Itinerários de cuidado à saúde de mulheres em situações de abortamento: aspectos metodológicos do estudo qualitativo da pesquisa Nascer no Brasil II

Itinerarios para el cuidado de la salud de mujeres en situación de abortamiento: aspectos metodológicos del estudio cualitativo de la encuesta Nacer en Brasil II

Claudia Bonan Ana Paula dos Reis Andreza Pereira Rodrigues Greice Maria de Souza Menezes Cecilia Anne McCallum Nanda Isele Gallas Duarte Ulla Macedo Maiara Damasceno da Silva Santana Débora Cecília Chaves de Oliveira Rosa Maria Soares Madeira Domingues Maria do Carmo Leal Sobre os autores

Resumos

Nas últimas décadas, produziu-se um robusto corpus de pesquisas sobre aborto no Brasil, com diferentes desenhos, objetos e metodologias. Contudo, pela diversidade de situações em que as mulheres brasileiras vivenciam o abortamento, pela complexidade do tema e por suas modulações em contextos políticos e socioculturais distintos, o assunto não cessa de desafiar a academia, o campo da saúde e dos direitos reprodutivos. Neste artigo, apresentamos aspectos metodológicos de um estudo qualitativo sobre itinerários de cuidado à saúde de mulheres em situações de abortamento, componente da pesquisa Nascer no Brasil II, que objetiva discutir efeitos das desigualdades de gênero, de raça/etnia, de classe social, geracionais, regionais e territoriais nesses percursos. Discutimos o desenvolvimento do desenho do estudo; a construção do arcabouço teórico e recortes analíticos específicos; a elaboração do instrumento de entrevista; os critérios de seleção das mulheres; as estratégias de abordagem e condução das entrevistas; a gestão do fluxo do campo e dos materiais produzidos; os procedimentos analíticos; e os problemas éticos. Para incluir uma diversidade de mulheres e aprofundar resultados do componente quantitativo do Nascer no Brasil II, serão realizadas 120 entrevistas narrativas. O contexto de criminalização do aborto impacta a produção de conhecimento sobre o tema, impondo desafios como conseguir acesso às mulheres, assegurar o anonimato e sua privacidade, além do sigilo das informações, gerar condições objetivas e subjetivas para que possam narrar em profundidade as suas experiências. Com este artigo, procuramos contribuir para o debate sobre esses desafios das pesquisas sobre aborto no Brasil.

Palavras-chave:
Aborto; Metodologia; Direitos Reprodutivos; Saúde da Mulher


En las últimas décadas, se produjo un robusto corpus de investigaciones sobre el aborto en Brasil, con diferentes diseños, objetos y metodologías. Sin embargo, debido a la diversidad de situaciones en las que las mujeres brasileñas vivencian el abortamiento, la complejidad del tema y sus modulaciones en diferentes contextos políticos y socioculturales, el tema continúa desafiando a la academia, el campo de la salud y los derechos reproductivos. En este artículo, presentamos aspectos metodológicos de un estudio cualitativo sobre los itinerarios de cuidados de la salud de mujeres en situación de abortamiento, componente de la encuesta Nacer en Brasil II, que tiene como objetivo discutir los efectos de las desigualdades de género, raza/etnia, clase social, generacionales, regionales y territoriales en esos recorridos. Discutimos el desarrollo del diseño del estudio, la construcción del marco teórico y los recortes analíticos específicos, la elaboración del instrumento de entrevista, los criterios de selección de las mujeres, las estrategias de abordaje y realización de las entrevistas, el manejo del flujo del campo y de los materiales producidos, los procedimientos analíticos y los problemas éticos. Para abarcar una diversidad de mujeres y profundizar los resultados del componente cuantitativo de Nacer en Brasil II, se realizarán 120 entrevistas narrativas. El contexto de criminalización del aborto impacta la producción de conocimiento sobre el tema, imponiendo desafíos, tales como conseguir acceso a las mujeres, asegurar su anonimato y privacidad y la confidencialidad de la información, generar condiciones objetivas y subjetivas para que puedan narrar en profundidad sus experiencias. Con este artículo buscamos contribuir al debate sobre estos desafíos de las investigaciones sobre el aborto en Brasil.

