Reflexões sobre gênero no cuidado integral à saúde: ferramentas para o aprimoramento de práticas profissionais

Gender reflections in comprehensive health care: tools to improve professional practices

Reflexiones de género en la atención integral de salud: herramientas para mejorar las prácticas profesionales

Claudia Carneiro da Cunha Sobre o autor
2022

O livro de Brandão & Alzuguir 11. Brandão ER, Alzuguir FCV. Gênero e saúde: uma articulação necessária. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde)., de 2022, Gênero e Saúde: Uma Articulação Necessária, de grande amplitude e fôlego teórico/analítico, visa dialogar com profissionais de saúde e educação, pesquisadores, estudantes, gestores, ativistas e público em geral interessado no debate sobre gênero e saúde.

A obra é alicerçada nas experiências profissionais e acadêmicas das autoras e pretende subsidiar ações em saúde mais inclusivas, equitativas e justas. Uma questão parece traduzir o objetivo principal do trabalho: como reflexões de gênero em sua íntima conexão com marcadores sociais da diferença podem contribuir para o cuidado integral à saúde, sobretudo no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)?

O livro, escrito e publicado no contexto da pandemia de COVID-19, ressoa os desafios desse momento dramático de crise sanitária, agravado por um governo pouco afeito às questões humanitárias, negacionista e absurdamente negligente quanto às políticas públicas de cunho social, incluindo as de saúde. Assim, produzir um trabalho voltado aos direitos humanos, à cidadania e à justiça social em um período de ameaça às frágeis conquistas da democracia brasileira confere a ele um mérito sem precedentes. Seria uma espécie de prenúncio de tempos melhores.

Nas primeiras páginas do livro, a dedicatória que homenageia os filhos das autoras, mães cientistas, aparece como uma sinalização afetiva e política fundamental para as páginas e para os debates que se sucedem. Trata-se de reconhecer que tal obra foi produzida apesar e a partir de inúmeros desafios postos pela vida acadêmica associada à maternidade, conferindo um reconhecimento amplo e valioso a todas as mães pesquisadoras, cujos cotidianos se tornaram ainda mais difíceis com a pandemia e seus desdobramentos, tais como trabalho remoto, doméstico e esgotamento físico e mental.

Assim, a partir da inspiração proporcionada pelo agradecimento do livro, escolho como abre-alas o capítulo 3: Implicações de Gênero na Produção do Conhecimento Científico. Nele, partindo do questionamento “ciência tem gênero? E cor/raça e classe?”, as autoras abordam o impacto do gênero e de outros marcadores sociais da diferença na produção científica, demonstrando o apagamento de mulheres que fizeram histórias que a História não conta - ou como traz o memorável samba da Estação Primeira de Mangueira, de 2019: “Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento/Tem sangue retinto pisado/Atrás do herói emoldurado/Mulheres, tamoios, mulatos/Eu quero um país que não está no retrato” - considerando-se um fazer científico que se estrutura a partir de princípios e valores masculinos, do homem branco. Além disso, fundamentando-se nas contribuições dos estudos feministas da ciência, Brandão & Alzuguir 11. Brandão ER, Alzuguir FCV. Gênero e saúde: uma articulação necessária. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde). revelam que as relações de gênero perpassam não somente o modo de produção e organização da ciência, mas também o próprio conhecimento científico.

Apostando na possibilidade de se produzir uma ciência feminista, que questiona os dualismos de gênero presentes nas interpretações dos resultados científicos e no imaginário social, as autoras, embaladas pelas discussões sobre a sobrecarga que mulheres, mães, pesquisadoras sofreram durante a COVID-19, problematizam: a pouca visibilidade e valor social relativos ao trabalho doméstico, sem o qual nenhuma comunidade de cientistas consegue desempenhar suas atividades; e as injustiças sociais advindas da cobrança por igual produtividade de mães e pais cientistas, o que tem inspirado movimentos como o Parent in Science22. Parent in Science. Sobre nós. https://www.parentinscience.com/sobre-o-parent-in-science (acessado em 15/Fev/2023).
https://www.parentinscience.com/sobre-o-...
, entre outros, nas universidades 33. Lowenkron L, Aureliano W. Maternidade, trabalho acadêmico e pandemia: mães cientistas da UERJ propõem medidas para atenuar desigualdades de gênero na ciência. Revista ADVIR 2020; (40):17-23..

Nesse sentido, o reconhecimento de que a ciência não é neutra; do caráter situado, social, histórico e inevitavelmente parcial do conhecimento; e das marcas e desigualdades de gênero presentes no âmbito acadêmico e na vida social opera como eixo estruturante do livro, perpassando os demais capítulos, que se conectam e completam.

No capítulo 1, Panorama Histórico e Conceitual sobre a Categoria de Gênero, as autoras discorrem acerca do surgimento da categoria de gênero, em meados do século XX, demonstrando sua importância para a compreensão crítica e política da realidade social e para a valorização de outra episteme, forjada no diálogo com os movimentos feministas.

Para descrever a emergência do conceito de gênero, as autoras percorrem as formulações de teóricas consagradas, em sua maioria feministas, ressaltando o estabelecimento do sistema sexo/gênero para o entendimento das opressões pautadas nas ideias de diferenças alicerçadas em explicações de ordem naturalizante. Coroando o debate, desestabilizam-se a ideia essencialista de que os sexos biológicos determinariam papéis e atributos femininos e masculinos e a perspectiva de sexo como uma base biológica fixa, invariável e pré-social, afirmando-se que ele seria, tal como o gênero, discursivo e cultural.

