Resposta à Carta às Editoras de Domingues et al.

Reply to the Letter to the Editors by Domingues et al.

Respuesta a la Carta a las Editoras de Domingues et al.

Michelle Elaine Siqueira Ferreira Raquel Zanatta Coutinho Bernardo Lanza Queiroz Sobre os autores

A urgência de um sistema de vigilância de near miss materno, complementar ao sistema de vigilância de óbito materno, no Brasil, emerge da necessidade de compreensão sobre os fatores associados à estagnação do declínio da razão de mortalidade materna (RMM) - mantida em cerca de 60 óbitos por 100 mil nascidos vivos desde meados de 2015, valor que atingiu 110 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos em 2021 11. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Mortalidade proporcional por grupos de causas em mulheres no Brasil em 2010 e 2019. Brasília: Ministério da Saúde; 2021.,22. Herzog RS, Francisco RPV, Rodrigues AS. Óbitos de gestantes e puérperas. https://repo-prod.prod.sagebase.org/repo/v1/doi/locate?id=syn42902915&type=ENTITY (acessado em 29/Ago/2023).
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- e de avaliação das políticas voltadas à saúde materna e infantil, para que sejam adaptadas continuamente.

Embora, no espectro da morbimortalidade materna, os desfechos maternos graves representem uma pequena parcela das condições que gestantes e puérperas podem experimentar durante o ciclo gravídico-puerperal, a maioria desses desfechos está associada a causas evitáveis 33. Say L, Souza JP, Pattinson R; WHO Working Group on Maternal Mortality and Morbidity Classifications. Maternal near miss: towards a standard tool for monitoring the quality of maternal health care. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol 2009; 23:287-96.. Nesse contexto, ainda que a vigilância do óbito materno tenha contribuído para a elucidação das suas principais causas, os entraves que ainda mantêm a RMM acima do pactuado pelo país carecem de novas evidências. Assim, tendo em vista que os casos de near miss materno são mais prevalentes que os de óbito e considerando a similaridade entre os dois desfechos no que tange às principais causas 44. Leitao S, Manning E, Greene RA, Corcoran P; Maternal Morbidity Advisory Group. Maternal morbidity and mortality: an iceberg phenomenon. BJOG 2022; 129:402-11.,55. Organização Pan-Americana da Saúde. Recomendações para o estabelecimento de um sistema nacional de vigilância da morbidade materna extremamente grave na América Latina e no Caribe. Washington DC: Organização Pan-Americana da Saúde; 2021., o near miss materno é um melhor indicador dos avanços e das falhas na assistência obstétrica do que as demais morbidades maternas, que não necessariamente levam gestantes ou puérperas a uma disfunção orgânica e, consequentemente, ao óbito caso não recebam os cuidados necessários.

Pensando na potencialidade da investigação dos eventos de near miss materno, em complementariedade à investigação dos óbitos maternos, regulamentada no ano 2008, Ferreira et al. 66. Ferreira MES, Coutinho RZ, Queiroz BL. Morbimortalidade materna no Brasil e a urgência de um sistema nacional de vigilância do near miss materno. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00013923., no ensaio intitulado Morbimortalidade Materna no Brasil e a Urgência de um Sistema Nacional de Vigilância do Near Miss Materno, propuseram a implementação de um sistema de vigilância de near miss materno no país. Em resposta ao ensaio, Domingues et al. 77. Domingues RMSM, Dias MAB, Saraceni V, Pinheiro RS, Paiva NS, Coeli CM. Vigilância da morbidade materna no Brasil: contribuições para o debate. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00151123. publicaram carta às editoras na qual mencionam a complexidade da implementação do referido sistema de vigilância, ratificando vários argumentos expostos no ensaio original 66. Ferreira MES, Coutinho RZ, Queiroz BL. Morbimortalidade materna no Brasil e a urgência de um sistema nacional de vigilância do near miss materno. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00013923.. Entre os argumentos apresentados, foram pontuados os desafios relacionados à ausência de codificação dos critérios diagnósticos de near miss materno na Classificação Internacional de Doenças (CID) e a baixa sensibilidade e o baixo valor preditivo positivo do Sistema de Informação Hospitalar do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS) para identificação dos casos 77. Domingues RMSM, Dias MAB, Saraceni V, Pinheiro RS, Paiva NS, Coeli CM. Vigilância da morbidade materna no Brasil: contribuições para o debate. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00151123.,88. Nakamura-Pereira M, Mendes-Silva W, Dias MAB, Reichenheim ME, Lobato G. Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS): uma avaliação do seu desempenho para a identificação do near miss materno. Cad Saúde Pública 2013; 29:1333-45.. Além disso, os autores destacam a potencial complexidade que a notificação dos casos via Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) teria caso esse recurso fosse utilizado como instrumento de registro. Em adição, contribuindo para o debate, eles apresentam o Painel de Vigilância de Saúde Materna como uma possibilidade de acompanhamento dos indicadores e sugerem a criação de uma Autorização de Internação Hospitalar (AIH) obstétrica e um Sistema de Informação Perinatal (SIP) 77. Domingues RMSM, Dias MAB, Saraceni V, Pinheiro RS, Paiva NS, Coeli CM. Vigilância da morbidade materna no Brasil: contribuições para o debate. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00151123..