Palabras-clave:
Aborto; Metodología; Derechos Reproductivos; Salud de la Mujer


Introdução

No Brasil, o quadro legal do aborto é muito restrito, sendo permitida a interrupção da gestação somente em casos de risco à vida da gestante, gravidez resultante de estupro e anencefalia. Contudo, abortos provocados, muitas vezes realizados em condições inseguras, são comuns. Eles são um componente importante da morbimortalidade materna 11. Cardoso BB, Vieira FMSB, Saraceni V. Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais? Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00188718.,22. Domingues RMSM, Fonseca SC, Leal MC, Aquino EML, Menezes GMS. Aborto inseguro no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00190418. e são apontados como causa de 5% das internações de mulheres em idade reprodutiva por pesquisas 33. Uliana MD, Marin DFD, Silva MB, Giugliani C, Iser BPM. Hospitalization due to abortion in Brazil, 2008-2018: an ecological time-series study. Epidemiol Serv Saúde 2022; 31:e2021341.. Por esse motivo, são considerados um problema de saúde pública. Porém, abortamentos - espontâneos, provocados ou legais - são também um problema de direitos reprodutivos e de justiça social, haja vista o estigma e a discriminação dos quais são alvos, inclusive nos serviços de saúde 44. Adesse L, Jannotti CB, Silva KS, Fonseca VM. Aborto e estigma: uma análise da produção científica sobre a temática. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:3819-32.,55. Menezes GMS, Aquino EML, Fonseca SC, Domingues RMSM. Aborto e saúde no Brasil: desafios para a pesquisa sobre o tema em um contexto de ilegalidade. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00197918.,66. Fonseca SC, Domingues RMSM, Leal MC, Aquino EML, Menezes GMS. Aborto legal no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00189718., e o modo como afetam, em especial, mulheres mais pobres, negras ou da periferia 77. Goes EF, Menezes GMS, Almeida MCC, Araújo TVB, Alves SV, Alves MTSSB, et al. Vulnerabilidade racial e barreiras individuais de mulheres em busca do primeiro atendimento pós-aborto. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00189618..

Contamos com importante acúmulo de pesquisas sobre aborto no país, com diferentes desenhos, metodologias e sujeitos. Estudo de revisão da literatura brasileira sobre o tema, entre 1987 e 2007, levantou 2.109 publicações e identificou 398 produções originais, com dados empíricos sobre o perfil das mulheres que abortam, suas trajetórias abortivas, o aborto na adolescência, complicações e sequelas do aborto provocado, o uso de misoprostol (medicamento para interrupção da gestação), entre outros 88. Departamento de Ciência e tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. (Sério B. Textos Básicos de Saúde).. A revisão também revelou lacunas nessa produção, como escassas pesquisas sobre os abortos espontâneo, legal, por malformação fetal e no setor privado, poucas investigações empíricas fora da Região Sudeste, além da quase ausência de discussão de questões como raça e deficiência. A partir de 2007, a literatura científica sobre aborto se ampliou, como mostram vários estudos 22. Domingues RMSM, Fonseca SC, Leal MC, Aquino EML, Menezes GMS. Aborto inseguro no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00190418.,55. Menezes GMS, Aquino EML, Fonseca SC, Domingues RMSM. Aborto e saúde no Brasil: desafios para a pesquisa sobre o tema em um contexto de ilegalidade. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00197918.,66. Fonseca SC, Domingues RMSM, Leal MC, Aquino EML, Menezes GMS. Aborto legal no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00189718.,77. Goes EF, Menezes GMS, Almeida MCC, Araújo TVB, Alves SV, Alves MTSSB, et al. Vulnerabilidade racial e barreiras individuais de mulheres em busca do primeiro atendimento pós-aborto. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00189618., mas muitas das lacunas apontadas no estudo de revisão 88. Departamento de Ciência e tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. (Sério B. Textos Básicos de Saúde). persistem.

