Rumo à equidade em saúde: por uma agenda de pesquisa e desenvolvimento e produção local orientada pelas múltiplas necessidades do Sistema Único de Saúde

Hacia la equidad en salud: por una agenda de investigación y desarrollo y producción local orientada por las múltiples necesidades del Sistema Único de Salud brasileño

Mady Malheiros Barbeitas Alila Brossard Antonielli Gabriela Costa Chaves Koichi Kameda Sobre os autores

Introdução

Em seu discurso de posse, no dia 2 de janeiro de 2023, a nova ministra da saúde, Nísia Trindade Lima, apontou a produção local de insumos e o reforço do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS, acronym in Portuguese) como algumas de suas prioridades, além da retomada do papel de coordenação do Ministério da Saúde para definir as necessidades e estimular as pesquisas e a produção de insumos estratégicos para o Sistema Único de Saúde (SUS). Um compromisso público dessa dimensão nos convida a olhar para o passado recente a fim de tirar lições para o presente.

Durante a pandemia do SARS-CoV-2, as instituições de ciência e tecnologia brasileiras tiveram um papel-chave no seu enfrentamento, promovendo, por exemplo, o acesso rápido às vacinas anti-COVID-19 mesmo diante da falta de coordenação e do descrédito na ciência por parte do Governo Federal na época. Ao mesmo tempo, a pandemia expôs a grande vulnerabilidade do país, que depende da importação de insumos para a produção de vacinas, medicamentos, testes de diagnóstico, equipamentos e outros itens de tecnologia menos avançada, mas igualmente importantes no contexto sanitário. A meta de governo, segundo a nova ministra, é produzir localmente pelo menos 70% dos insumos utilizados no SUS.

Surge, no entanto, uma questão relativa ao escopo do que se considera 70% dos insumos: essa porcentagem se relaciona ao volume de unidades compradas, aos gastos públicos com tecnologias em saúde adquiridas pelo SUS ou a um elenco da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME)?

Considerando a importância da produção não só de produtos finais, mas também dos insumos farmacêuticos ativos (IFA), torna-se oportuno igualmente questionar quais serão os segmentos alvo desse esforço.

Essas questões tornam-se cruciais na medida em que as barreiras ao acesso não se limitam à disponibilidade, mas abrangem outros desafios que refletem a dinâmica do atual setor farmacêutico. Decidimos abordar as barreiras ao acesso a partir de casos concretos envolvendo diferentes tecnologias de saúde (medicamento, diagnóstico e vacinas), explicitando alguns elementos dessa intrincada arquitetura. Os equipamentos médicos não foram contemplados nessa reflexão.

Patente, preço e produção farmacêutica

Barreiras ao acesso a medicamentos mais novos também incluem altos preços em razão da situação de monopólio decorrente da proteção patentária. A partir da década de 1990, o SUS sentiu o peso da incorporação dos medicamentos para HIV (ARV) sob proteção patentária e, por isso, uma série de iniciativas governamentais foi empreendida para ampliar o poder de negociação de preços na compra governamental, entre os quais estimativas de custo de produção e enfrentamento da barreira patentária, como ameaça e uso da licença compulsória para importação e posterior produção nacional do IFA e do medicamento efavirenz 11. Chaves G. Interfaces entre a produção local e o acesso a medicamentos no contexto do Acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio [Doctoral Dissertation]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2016.. Essa lição não pode ser esquecida, já que a incorporação de medicamentos de alto preço sob monopólio patentário não cessou de aumentar ao longo dos anos.

Dessa forma, se os 70% a serem produzidos localmente forem baseados no percentual do gasto público com medicamentos sob monopólio diante do total das despesas públicas com medicamentos, é provável que se chegue a uma lista pequena de insumos.

A aposta na produção local precisará ser acompanhada do uso das salvaguardas previstas na legislação de propriedade industrial que favoreçam o desenvolvimento tecnológico, tais como uso experimental, exceção Bolar, oposições de patentes e licença compulsória.

