/hiv-aids/boletim_hiv_aids_-2022_internet_31-01-23.pdf/view.
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Essa maior vulnerabilidade de adolescentes tem sido atribuída, desde os anos de 1980, às especificidades próprias dessa fase do ciclo de vida, marcada pelo início das relações sexuais num contexto de transição biológica, social, psicológica e estrutural, assim como à constituição de redes de parcerias sexuais que conjugam relações estáveis, casuais e intergeracionais, muitas vezes associados a um padrão mais acentuado de uso de drogas e álcool 44. Jeffries 4th WL, Greene KM, Paz-Bailey G, McCree DH, Scales L, Dunville R, et al. Determinants of HIV incidence disparities among young and older men who have sex with men in the United States. AIDS Behav 2018; 22:2199-213.,55. Lally MA, van den Berg JJ, Westfall AO, Rudy BJ, Hosek SG, Fortenberry JD, et al. HIV continuum of care for youth in the United States. J Acquir Immune Defic Syndr 2018; 77:110-7.. Aspectos que têm sido agravados por um acesso insuficiente aos serviços de saúde para uma atenção integral 66. Ayres JRCM, Carvalho YM, Nasser MA, Saltão RM, Mendes VM. Caminhos da integralidade: adolescentes e jovens na atenção primária à saúde. Interface (Botucatu) 2012; 40:67-81. e às interações entre marcadores sociais da diferença, como identidades sexuais e de gênero, classes sociais e cor de pele 77. Monteiro SS, Villela WV, Soares PS. The interaction between axes of inequality in studies on discrimination, stigma and HIV/AIDS: contributions to the recent international literature. Glob Public Health 2013; 8:519-33.,88. Jackson-Best F, Edwards N. Stigma and intersectionality: a systematic review of systematic reviews across HIV/AIDS, mental illness, and physical disability. BMC Public Health 2018; 18:919.. Esses marcadores têm sido reconhecidos como características fundamentais para a compreensão da epidemia, por determinar uma distribuição desigual do risco de infeção por HIV na população. Tanto que adolescentes e jovens mais vulneráveis socialmente, especialmente LGBTQIA+ e negros, têm sido atingidos desproporcionalmente pela epidemia de HIV, quando comparado à população geral, muito em decorrência de uma elevada carga de violência, preconceito e estigma ocorrida, com frequência, desde a infância 88. Jackson-Best F, Edwards N. Stigma and intersectionality: a systematic review of systematic reviews across HIV/AIDS, mental illness, and physical disability. BMC Public Health 2018; 18:919.. Cabe destacar uma carga de infecção por HIV ainda maior em mulheres transexuais, cujo reconhecimento tem sido dificultado por classificações errôneas, incluindo registros epidemiológicos de casos efetuados na categoria de transmissão “relações homossexuais”, junto com homens cisgêneros 99. Perez-Brumer AG, Oldenburg CE, Reisner SL, Clark JL, Parker RG. Towards 'reflexive epidemiology': conflation of cisgender male and transgender women sex workers and implications for global understandings of HIV prevalence. Glob Public Health 2016; 11:849-65..

Entretanto, o recrudescimento no padrão da incidência do HIV chama a atenção para aspectos que vão além das especificidades próprias da adolescência e juventude e a sua relação com uma atual resposta ao HIV. Notadamente uma mudança em valores e comportamentos que se estendeu a partir dos anos 2000 e marca uma nova geração em relação à sexualidade, como por exemplo, a ressignificação da identidade de gênero baseado na binaridade 1010. Facchini R, França IL, editors. Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora da Unicamp; 2020. e na adoção de novos arranjos sexuais e afetivos 1111. Phillips 2nd G, Beach LB, Turner B, Feinstein BA, Marro R, Philbin MM, et al. Sexual identity and behavior among U.S. high school students, 2005-2015. Arch Sex Behav 2019; 48:1463-79., incluindo o uso das tecnologias de informação para os encontros sexuais 1212. Anzani A, Di Sarno M, Prunas A. Using smartphone apps to find sexual partners: a review of the literature. Sexologies 2018; 27:e61-5. e o uso sexualizado de substâncias 1313. Hibbert MP, Hillis A, Brett CE, Porcellato LA, Hope VD. A narrative systematic review of sexualised drug use and sexual health outcomes among LGBT people. Int J Drug Policy 2021; 93:103187.. Compreender esses aspectos é absolutamente relevante. Eles marcam, de forma mais acentuada, uma mudança dos padrões vigentes, mediante o protagonismo das novas gerações na busca do maior reconhecimento identitário e da cidadanização LGBTQIA+, em uma época que o Brasil vivia um período de fortalecimento das políticas de participação da sociedade nas decisões de Estado e de inclusão social e redução das desigualdades.