No intuito de contribuir com as pesquisas sobre aborto, em meados de 2019, foi concebido o estudo Cuidado à Saúde de Mulheres em Processo de Abortamento e a (re)Produção da (in)Justiça Reprodutiva no Brasil, como um componente qualitativo do Nascer no Brasil II: Pesquisa Nacional sobre Aborto, Parto e Nascimento (2021 a 2023) (Nascer no Brasil II). Diferentemente da primeira versão dessa pesquisa, o Nascer no Brasil II incluiu entre seus objetivos a avaliação da assistência às mulheres internadas com diagnóstico de aborto, identificando a necessidade de aprofundar conhecimentos sobre como as mulheres vivenciam esses eventos que integram suas vidas reprodutivas e sobre as condições em que se dão as práticas de cuidado e autocuidado nessas situações.

Isso se refletiu no desenvolvimento do questionário aplicado às mulheres internadas em hospitais/maternidades - primeira etapa da pesquisa Nascer no Brasil II -, que inclui questões pertinentes ao aborto, sendo dois blocos dedicados exclusivamente a esses casos. Além disso, o projeto do Nascer no Brasil II incorporou a proposta de estudo qualitativo para analisar experiências e práticas de cuidados à saúde de mulheres com abortamento, a partir de suas próprias perspectivas.

Neste estudo, sob a noção de aborto estão incluídas situações distintas que abarcam, pelo menos, quatro eventos: aborto espontâneo (incluindo mola hidatiforme); aborto provocado; aborto legal (englobando risco à vida da gestante, gravidez resultante de estupro e feto anencéfalo); e gravidez ectópica. Há muitas especificidades médicas, sociológicas e legais em cada uma dessas situações, que condicionam o contexto dos cuidados e que, por si só, merecem ser investigadas. Contudo, é necessário problematizar que, em um país onde o aborto é fortemente criminalizado, estigmatizado e ideologizado, todas as mulheres com abortamento, em alguma medida, estão vulneráveis a maus-tratos, negligência, assédio moral e negação de cuidado e são expostas a riscos à sua segurança, privacidade, saúde e, até mesmo, à sua vida.

Isso não significa que há homogeneidade na distribuição das vulnerabilidades e na exposição a riscos. Além das ameaças inerentes ao aborto realizado em situação de clandestinidade, e mesmo ao aborto legal - tendo em vista a perseguição de grupos conservadores a mulheres e profissionais de saúde, as dificuldades de acesso a esses serviços e o abuso da objeção de consciência por parte dos médicos -, desigualdades de gênero, étnico raciais, de classe social, entre outras, marcam profundamente as experiências das mulheres que espontaneamente perdem uma gravidez ou voluntariamente a interrompem, afetando suas condições de autocuidado e de cuidado nos serviços de saúde, produzindo e reproduzindo injustiças reprodutivas 22. Domingues RMSM, Fonseca SC, Leal MC, Aquino EML, Menezes GMS. Aborto inseguro no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00190418.,55. Menezes GMS, Aquino EML, Fonseca SC, Domingues RMSM. Aborto e saúde no Brasil: desafios para a pesquisa sobre o tema em um contexto de ilegalidade. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00197918.,66. Fonseca SC, Domingues RMSM, Leal MC, Aquino EML, Menezes GMS. Aborto legal no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00189718..

A chave teórica adotada na pesquisa parte da questão dos entrelaçamentos entre práticas de cuidado à saúde de mulheres com abortamento e desigualdades na distribuição da justiça reprodutiva. A noção de justiça reprodutiva tem como premissa que o gozo dos direitos reprodutivos e da autonomia reprodutiva é interditado quando a sexualidade e a reprodução são vividas em situações em que confluem um conjunto de injustiças - econômicas, sociais, políticas -, discriminações e violências - racistas, étnicas, homofóbicas, transfóbicas, sexistas, classistas, entre outras 99. Ross LJ. Reproductive justice as intersectional feminist activism. Souls 2017; 19:286-314.,1010. Roberts D. Reproductive justice, not just rights. Dissent 2015; 62:79-82.. Com essa noção, pretendemos uma abordagem analítica que esclareça as formas interseccionais de opressão que ameaçam os direitos, a integridade corporal e a autonomia de certas coletividades de sujeitos, mais do que de outras.