A dependência tecnológica se reflete não apenas na balança comercial deficitária no setor farmacêutico, mas também nas vulnerabilidades que atingem o SUS devido às práticas das empresas farmacêuticas para assegurar a exclusividade de medicamentos nas compras públicas, conforme documentado na literatura. O caso do eculizumab é ilustrativo, já que a demora na solicitação do registro sanitário no país teve impactos na regulação do preço pelo setor público e consequentes compras a preços altos, no contexto da judicialização 22. Caetano R, Rodrigues PHA, Corrêa MCV, Villardi P, Osorio-de-Castro CGS. O caso do eculizumabe: judicialização e compras pelo Ministério da Saúde. Rev Saúde Pública 2020; 54:22..

Práticas empresariais que produzam vulnerabilidades à assistência farmacêutica no SUS devem estar no radar da seleção de insumos candidatos a investimentos para produção local e essas iniciativas devem estar associadas ao enfrentamento da situação de monopólio gerada.

As parcerias para desenvolvimento produtivo

As parcerias para desenvolvimento produtivo (PDP), iniciadas em 2009, apostaram em um modelo de transferência de tecnologia do setor privado para o público (laboratórios farmacêuticos oficiais - LFO), baseado em uma lista de produtos estratégicos adquiridos pelo SUS. Contemplou-se a necessidade de incluir um parceiro capaz de produzir o IFA e outros insumos da cadeia de desenvolvimento tecnológico a fim de fortalecer esse segmento industrial em território nacional. O principal incentivo do arranjo estava centrado na garantia de exclusividade do mercado público aos parceiros envolvidos durante o período de transferência tecnológica, que, com a evolução da legislação, poderia chegar a até 10 anos.

Apesar da centralidade dada aos LFO, a implementação das PDP levantou muitas questões quanto à seleção das tecnologias, às limitações da capacitação tecnológica e à capacidade de enfrentar barreiras ao acesso das tecnologias atuais e futuras, requerendo aperfeiçoamento e outros investimentos para assegurar absorção e acumulação tecnológica 33. Hasenclever L, Oliveira MA, Paranhos J, Chaves GC, editors. Desafios de operação e desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde. v. 1. Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais Ltda.; 2016.,44. Chaves GC, Azeredo TB, Vasconcelos DMM, Mendoza-Ruiz A, Scopel CT, Oliveira MA, et al. Produção pública de medicamentos no Brasil: capacitação tecnológica e acesso. Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais Ltda.; 2018.. No entanto, esses esforços contribuíram para que, na crise da COVID-19, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantã entrassem em parcerias para assegurar a oferta oportuna e a produção nacional de duas plataformas de vacina.

Investir nas doenças tropicais negligenciadas

Outro aspecto do acesso a ser urgentemente endereçado pelo novo Ministério da Saúde diz respeito às necessidades de saúde não atendidas no âmbito do atual modelo de pesquisa e desenvolvimento (P&D) farmacêutico. Um exemplo seria apoiar o desenvolvimento e a produção de medicamentos, vacinas e testes de diagnóstico para as doenças tropicais negligenciadas (DTN). Essas doenças afetam não apenas o Brasil, mas também outros países do Sul Global, e em sua maioria não são lucrativas.

O Brasil estava em uma curva ascendente de investimentos para o tratamento dessas doenças. Entre 2007 e 2018, o país investiu USD 66 milhões em projetos de P&D para esses casos 55. Policy Cures Research. G-FINDER - public search 2023. https://gfinderdata.policycuresresearch.org/pages/share/69cb37fb-95e7-4a7e-bee4-d61fe8713806 (accessed on 01/Apr/2023).
https://gfinderdata.policycuresresearch....
. Editais inéditos foram criados pelo Ministério da Saúde e numerosos projetos foram contratados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com esse foco, aproveitando grupos de pesquisa e um histórico de colaboração nessa área. A partir de 2017, esses investimentos declinaram, mas atualmente se espera uma recuperação, principalmente após o compromisso estabelecido pelo Governo Federal para eliminação de algumas DTN. Contudo, seria extremamente importante avaliar quais foram os verdadeiros legados dos editais e programas de financiamento anteriores, em termos de aprendizado tecnológico e de maior compreensão da inovação (ou de suas barreiras) no campo das DTN.