Uma primeira evidência dessa mudança geracional é mostrada na análise da série histórica de casos de aids de três coortes de nascimento no Brasil, considerando os cinco primeiros anos de ocorrência de casos em cada uma das coortes (Figura 1). Observa-se que os números absolutos e relativos de casos nas gerações nascidas entre 1995 e 2000 - que, em princípio, iniciaram a vida sexual após a introdução dos antirretrovirais e de seus efeitos benéficos - superam os registrados em gerações anteriores, como as nascidas entre 1965 e 1970, que iniciaram as relações sexuais no período de surgimento da epidemia de HIV e foram as responsáveis pelo maior número de casos registrados no país desde o início da doença - cerca de 17% do total. Além disso, ao se comparar as gerações nascidas entre 1995 e 2000 com as gerações de 1965 e 1970 e de 1980 e 1985 (geração que iniciou suas relações sexuais no período mais agudo da epidemia, quando não havia tratamento efetivo), percebe-se que as gerações mais novas vivem uma reversão na tendência de queda no número de casos. Assim, mantida essa tendência nos próximos anos, a magnitude da epidemia tende a ser maior do que a observada nos últimos 40 anos.

Figura 1
Número * e contribuição percentual ** das gerações no total de casos de aids registrados em pessoas com ≥ 14 anos, Brasil ***.

Desinibição e novos contextos de relações afetivas e sexuais

Com muita frequência, a mudança no comportamento da epidemia em novas gerações tem sido atribuída a um efeito de desinibição sexual, devido à percepção de redução da gravidade da doença pelo uso dos antirretrovirais no tratamento da infecção por HIV. Isso teria contribuído para alterar substancialmente a representação social da doença, fazendo com que a sociedade deixasse de conviver com uma “aids mortal”, “perigosa”, altamente estigmatizante e que “crescia descontroladamente” 1414. Simões JA. Gerações, mudanças e continuidades na experiência social da homossexualidade masculina e da epidemia de HIV-Aids. Sex Salud Soc (Rio J.) 2018; (29):313-39..

As evidências dessa desinibição têm sido descritas 1515. Zimmerman RS, Kirschbaum AL. News of biomedical advances in HIV: relationship to treatment optimism and expected risk behavior in US MSM. AIDS Behav 2018; 22:367-78. e apontam para, ao menos, duas dimensões: a intenção (ou a prática) de não adotar relações sexuais protegidas; e uma menor priorização da aids nas políticas de saúde e na mobilização social.

Porém, se as evidências parecem consolidadas, a real contribuição da desinibição sexual para o recente recrudescimento da epidemia nas novas gerações ainda requer reflexão. A experiência em saúde, incluindo o HIV, tem mostrado que o medo de adoecer não é suficiente para que agrupamentos sociais adotem, por um longo período, medidas que restrinjam significativamente o cotidiano e o modo de vida. A tendência é que, com o tempo, haja um aprendizado coletivo de como conviver e lidar com as doenças e suas consequências, criando um certo equilíbrio entre as necessidades cotidianas e o risco de adoecer. Essa reaproximação com a “normalidade”, advinda de um processo de aprendizado coletivo, não implica, necessariamente, num contexto de aumento do risco de adoecimento, desde que as novas estratégias preventivas ofereçam segurança adequada.

No campo do HIV, por exemplo, que tem um impacto negativo em importantes dimensões da vida, esses aprendizados, ocorridos na maior parte por arranjos comunitários, permitiram, já nos primeiros anos da epidemia, o surgimento de estratégias preventivas que salvaguardaram uma retomada gradativa do prazer, da afetividade e do sexo, em detrimento às recomendações mais restritivas de abstinência e redução do número de parceiros. Destacam-se aqui os repertórios de práticas sexuais sem penetração no ânus ou vagina, o uso de preservativos e as estratégias soroadaptativas 1616. Ferraz D, Paiva V. Sex, human rights and AIDS: an analysis of new technologies for HIV prevention in the Brazilian context. Rev Bras Epidemiol 2015; 18:89-103.,1717. Merson MH, O'Malley J, Serwadda D, Apisuk C. The history and challenge of HIV prevention. Lancet 2008; 372:475-88..

Assim após 40 anos de epidemia, seria de se esperar que tratamentos mais efetivos - que aproximaram a expectativa de vida das pessoas com HIV à da população em geral - se traduzissem na busca por um melhor reequilíbrio entre estratégias preventivas e distintas necessidades de performar gênero e exercer a sexualidade.

Cabe neste ponto uma reflexão: seria pertinente estratégias preventivas alertando aspectos negativos do tratamento do HIV, para estimular práticas preventivas? A experiência indica a possibilidade de um efeito mais negativo do que positivo nesta escolha, por ressaltar uma visão parcial do tratamento e seguir no sentido contrário ao do ciclo virtuoso que pode levar à eliminação do HIV como problema de saúde pública: diagnóstico, tratamento, supressão viral e redução da mortalidade e da transmissão do HIV.