Tal arcabouço conduz a duas importantes reflexões: (1) de que forma as normas de gênero produzem adoecimento, acirrando as vulnerabilidades sociais?; (2) como a (re)produção de práticas discriminatórias no interior de instituições de cuidado (saúde/educação) reifica processos sociais de discriminação e exclusão?

É nessa direção reflexiva que passamos do capítulo 1 para o capítulo 2, Diferença Sexual e Medicalização dos Corpos, que aborda a produção da diferença sexual na modernidade e o processo de medicalização dos corpos femininos e masculinos. Nessa parte do livro, as autoras indicam que a noção de diferença sexual - como suposto fundamento do gênero - na leitura de dois corpos distintos é uma convenção social que se perpetua há séculos no Ocidente. Muitos aspectos sociais, políticos e econômicos, na constituição da modernidade, concorreram para o estabelecimento do binarismo sexual.

O incremento das biotecnologias e da medicalização dos corpos nos últimos tempos foi tornando as supostas “evidências” das diferenças sexuais ancoradas nos corpos ainda mais marcantes. A tentativa de conhecer e “domar” os corpos a partir do “discurso hormonal” está na ordem do dia, com destaque para a testosterona e a ocitocina, igualmente generificados.

As consequências dessa “corrida” do aprimoramento corporal são muitas, mas o que mais preocupa, tal como explicitam Brandão & Alzuguir 11. Brandão ER, Alzuguir FCV. Gênero e saúde: uma articulação necessária. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde). (p. 52), é que: “Os investimentos médicos e não médicos com o objetivo de estabilizar e naturalizar uma diferenciação sexual entre dois corpos distintos afetam, impedem ou ocultam a emergência de corpos, comportamentos, identidades e desejos que se desviam da correspondência entre sexo, gênero e orientação sexual”. Tais dimensões, sabemos, endossam estigmas e produzem discriminação, preconceito e, muitas vezes, violência.

No quarto capítulo, A Centralidade da Abordagem Interseccional na Compreensão dos Processos Saúde e Doença, discute-se o modo pelo qual gênero, classe social, raça/etnia, geração e orientação sexual se articulam sinergicamente e produzem hierarquias sociais em saúde, com impactos significativos na possibilidade de autocuidado e acesso a uma assistência digna e de qualidade. A perspectiva feminista interseccional é acionada, com evidência para as autoras brasileiras, para mostrar como as múltiplas opressões estão relacionadas às exclusões sociais. São conferidos destaques ao público LGBTQIA+, às mulheres e aos jovens negros pelas recorrentes violações de direitos a que estão submetidos - entre eles, o de existir. Há, portanto, o pleito por um resgate ético para que o valor das diferenças que marcaram a Constituição Cidadã e o SUS sejam retomados e se desdobrem em equidade e integralidade no cuidado e para que ser jovem, mulher, negro e/ou LGBTQIA+, periféricos, não seja sinônimo de adoecimento ou sentença de morte.

O capítulo 5, e último, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: Debates Contemporâneos, apresenta um breve histórico da formulação das noções de direitos sexuais e reprodutivos, destacando a importância desse resgate diante do crescente movimento antigênero nos contextos nacional e internacional. As autoras defendem a permanência das pautas e ações pró-diversidade sexual e de gênero, consubstanciadas em políticas públicas. Além disso, pleiteiam que a perspectiva da justiça reprodutiva possa sedimentar a união entre direitos reprodutivos e justiça social.

No que tange aos direitos sexuais, as autoras mostram a dificuldade de sua defesa desatrelada dos direitos reprodutivos. Esses últimos, especialmente com a pandemia, sofreram retrocessos e violações, marcas de uma história brasileira que já foi capaz de produzir uma cultura de esterilização e que, até hoje, submete populações mais vulneráveis a procedimentos compulsórios que violam seus direitos 44. Cunha CC, Moreira MCN. Dimensões biopolíticas da Portaria nº 13/2021 do Ministério da Saúde: impactos nos direitos e no enfrentamento de estigmas de determinados grupos de mulheres. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00124621..

No último capítulo, as autoras destacam o pânico moral que cerca os temas aborto e trabalho sexual, abordando, infelizmente, de forma insuficiente os direitos relacionados ao exercício da sexualidade por pessoas vivendo com HIV/aids. Em um momento pós-desmonte da política de aids, que já foi referência mundial, a disponibilização de profilaxia pré-exposição (PrEP) e profilaxia pós-exposição (PEP) não deve ser vista apenas como “medicalização do problema”, mas sim como tecnologia chave na “prevenção combinada” para pessoas sob risco acrescido.

Por fim, as autoras escrevem com tamanho envolvimento e generosidade que a cada capítulo nos sentimos conduzidos/as em um fantástico desbravar teórico e reflexivo, que em nenhum momento se descola da realidade social e das vidas concretas das pessoas em sua importância e materialidade.

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    Brandão ER, Alzuguir FCV. Gênero e saúde: uma articulação necessária. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde).
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    Parent in Science. Sobre nós. https://www.parentinscience.com/sobre-o-parent-in-science (acessado em 15/Fev/2023).
    » https://www.parentinscience.com/sobre-o-parent-in-science
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    Lowenkron L, Aureliano W. Maternidade, trabalho acadêmico e pandemia: mães cientistas da UERJ propõem medidas para atenuar desigualdades de gênero na ciência. Revista ADVIR 2020; (40):17-23.
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    Cunha CC, Moreira MCN. Dimensões biopolíticas da Portaria nº 13/2021 do Ministério da Saúde: impactos nos direitos e no enfrentamento de estigmas de determinados grupos de mulheres. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00124621.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2023
  • Aceito
    27 Fev 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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