Conforme salientado no ensaio, reconhecendo a complexidade de implementação de um novo sistema de vigilância voltado à saúde materna e tendo em vista que a vigilância do óbito é recente, os autores explicitam que o planejamento e a execução de um sistema de vigilância de near miss materno deverão ser realizados por equipe multidisciplinar de gestores, pesquisadores, profissionais de saúde e sociedade civil 66. Ferreira MES, Coutinho RZ, Queiroz BL. Morbimortalidade materna no Brasil e a urgência de um sistema nacional de vigilância do near miss materno. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00013923.. Por esse motivo, ainda que de forma muito breve, o SIH/SUS e o SINAN foram sugeridos como possíveis fontes de dados, uma vez que a vigilância em saúde pode e deve ser feita com base em diversas fontes de informação. O objetivo do ensaio foi fomentar a discussão sobre a criação e implementação de um sistema de morbimortalidade materna, também considerando a experiência internacional, que proporcione evidências robustas para o enfrentamento de um problema que o país, de forma mais severa em algumas regiões, não consegue resolver.

No que tange às duas sugestões de registro de dados fornecidas na carta às editoras, não obstante a ausência de classificação do near miss materno na CID constituir um entrave para a utilização dos dados do SIH/SUS - tendo em vista os constantes investimentos na melhoria do preenchimento das AIH e o aumento da consistência 99. Cerqueira DRC, Alves PP, Coelho DSC, Lima AS. Uma análise da base de dados do Sistema de Informação Hospitalar entre 2001 e 2018: dicionário dinâmico, disponibilidade dos dados e aspectos metodológicos para a produção de indicadores sobre violência. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2019., principalmente das variáveis: especialidade do leito, diagnóstico principal e procedimentos realizados -, a criação de uma AIH obstétrica, poderia, caso contenha as variáveis capazes de identificar os casos de near miss materno, contribuir para a recuperação dos eventos diretamente do SIH/SUS.

Quanto à potencialidade do SINAN, a partir da padronização de uma ficha de notificação, similar à do óbito materno, durante a internação ou na consulta pós-alta hospitalar, o profissional de saúde, ao observar a presença de quaisquer dos critérios, poderia proceder à notificação, uma vez que, para caracterização do near miss materno, basta que um dos 25 critérios diagnósticos esteja presente 33. Say L, Souza JP, Pattinson R; WHO Working Group on Maternal Mortality and Morbidity Classifications. Maternal near miss: towards a standard tool for monitoring the quality of maternal health care. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol 2009; 23:287-96., assim como efetivado no Estado do Paraná 1010. Secretaria de Estado de Saúde. Linha de cuidado materno infantil. Curitiba: Secretaria de Estado de Saúde; 2022.. Ainda que pareça de difícil implementação, não demandaria um esforço maior que aquele expendido na notificação de outros agravos de notificação compulsória relacionada à gestação e ao puerpério (como a sífilis, o HIV, a toxoplasmose), sem mencionar a possibilidade de investigar seus desdobramentos durante a anamnese. Além disso, destaca-se a importância de a vigilância abarcar o contexto da saúde suplementar e privada no Brasil, o que não poderia ser feito somente com a AIH.