Embora os números indiquem tendência à maior priorização do tratamento de doenças negligenciadas no período de 2007 a 2017, eles não são suficientes para compreender como o sistema de inovação se articula e se operacionaliza quando é preciso instaurar uma nova tecnologia no mercado (ou no SUS). Nesse caso, estudos qualitativos seriam importantes para revelar os aprendizados e entraves operacionais quando existe financiamento em P&D para as DTN. Um exemplo é a combinação em dose fixa de artesunato e mefloquina (ASMQ). O desenvolvimento desse medicamento contribuiu para o aprendizado e a capacitação de instituições de ciência e tecnologia brasileiras, mas o produto acabou não sendo plenamente incorporado ao SUS.

No que diz respeito ao suporte operacional na cadeia de desenvolvimento farmacêutico, a Fiocruz criou uma plataforma de pesquisa clínica - uma organização que atua como contract research organization (CRO - organização de pesquisa contratada) pública, apoiando e financiando os ensaios clínicos para o tratamento de doenças negligenciadas 66. Barbeitas M. La recherche et le développement pharmaceutique pour les maladies négligées sous l'angle de la leishmaniose - rupture ou continuité dans la santé globale? [Doctoral Dissertation]. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales; 2022..

Vacinas e testes de diagnóstico

O Brasil tem capacidade, mas também lacunas, para produção e desenvolvimento de vacinas e de testes de diagnóstico. O investimento na produção nacional dessas tecnologias por instituições públicas tem ocorrido a partir de parcerias para a transferência de tecnologia, mesmo antes das PDP. Essa estratégia segue uma lógica pragmática de acelerar a disponibilização do produto no SUS. Além disso, ela permite o acesso a outros elementos considerados chave na produção de biológicos, como o know-how. Isso possibilitou ao setor público acrescentar em seu portfólio um conjunto de tecnologias e plataformas que não apenas atendem a demandas existentes do governo, mas também podem ser mobilizadas para emergências sanitárias futuras. Um exemplo é o teste de ácidos nucleicos (NAT), cuja plataforma, desenvolvida por consórcio público nacional (Bio-Manguinhos, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto Biologia Molecular do Paraná e Hemobrás), elaborada inicialmente para uso nos hemocentros foi, posteriormente, mobilizada para desenvolvimento de testes de diagnóstico de arboviroses e COVID-19 77. Kameda K. Testing the nation: healthcare policy and innovation in diagnostics for infectious diseases in Brazil [Doctoral Dissertation]. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales; 2019..

Se essas estratégias têm favorecido o acesso a plataformas e produtos, elas não enfrentam a inexistência de produção de uma série de insumos necessários para obtenção do produto final. No caso de um teste PCR, o país carece da produção de primers, sondas e pontas para pipetas. Esse foco no produto final também negligencia outras vulnerabilidades. Uma delas é a necessidade de infraestruturas para desenvolvimento e produção de novas vacinas e testes 88. Kameda K. Molecular sovereignty: building a blood screening test for the Brazilian nation. Med Anthropol Theory 2021; 8:1-25.. Algumas iniciativas vêm buscando suprir essas lacunas, como o Centro Henrique Penna, de Bio-Manguinhos, que conta com uma planta piloto, o Centro de Produção Multipropósito de Vacinas do Instituto Butantã, com uma área de nível de segurança 3, e a previsão do Centro Nacional de Vacinas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Investir em novas soluções tecnológicas urgentes não deveria impedir que instituições públicas exercessem sua vocação primordial, que é atender às demandas que não interessam ao setor privado. Um caso é o teste de Montenegro para a leishmaniose tegumentar. Apesar de ser prioridade para o SUS e para outros países na região e da existência de capacidade tecnológica em LFO, esse teste está indisponível no país por falta de priorização na agenda política 99. Barbeitas M. Montenegro skin test: distracted by the promise of modernity? Rev Soc Bras Med Trop 2023; 56:e0492-2022..