Além disso, apesar da representação mais branda da doença, estudos qualitativos mostram que adolescentes e adultos em maior risco permanecem com a preocupação de contrair o HIV. Isso pode ser observado em adultos usuários de profilaxia pós-exposição (PEP) que narraram sentir um significativo sofrimento durante a busca e o uso dessa profilaxia, advindo, especialmente, do receio de terem se infectado e da antecipação do estigma da aids 1818. Ferraz D, Couto MT, Zucchi EM, Calazanas GJ, Dos Santos LA, Mathias A, et al. AIDS- and sexuality-related stigmas underlying the use of post-exposure prophylaxis for HIV in Brazil: findings from a multicentric study. Sex Reprod Health Matters 2019; 27:1650587.. Sentimento similar foi relatado por homens que faze sexo com homens (HSH) adultos que procuravam profilaxia pré-exposição (PrEP). Eles ressaltaram o fato do estigma relacionado à aids e à sexualidade atuar como barreira à busca do cuidado 1919. Magno L, Dourado I, Coats CS, Wilhite D, Silva LAV, Oni-Orisan O, et al. Knowledge and willingness to use pre-exposure prophylaxis among men who have sex with men in Northeastern Brazil. Glob Public Health 2019; 14:1098-111., o que se transformou em alívio e aumento do prazer, ao se sentir protegido com o início do uso da profilaxia 2020. Mabire X, Puppo C, Morel S, Mora M, Castro DR, Chas J, et al. Pleasure and PrEP: pleasure-seeking plays a role in prevention choices and could lead to PrEP initiation. Am J Mens Health 2019; 13:1557988319827396.. A elevada preocupação em não contrair o HIV, pela compreensão das consequências negativas da aids e, novamente, o estigma também foi indicado por adolescentes HSH cisgêneros e travestis e mulheres transgênero (TrMT) 2121. Zucchi EM, Couto MT, Castellanos M, Dumont-Pena E, Ferraz D, Pinheiro TF, et al. Acceptability of daily pre-exposure prophylaxis among adolescent men who have sex with men, travestis and transgender women in Brazil: a qualitative study. PLoS One 2021; 16:e0249293..

Assim, a compreensão da busca de um equilíbrio entre necessidades cotidianas e estratégias de prevenção, considerado num contexto em que a aids é percebida com menor gravidade do que há 40 anos, pode ser o aspecto chave para compreender o recrudescimento da epidemia nas novas gerações. Nessa perspectiva, revisitar o final dos anos de 1990 e o início dos 2000 pode ser elucidativo 1010. Facchini R, França IL, editors. Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora da Unicamp; 2020.. É nesse período que se tornar mais visível socialmente uma inflexão sobre a noção binária de gênero, evidenciando que entre os polos masculino e feminino há uma multiplicidade de identidades e de performances possíveis. Isso ocorre concomitante à ampliação do espaço público para as temáticas LGBTQIA+ e por uma reconfiguração dos movimentos sociais identitários baseados no gênero e na orientação sexual. A resultante é um contexto criado nas décadas iniciais dos anos 2000 que favorece um maior reconhecimento da diversidade de gênero e sexual pelo estado e a sociedade.

No campo da resposta ao HIV, este processo é marcado, especialmente, por três descolamentos. O primeiro é o do movimento LGBT do campo do HIV que, após duas décadas, voltam a se rearticular em torno de novas organizações sociais e de uma agenda mais específica para a garantia de diretos iguais aos da população geral e a formulação de políticas para redução da violência por orientação sexual 2222. Sierra JC. Identidade e diversidade no contexto brasileiro: uma análise da parceria entre Estado e movimentos sociais LGBT de 2002 a 2015. Anos 90 2019; 26:e2019302.. Isso marca, também, um aumento da “sorofobia” ou do “HIVfobia” dentro do movimento homossexual, espelhando, de certa forma, um sentimento comunitário. Outro importante descolamento é a explicitação das especificidades das diversas identidades de gênero e de orientações sexuais que não ficariam mais encobertas por um certo “guarda-chuva do movimento homossexual”. Isso ocorre pela maior afirmação das agendas sobre a transexualidade, lesbianidade, assexualidade, entre outros; e se reflete num aumento das letras incluídas na sigla LGBT e numa maior visibilidade social dessas expressões 1010. Facchini R, França IL, editors. Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora da Unicamp; 2020.. O terceiro descolamento a chamar a atenção é o das novas formas de organização social e de práticas políticas, que passam a se diferenciar daquelas identificadas com as tradicionais organizações não governamentais (ONG). Os denominados “coletivos” surgem como expressões comunitárias mais fluídas e com menor institucionalidade, que se articulam por agendas diversas para responder a problemas e estabelecer novas formas de vivências e práticas para afirmação de gênero e identidades sexuais.

Todo esse processo reflete-se, entre outros aspectos, numa reconfiguração dos espaços de vivência comunitária e de interações sociais LGBTQIA+. Um movimento que amplia fronteiras e adquire novos formatos, com contextos mais favoráveis à pluralidades e a novos arranjos afetivos e sexuais. Nas periferias dos grandes centros urbanos, por exemplo, locais anteriormente marcados pela violência extrema contra homossexuais, surgem novos espaços abertos à diversidade de gêneros e orientações sexuais, com culturas próprias e independentes daqueles identificados como clássicos “espaços homoafetivos” e até então restritos às regiões centrais 2323. Couto MT, Unsain RF, Zucchi EM, Ferraz DAS, Escorse M, Silveira RA, et al. Territorialidades, desplazamientos, performatividades de géneros y sexualidades: juventudes LGBTQIA+ en las áreas suburbanas de la ciudad de São Paulo, Brasil. Sex Salud Soc (Rio J.) 2021; (37):e21212..