Por fim, Domingues et al. 77. Domingues RMSM, Dias MAB, Saraceni V, Pinheiro RS, Paiva NS, Coeli CM. Vigilância da morbidade materna no Brasil: contribuições para o debate. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00151123. defendem a implementação de um sistema de vigilância de morbidade materna grave, e não apenas de near miss materno, e pontuam que o país já conta com o Painel de Vigilância de Saúde Materna, que consolida informações sobre condições potencialmente ameaçadoras à vida (CPAV). O painel é, de fato, um importante instrumento para gestores e interessados, pois exibe diversos indicadores de saúde materna em âmbito municipal. No entanto, ele não possibilita a análise dos fatores que diferem uma mulher que sobrevive a uma condição materna extremamente grave daquela que vai a óbito, objetivo precípuo da proposta para vigilância do near miss materno. Em países avançados na transição obstétrica, onde o número de óbitos maternos é baixo e relacionado a causas inevitáveis 1111. Souza JP. Mortalidade materna e desenvolvimento: a transição obstétrica no Brasil. Rev Bras Ginecol Obstet 2013; 35:533-5., a vigilância da morbidade materna grave é importante para garantia de um ciclo gravídico-puerperal cada vez mais seguro.

Nos moldes propostos 55. Organização Pan-Americana da Saúde. Recomendações para o estabelecimento de um sistema nacional de vigilância da morbidade materna extremamente grave na América Latina e no Caribe. Washington DC: Organização Pan-Americana da Saúde; 2021., cuja sugestão é seguir os padrões da investigação dos óbitos, a vigilância do near miss materno se mostra mais eficiente, dado o seu compartilhamento de fatores associados ao óbito e a possibilidade de aprofundamento sobre semelhanças e diferenças nos entraves ao acesso e manejo das complicações. Além disso, é importante destacar o papel da mulher sobrevivente na reflexão crítica sobre as eventuais causas do agravamento do seu quadro de saúde, bem como o que foi crucial para sua sobrevivência.

O ensaio e a carta às editoras ratificam a necessidade de uma equipe multidisciplinar unir esforços e expertises para o desenvolvimento de protocolos que abarquem a complexidade do país, a fim de apontar novos caminhos para o alcance de metas antigas ainda não atingidas.

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    Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Mortalidade proporcional por grupos de causas em mulheres no Brasil em 2010 e 2019. Brasília: Ministério da Saúde; 2021.
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    Herzog RS, Francisco RPV, Rodrigues AS. Óbitos de gestantes e puérperas. https://repo-prod.prod.sagebase.org/repo/v1/doi/locate?id=syn42902915&type=ENTITY (acessado em 29/Ago/2023).
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    Say L, Souza JP, Pattinson R; WHO Working Group on Maternal Mortality and Morbidity Classifications. Maternal near miss: towards a standard tool for monitoring the quality of maternal health care. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol 2009; 23:287-96.
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    Leitao S, Manning E, Greene RA, Corcoran P; Maternal Morbidity Advisory Group. Maternal morbidity and mortality: an iceberg phenomenon. BJOG 2022; 129:402-11.
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    Organização Pan-Americana da Saúde. Recomendações para o estabelecimento de um sistema nacional de vigilância da morbidade materna extremamente grave na América Latina e no Caribe. Washington DC: Organização Pan-Americana da Saúde; 2021.
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    Ferreira MES, Coutinho RZ, Queiroz BL. Morbimortalidade materna no Brasil e a urgência de um sistema nacional de vigilância do near miss materno. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00013923.
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    Domingues RMSM, Dias MAB, Saraceni V, Pinheiro RS, Paiva NS, Coeli CM. Vigilância da morbidade materna no Brasil: contribuições para o debate. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00151123.
  • 8
    Nakamura-Pereira M, Mendes-Silva W, Dias MAB, Reichenheim ME, Lobato G. Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS): uma avaliação do seu desempenho para a identificação do near miss materno. Cad Saúde Pública 2013; 29:1333-45.
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    Cerqueira DRC, Alves PP, Coelho DSC, Lima AS. Uma análise da base de dados do Sistema de Informação Hospitalar entre 2001 e 2018: dicionário dinâmico, disponibilidade dos dados e aspectos metodológicos para a produção de indicadores sobre violência. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2019.
  • 10
    Secretaria de Estado de Saúde. Linha de cuidado materno infantil. Curitiba: Secretaria de Estado de Saúde; 2022.
  • 11
    Souza JP. Mortalidade materna e desenvolvimento: a transição obstétrica no Brasil. Rev Bras Ginecol Obstet 2013; 35:533-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2023
  • Aceito
    06 Set 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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