Aposta em uma estratégia regional

A pandemia de COVID-19 demonstrou a fragilidade provocada pela especialização de produção de medicamentos e insumos na China e na Índia. Esses países interromperam a produção e limitaram as exportações, priorizando o fornecimento para atender às necessidades nacionais.

A cooperação internacional para fomentar e melhorar a qualidade da produção local é estratégica para lidar com essas fragilidades. No entanto, iniciativas de transferência de tecnologia entre países do Sul Global necessitam de forte alinhamento de prioridades em níveis regional e internacional, associado a uma articulação sustentada em alto nível nos fóruns e nas organizações internacionais, além de comprometimento financeiro de longo prazo e projetos extensos para desenvolver as capacidades de produção de IFA e de elevação da qualidade 1010. Antonielli AB. Les me´tamorphoses d'une usine de me´dicaments au Mozambique. Des politiques pharmaceutiques socialistes au projet de la coope´ration bre´silienne [Doctoral Dissertation]. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales; 2023..

A declaração conjunta dos Ministérios da Saúde da Argentina e do Brasil, em 23 de janeiro de 2023, bem como a reunião do comitê ad hoc de países do Mercosul para promover a expansão da capacidade produtiva regional em tecnologias em saúde, frisaram a importância da cooperação entre os vizinhos para fomentar P&D de medicamentos e vacinas. Para serem efetivamente implementadas, ambas as iniciativas de mutualização de esforços e de complementaridades devem ser acompanhadas de elementos concretos, como planejamento e linhas de financiamento perenes.

Considerações finais

Os princípios de universalidade, equidade e integralidade do SUS devem ser norteadores de uma agenda de inovação orientada pelas necessidades em saúde, nacionais e regionais, que, em muitos casos, não apresentam interesse comercial, mas persistem na sua essencialidade sanitária.

Os exemplos retratados ilustram a importância de uma agenda industrial e de inovação atendendo integralmente às necessidades do SUS, desde tecnologias novas e de alto custo, tecnologias antigas e sob risco de desabastecimento, infraestrutura em P&D para responder oportunamente a futuras emergências sanitárias, até lacunas tecnológicas para DTN. Os anúncios que apontam para a cooperação Sul-Sul na região são certamente promissores, na perspectiva de mutualizar o conhecimento, colaborar para necessidades regionais comuns e, por que não, apostar em uma dinâmica de interdependência entre os países na constituição da soberania sanitária regional que assegure uma agenda compartilhada de produção e acesso às tecnologias sanitárias.

Referências

  • 1
    Chaves G. Interfaces entre a produção local e o acesso a medicamentos no contexto do Acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio [Doctoral Dissertation]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2016.
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    Caetano R, Rodrigues PHA, Corrêa MCV, Villardi P, Osorio-de-Castro CGS. O caso do eculizumabe: judicialização e compras pelo Ministério da Saúde. Rev Saúde Pública 2020; 54:22.
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    Hasenclever L, Oliveira MA, Paranhos J, Chaves GC, editors. Desafios de operação e desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde. v. 1. Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais Ltda.; 2016.
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    Chaves GC, Azeredo TB, Vasconcelos DMM, Mendoza-Ruiz A, Scopel CT, Oliveira MA, et al. Produção pública de medicamentos no Brasil: capacitação tecnológica e acesso. Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais Ltda.; 2018.
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    Antonielli AB. Les me´tamorphoses d'une usine de me´dicaments au Mozambique. Des politiques pharmaceutiques socialistes au projet de la coope´ration bre´silienne [Doctoral Dissertation]. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales; 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2023
  • Revisado
    03 Ago 2023
  • Aceito
    04 Ago 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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