A reconfiguração dos espaços de interação também foi influenciada por diferentes fatores, mas chama a atenção as novas tecnologias de comunicação, que promoveram mudanças drásticas na forma como se dão os encontros sexuais e afetivos, que passam a ser mediados pelo uso dos aplicativos e das redes sociais 1212. Anzani A, Di Sarno M, Prunas A. Using smartphone apps to find sexual partners: a review of the literature. Sexologies 2018; 27:e61-5.. Esses novos meios de interação promoveram, simplificaram e ampliaram as redes e as possibilidades de encontrar parcerias, desvinculando as interações por busca de parcerias dos espaços físicos - praças, ruas e outros locais onde tradicionalmente ocorriam as interações LGBTQIA+. A importância desses aplicativos no cotidiano é tão significativa que eles se tornaram o principal meio para encontro de parceiros sexuais 1212. Anzani A, Di Sarno M, Prunas A. Using smartphone apps to find sexual partners: a review of the literature. Sexologies 2018; 27:e61-5.,2424. Chow EPF, Cornelisse VJ, Read TRH, Hocking JS, Walker S, Chen MY, et al. Risk practices in the era of smartphone apps for meeting partners: a cross-sectional study among men who have sex with men in Melbourne, Australia. AIDS Patient Care STDS 2016; 30:151-4., sendo que mais de 60% dos HSH, especialmente jovens, relatam entrar nesse espaço uma ou mais vezes ao dia 1212. Anzani A, Di Sarno M, Prunas A. Using smartphone apps to find sexual partners: a review of the literature. Sexologies 2018; 27:e61-5., não só para encontrar uma parceria casual, mas também para estabelecer relações afetivas, conhecer e interagir com amigos e obter diferentes tipos de serviços, incluindo o sexo comercial e a compra de substâncias psicoativas para a prática do sexo. Assim, parece natural definir os aplicativos como a “nova praça pública” para interações homoafetivas.

Outro aspecto que levou a importantes mudanças no contexto das relações sexuais, no que tange o risco de infecção por HIV, foi o aumento do uso de substâncias na cena de sexo, com a finalidade de facilitar as interações e melhorar a experiência sexual e, por vezes, prolongar o seu tempo de duração 1313. Hibbert MP, Hillis A, Brett CE, Porcellato LA, Hope VD. A narrative systematic review of sexualised drug use and sexual health outcomes among LGBT people. Int J Drug Policy 2021; 93:103187.,2525. Donnadieu-Rigole H, Peyrière H, Benyamina A, Karila L. Complications related to sexualized drug use: what can we learn from literature? Front Neurosci 2020; 14:548704.. Embora o uso sexualizado de substâncias não seja uma novidade em ambientes LGBTQIA+, ele ganhou novos contornos em anos recentes, com a chamada chemsex, onde a prática do sexo, em um ambiente de festa, ocorre por um longo período e envolve diferentes parceiros. Acresce-se a essa cena as “novas substâncias”, algumas sintéticas, que, normalmente, são usadas isoladamente ou em combinação, podendo envolver a aplicação injetável, com alto risco para provocar a adição. As principais substâncias utilizadas nos ambientes LGBTQIA+ são o cristal de metanfetamina, a gama-butirolactona (GHB/GBL), a mefedrona e a quetamina, podendo acrescer a cocaína, o poppers e a maconha. Esse aumento na prática do uso sexualizado é atribuído ao estigma internalizado relacionado ao gênero, orientação sexual e à aids; assim como à maior difusão dos aplicativos para encontro de parcerias 2626. Patten S, Doria N, Joy P, Sinno J, Spencer R, Leblanc M-A, et al. Sexualized drug use in virtual space: a scoping review of how gay, bisexual and other men who have sex with men interact online. Can J Hum Sex 2020; 9:106-26.. Nesses aplicativos tem sido prática corrente a adoção de emojis indicando a comercialização das substâncias e a preferência pelo uso em festas, em encontros a dois e/ou injetável. A frequência do uso tem variado significativamente por cidade e região, com uma revisão de literatura apontando variação de uso na vida entre 3% e 31% 2525. Donnadieu-Rigole H, Peyrière H, Benyamina A, Karila L. Complications related to sexualized drug use: what can we learn from literature? Front Neurosci 2020; 14:548704.. Já o uso injetável em HSH foi reportado por 10%, na Austrália, e 16% dos ingleses tiveram registros clínicos por complicações associadas a injeção dessas substâncias 2525. Donnadieu-Rigole H, Peyrière H, Benyamina A, Karila L. Complications related to sexualized drug use: what can we learn from literature? Front Neurosci 2020; 14:548704..

Essa reconfiguração dos espaços de interações sexuais tem sido associada ao aumento do risco de adquirir infecções sexualmente transmissíveis (IST), HIV e hepatites. No caso dos aplicativos, essa associação é mais evidente para aumento do número de parceiros, das práticas sexuais desprotegidas e da aquisição de IST, especialmente sífilis, gonorreia e clamídia 2424. Chow EPF, Cornelisse VJ, Read TRH, Hocking JS, Walker S, Chen MY, et al. Risk practices in the era of smartphone apps for meeting partners: a cross-sectional study among men who have sex with men in Melbourne, Australia. AIDS Patient Care STDS 2016; 30:151-4.,2727. Flesia L, Fietta V, Foresta C, Monaro M. "What are you looking for?" Investigating the association between dating app use and sexual risk behaviors. Sex Med 2021; 9:100405.,2828. Zou H, Fan S. Characteristics of men who have sex with men who use smartphone geosocial networking applications and implications for HIV interventions: a systematic review and meta-analysis. Arch Sex Behav 2017; 46:885-94., enquanto no uso sexualizado de substância as evidências se estendem, também, para a infecção por HIV e hepatites 1313. Hibbert MP, Hillis A, Brett CE, Porcellato LA, Hope VD. A narrative systematic review of sexualised drug use and sexual health outcomes among LGBT people. Int J Drug Policy 2021; 93:103187.. O aumento do risco de infecção por HIV devido aos aplicativos ainda requer aprofundamento. Uma metanálise dos estudos encontrou uma prevalência do HIV similar ente usuários e não usuários dos aplicativos 2828. Zou H, Fan S. Characteristics of men who have sex with men who use smartphone geosocial networking applications and implications for HIV interventions: a systematic review and meta-analysis. Arch Sex Behav 2017; 46:885-94.,2929. Wang H, Zhang L, Zhou Y, Wang K, Zhang X, Wu J, et al. The use of geosocial networking smartphone applications and the risk of sexually transmitted infections among men who have sex with men: a systematic review and meta-analysis. BMC Public Health 2018; 18:1178.. Já um estudo realizado com adolescentes HSH de Salvador (Brasil) relatou uma associação limítrofe do uso do aplicativo com o HIV 3030. Magno L, Medeiros DS, Soares F, Grangeiro A, Caires P, Fonseca T, et al. Factors associated to HIV prevalence among adolescent men who have sex with men in Salvador, Bahia State, Brazil: baseline data from the PrEP1519 cohort. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00154021..

Nesse ponto cabe retomar uma reflexão: qual a possibilidade das políticas, estratégias e métodos preventivos consolidados nesses últimos 40 anos dialogarem, de forma efetiva, com esse novo contexto de interações afetivas e sexuais, que, em tese, favorece a adoção de práticas associadas a uma maior circulação do HIV, IST e hepatites? Considerando que essas políticas, estratégias e métodos foram construídos num cenário percebido como mais justificável para os grupos sociais renunciarem às suas práticas e experiências cotidianas, visando garantir a saúde e a vida.

As políticas e os métodos preventivos

O conceito de prevenção combinada surgiu no início dos anos 2000 no plano global e, apesar de uma relativa controversa, expressava a concepção de que, para uma maior sustentabilidade e impacto, as políticas de prevenção deveriam estar baseadas nos direitos humanos, nas evidências científicas, no pertencimento comunitário e numa articulação de intervenções biomédicas, comportamentais e estruturais, tendo como centro as necessidades das pessoas e grupos sociais afetados pela epidemia 1717. Merson MH, O'Malley J, Serwadda D, Apisuk C. The history and challenge of HIV prevention. Lancet 2008; 372:475-88.. Essa concepção encontrava amparo na experiência bem-sucedida de países que haviam conseguido uma resposta efetiva à epidemia, como Brasil, Tailândia e Uganda.

O surgimento dos métodos preventivos baseados no uso de antirretrovirais, por volta dos anos 2010, entretanto, concentrou a ênfase da noção da prevenção combinada na chamada intervenções biomédicas e passou a destacar uma espécie de “cesta universal de métodos preventivos”, constituída por meio da disponibilidade de evidências científicas sobre a eficácia e/ou a efetividade.

A força dessa novidade e o seu potencial hipotético para reduzir a incidência do HIV acabam por propor um novo paradigma para as políticas preventivas, que, de certa forma, podem ser sintetizadas em duas premissas: para cada ponto da cadeia de exposição ao HIV há a possibilidade do uso de um método preventivo (p.ex.: a PrEP antecedendo a exposição, a camisinha durante o sexo, a PEP após uma relação desprotegida e, para quem está infectado, o tratamento por antirretroviral); e para cada pessoa um método, escolhido de acordo com suas necessidades e contexto. Esse novo paradigma, frequentemente, tem sido associado como uma “medicalização” da resposta ao HIV, reduzindo uma dimensão baseada nos direitos humanos e no enfrentamento dos aspectos estruturais.

A prática dos programas e serviços centrada na oferta de uma cesta universal dos métodos preventivos, com o tempo, tem mostrado suas limitações e um potencial para reduzir sua eficácia. A primeira limitação a se destacar é que uma cesta básica, constituída quase que exclusivamente em evidências produzidas em ensaios clínicos, acaba por gerar uma oferta competitiva entre métodos que requerem uma mesma estrutura para serem disponibilizados. Isso não seria um problema se o impacto populacional e a aceitação destes métodos fossem similar ou a capacidade de oferta fosse abundante. Um bom exemplo é a PEP, que possui alto grau de eficácia, baixo potencial para evitar a ocorrência de casos 3131. Grangeiro A, Ferraz D, Calazans G, Zucchi EM, Díaz-Bermúdez XP. The effect of prevention methods on reducing sexual risk for HIV and their potential impact on a large-scale: a literature review. Rev Bras Epidemiol 2015; 18:43-62. e, por sua urgência de início de uso, torna-se prioridade, limitando a capacidade dos serviços para a oferta de PrEP. Uma espécie de inversão de prioridade, dado que este último método tem um maior impacto na redução da incidência.

Adicionalmente, ao igualar os métodos dentro de uma cesta básica, a nova política reduz sua capacidade de romper com a abordagem hegemônica baseada na oferta do preservativo. Isso, entre outros aspectos, dificulta que os diferentes atores compreendam o maior potencial dos novos métodos em minimizar fatores que dificultam a adoção de uma prática preventiva mais efetiva no cotidiano das interações sexuais, como: o uso de drogas e álcool na cena do sexo, as diferenças de poder para a negociação de estratégias preventivas e a afetividade em relações estáveis. Uma das consequências é a manutenção de uma cultura do preservativo como a única (ou principal) forma de prevenção e um reduzido conhecimento e/ou desconfiança com outros métodos preventivos, como mostrou um estudo qualitativo realizado com adolescentes LGBTQIA+ 3232. Martins GB, Pinheiro TF, Ferraz D, Grangeiro A, Zucchi EM. Use of HIV prevention methods and contexts of the sexual practices of adolescent gay and bisexual men, travestis, and transgender women in São Paulo, Brazil. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00161521.. Isso equivale a um cenário em que as novas gerações se assemelham aos seus pais e avós em relação à prevenção, embora isto não seja verdadeiro para como performam gênero, orientação e práticas sexuais e afetivas, gerando uma desconexão entre o atual contexto em que ocorre as relações sexuais e as políticas de prevenção.

Outro aspecto que merece destaque é que, ao centrar a prevenção na oferta de métodos, grande parte da responsabilidade pelo acesso e uso recai sobre o indivíduo, que deve exercer sua “liberdade de escolha” a partir de informações como: eficácia, preferência e comodidade dos métodos. É uma espécie de transposição da lógica liberal e da sua concepção de indivíduo para o cuidado em saúde. Lembrando que para Foucault 3333. Foucault M. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Rio de Janeiro: Martins Fontes; 2008., essa lógica liberal empresta racionalidade não somente ao mercado, mas a todas as relações que permeiam a sociedade. Com isso, deixa-se de considerar com a devida importância os diferentes determinantes sociais que condicionam a prática preventiva e a epidemia de HIV. Uma importante consequência adversa desse aspecto é que a introdução dos novos métodos realizada nesse contexto contribui para aumentar inequidades e reduzir as chances de populações mais afetadas pela epidemia de, também, se beneficiarem das inovações em tempo oportuno.

A resposta ao HIV articulando a “nova” e “antiga” prevenção

A experiência e as evidências produzidas em anos recentes permitem superar a noção da prevenção combinada centrada em uma cesta universal de métodos, assim como aumentar a efetividade das políticas, ao incorporar em seu desenho uma representação social da aids com menor gravidade; e o protagonismo das novas gerações em um novo contexto de interação sexual.

Um primeiro e importante passo, nesse sentido, é a organização da oferta e das estratégias de criação de demanda por métodos preventivos com base em parâmetros que articulam o impacto na saúde pública e a promoção dos direitos humanos e da equidade. Isso levaria, necessariamente, a uma hierarquização de prioridades na oferta dos métodos preventivos, dando ênfase àqueles com maior potencial para reduzir a incidência da infecção e, ao mesmo tempo, dialogar com as necessidades e o cotidiano de populações mais vulneráveis ao HIV.

Pouca dúvida restaria que, com esses parâmetros, a PrEP seria o método prioritário, não só porque, na atualidade, está fortemente associada à expressiva redução da incidência do HIV, já quando alcança taxas medianas de cobertura populacional 3434. Luz PM, Deshpande V, Kazemian P, Scott JA, Shebl FM, Spaeth H, et al. Impact of pre-exposure prophylaxis uptake among gay, bisexual, and other men who have sex with men in urban centers in Brazil: a modeling study. BMC Public Health 2023; 23:1128., mas, especialmente, porque é o método que mais permite separar a gestão do uso (tomada do comprimido) da cena de sexo; e o que menos interfere na interação e práticas sexuais, independente do contexto e situação em que elas ocorram 2020. Mabire X, Puppo C, Morel S, Mora M, Castro DR, Chas J, et al. Pleasure and PrEP: pleasure-seeking plays a role in prevention choices and could lead to PrEP initiation. Am J Mens Health 2019; 13:1557988319827396.,2121. Zucchi EM, Couto MT, Castellanos M, Dumont-Pena E, Ferraz D, Pinheiro TF, et al. Acceptability of daily pre-exposure prophylaxis among adolescent men who have sex with men, travestis and transgender women in Brazil: a qualitative study. PLoS One 2021; 16:e0249293..

Essa priorização implica explicitar: a PrEP deve ser o método de escolha para as populações mais vulneráveis ao HIV, sendo os demais métodos opções para pessoas com menor risco de exposição ao HIV ou que não querem, não conseguiram ou falharam no uso de PrEP. Essa priorização da PrEP adquire uma maior importância ao considerar que os novos esquemas que estão se tornando disponíveis, notadamente os de longa duração, por meio da aplicação de injeções ou na forma de anéis vaginais, facilitam ainda mais a gestão do uso e oferecem maior comodidade 3535. Sued O, Nardi N, Spadaccini L. Key population perceptions and opinions about long-acting antiretrovirals for prevention and treatment: a scoping review. Curr Opin HIV AIDS 2022; 17:145-61..

Cabe ressaltar que a PrEP oral de uso diário tem se mostrado menos efetiva em adolescentes, do que em adultos, devido a uma pior adesão e menor persistência no uso. Diferentes fatores podem estar associados a esse fato, como uma maior dificuldade de organização diária para o uso, mudanças frequentes na vida sexual e aspectos estruturais que dificultam manter regularidade no seguimento clínico. Por isso, estratégias para simplificar e aproximar o uso desse método do cotidiano dos adolescentes, podem facilitar que a PrEP tenha um maior sentido para adolescentes, como o uso da telessaúde, oferta do método direto na comunidade, prescrição por pares etc. 3636. Haberer JE, Mujugira A, Mayer KH. The future of HIV pre-exposure prophylaxis adherence: reducing barriers and increasing opportunities. Lancet HIV 2023; 10:e404-11..

É possível que uma política baseada na hierarquização da oferta dos métodos seja admitida como um excesso de normatividade, que desconsidera a diversidade das pessoas, o direito à escolha, uma excessiva medicalização da prevenção e/ou um retorno à estratégia de promoção do método único, com um relativo desprezo dos diferentes métodos, como o preservativo. Há de se enfatizar, entretanto, que não é a ausência ou presença de uma hierarquização que determina o grau de normatividade de uma política de saúde pública, mas sim a persistência de uma abordagem que desconsidera as dimensões psicossociais do sexo e do cuidado, a negligência do enfrentamento dos determinantes estruturais da epidemia, a ausência de uma construção coletiva da política, a limitação do direito de acesso a todos os métodos e o cerceamento a informação oportuna para decisão.

Ademais, é premente que a política de prevenção encontre o necessário equilíbrio entre a oferta hierarquizada dos métodos preventivos e as ações de enfrentamento dos determinantes sociais, da violação dos direitos e do preconceito e estigma que restringem o direito e o acesso à prevenção. Nesse sentido, evidências têm mostrado que ações estruturais e de promoção dos direitos humanos podem ser mais efetivas na redução da incidência do HIV, do que a ênfase na oferta dos métodos, por mais eficazes que sejam 3131. Grangeiro A, Ferraz D, Calazans G, Zucchi EM, Díaz-Bermúdez XP. The effect of prevention methods on reducing sexual risk for HIV and their potential impact on a large-scale: a literature review. Rev Bras Epidemiol 2015; 18:43-62.. Isso permitiria retomar uma ressignificação da concepção original de prevenção combinada, como base estruturante das políticas e do acesso à prevenção.

Nesse mesmo sentido, enfatiza-se o fato de que uma resposta bem-sucedida ao HIV está, entre outros aspectos, associada diretamente ao grau de mobilização da sociedade e de uma resposta intersetorial 1717. Merson MH, O'Malley J, Serwadda D, Apisuk C. The history and challenge of HIV prevention. Lancet 2008; 372:475-88.. Este foi um dos marcos da política brasileira nas primeiras décadas da epidemia, porém, o conservadorismo crescente e uma menor visibilidade da aids como problema de saúde pública têm restringido, nos últimos anos, o envolvimento dos diferentes setores da sociedade e enfraquecido a resposta ao HIV no âmbito da saúde.

A disputa e a tensão promovida pelos setores e valores conservadores, inclusive, promoveram uma visível internalização do estigma na política governamental, reduzindo orçamento e inibindo ações essenciais de enfrentamento do HIV. No campo da saúde, por exemplo, há uma ausência de campanhas e estratégias federais massivas para as populações mais afetadas pela infecção que se estende pelos últimos 20 anos. A última campanha dirigida especificamente para HSH é de 2008, para profissionais do sexo e mulheres transexuais de 2013 e usuários de drogas de 2008 3737. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, Ministério da Saúde. Campanhas. http://antigo.aids.gov.br/pt-br/centrais-de-conteudo/campanhas (accessed on 03/Aug/2023).
http://antigo.aids.gov.br/pt-br/centrais...
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É importante compreender que os processos de estigmatização são processos sociais e políticos mediados por noções de poder, implementados por atores sociais com a finalidade de legitimar o status de dominação daqueles que estão em posição de hegemonia 3838. Parker R, Aggleton P. HIV and AIDS-related stigma and discrimination: a conceptual framework and implications for action. Soc Sci Med 2003; 57:13-24.. Quando alçado às políticas públicas acaba por acentuar ainda mais a produção e reprodução das inequidades estruturais, reforçando a exclusão social nos diferentes contextos. Essa se constituíra no maior desafio para o enfrentamento da epidemia de HIV e a principal barreira para a promoção da saúde de populações mais vulneráveis a infecção.

Ainda no campo da resposta intersetorial, considerando a educação como uma das áreas mais relevantes, pesquisas do Ministério da Saúde e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) têm mostrado que, entre 2009 e 2015, houve uma redução do número de adolescentes que receberam atividades de educação sexual nas escolas, incluindo acesso a preservativo e prevenção da gravidez não desejada 3939. Felisbino-Mendes MS, De Paula TF, Machado ÍE, Oliveira-Campos M, Malta DC. Analysis of sexual and reproductive health indicators of Brazilian adolescents, 2009, 2012 and 2015. Rev Bras Epidemiol 2019; 21 Suppl 1:e180013.. Isso acaba por criar um contraste contundente: a existência de métodos preventivos mais eficazes coexiste com gerações que, sistematicamente, deixam de adquirir habilidades para lidar com a epidemia e a prevenção, podendo perpetuar, por décadas, uma maior fragilidade para controlar ou eliminar a epidemia como problema de saúde pública. Uma situação que foi agravada com a interrupção do ensino e o fechamento compulsório das escolas na pandemia de COVID-19, que precisa ser compreendida como parte da resposta programática a qualquer política pública direcionada a adolescentes e jovens.

Outro aspecto importante para a construção de uma política voltada a adolescentes é reconhecer e agir sobre as formas pelo quais as relações de poder adulto-adolescente-jovem são cristalizadas nas práticas sociais. Ao cunhar o termo adultocentrísmo, a sociologia da infância examina como a distribuição do poder em uma sociedade é orientada em torno de adultos. Nas palavras de Fulvia Rosemberg 4040. Rosemberg F. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Global; 1985. (p. 25), “na sociedade centrada no adulto, a criança não é. Ela é um vir a ser. Sua individualidade deixa de existir. Ela é potencialidade e promessa”. Isso nos leva a perguntar: o quanto adolescentes e jovens são vistos por aquilo que “virão a ser” no cotidiano das práticas educacionais, no atendimento em serviços, na formulação das políticas públicas e, mesmo, nas interações e práticas sexuais? Convivemos em uma eterna ambiguidade em que, por um lado, estão presentes críticas contundentes à perspectiva adultocêntrica de modo a reconhecer a especificidade de adolescentes e jovens como sujeitos de direito e, por outro lado, um conjunto de práticas que restringem a participação e o engajamento de adolescentes e jovens na identificação e construção de respostas aos problemas que vivem e, principalmente, o futuro que almejam. Assim, a superação dos obstáculos relacionados à ausência de adolescentes e jovens nos espaços decisórios será o ponto de inflexão para a construção de políticas de enfrentamento do HIV que façam sentido e tenham chance de obter resultados com essa população.

Estamos em um momento crucial da epidemia de HIV. A Organização das Nações Unidas tem destacado a possibilidade de eliminação do HIV como um problema de saúde pública, até 2030. Porém, o aumento da incidência em adolescentes e jovens, concomitante à criação de gerações com menor habilidade para lidar com a epidemia, aponta para uma incidência persistente nos próximos anos, que não permitirá o alcance dessa meta de eliminação 4141. Khalifa A, Stover J, Mahy M, Idele P, Porth T, Lwamba C. Demographic change and HIV epidemic projections to 2050 for adolescents and young people aged 15-24. Glob Health Action 2019; 12:1662685.. Se a opção for pelo caminho da eliminação do HIV, teremos que lembrar que a existência dos novos métodos preventivos só consistirá em uma oportunidade ímpar, se conjugada a uma política que ofereça as melhores condições de cuidado integral e uma prevenção do HIV que responda às necessidades das novas gerações. Para isto será necessário romper, definitivamente, com a noção de aids construída nos últimos 40 anos, tanto do ponto de vista da sua gravidade, como de uma suposta efetividade na oferta de uma cesta básica universal de métodos preventivo. E, ao mesmo tempo, relembrar que os resultados bem-sucedidos na resposta ao HIV foram, até então, a construção de uma política participativa - “com” jovens em vez de “sobre” jovens -, baseada na proteção e promoção dos direitos humanos e na redução das vulnerabilidades e inequidades.

Agradecimentos

Agradecemos aos participantes, profissionais, pesquisadores, parceiros institucionais e financiadores (Unitaid, Organização Mundial da Saúde - OMS - e Ministério da Saúde do Brasil), que contribuíram para o desenvolvimento do Estudo PrEP1519 e permitiram acumular os conhecimentos apresentados neste trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2023
  • Aceito
    07 Ago 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br