Com base nas questões acima, desenvolvemos o Estudo Qualitativo sobre Aborto do Nascer no Brasil II, cujo objeto são os itinerários de cuidado à saúde de pessoas em situações de abortamento, com diversas histórias reprodutivas, contextos socioculturais, perfis sociodemográficos, afetivo-sexuais e familiares. Nosso objetivo geral é compreender os efeitos das desigualdades de gênero, de raça/etnia, de classe social, geracionais e regionais nesses percursos de cuidado, com enfoque tanto nas relações estabelecidas com serviços e profissionais de saúde como nas relações com outros sujeitos e coletividades. O estudo produzirá análises originais sobre as experiências de mulheres das cinco regiões do país e hospitalizadas em unidades da rede privada, pública e mista, preenchendo importantes lacunas na literatura acadêmica sobre o tema.

Neste artigo, apresentamos caminhos metodológicos do estudo qualitativo, incluindo aspectos teóricos, analíticos, operacionais e éticos.

Desenvolvimento do desenho do estudo

O desenho do estudo como itinerário de cuidado se inspira na interseção entre métodos de análise de itinerário terapêutico 1111. Alves PCB, Souza IMA. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: Rabelo MCM, Alves PCB, Souza IMA, editors. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999; p. 125-38.,1212. Gerhardt TE. Itinerários terapêuticos em situações de pobreza: diversidade e pluralidade. Cad Saúde Pública 2006; 22:2449-63., história de vida e narrativa 1313. Spink MJP, Gimenes MGG. Práticas discursivas e produção de sentido: apontamentos metodológicos para a análise de discursos sobre a saúde e a doença. Saúde Soc 1994; 3:149-71.,1414. Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G, editors. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Editora Vozes; 2002. p. 90-113.,1515. Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípio para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, editors. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 109-32.. A partir dos relatos das mulheres, obtidos por meio de entrevistas narrativas 1414. Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G, editors. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Editora Vozes; 2002. p. 90-113., procuramos compreender percursos em busca de cuidados terapêuticos, práticas socioculturais de saúde e sentidos dados às experiências vividas, dentro e fora dos serviços de saúde, bem como os contextos e estruturas de desigualdades de poder que as contornam.

O cuidado é uma categoria que enlaça, de uma só vez, prática e valor, trabalho e ética 1616. Hirata H, Guimarães NA. Introdução. In: Hirata H, Guimarães NA, editors. Cuidado e cuidadoras. As várias faces do trabalho do care. São Paulo: Editora Atlas; 2012. p. 1-12.,1717. Molinier P. Ética e trabalho do care. In: Hirata H, Guimarães NA, editors. Cuidado e cuidadoras. As várias faces do trabalho do care. São Paulo: Editora Atlas; 2012. p. 15-28.. A prática-valor do cuidado dá brecha a relações sociais que envolvem pessoas, coletividades e instituições e são produzidas e performadas em contextos históricos específicos, com suas normas e dinâmicas de poder. As relações de cuidado implicam na provisão das melhores condições de segurança, bem-estar, desenvolvimento e integridade física, psicoemocional, moral e material 1818. Enriquez CR. Economia feminista y economia del cuidado. Nueva Sociedad 2015; (256):30-44. para um sujeito, grupos de sujeitos ou coletividades mais amplas. A economia do cuidado 1818. Enriquez CR. Economia feminista y economia del cuidado. Nueva Sociedad 2015; (256):30-44. - organização social da sua produção, distribuição e consumo - responde aos valores preponderantes dos contextos específicos em que se organiza, podendo alicerçar-se em fundamentos comunitários, mercadológicos e/ou democráticos 1919. Guimarães NA. Casa e mercado, amor e trabalho, natureza e profissão: controvérsias sobre o processo de mercantilização do trabalho de cuidado. Cadernos Pagu 2016; (46):59-77.,2020. Sorj B. Políticas sociais, participação comunitária e a desprofissionalização do care. Cadernos Pagu 2016; (46):107-28.,2121. Tronto JC. Assistência democrática e democracias assistenciais. Sociedade e Estado 2007; 22:285-308. e, em sociedades estruturadas por hierarquias de classe, raça e gênero, determina desigualdades sociais.

A partir da análise sobre itinerários de cuidado, o estudo se propõe a investigar as relações de cuidado tecidas no percurso das mulheres com abortamento, problematizando o fato de, em um cenário de criminalização, punições e estigmas, as relações de cuidado serem frágeis, em certas circunstâncias, até mesmo se transformando em seu contrário: negligência, maus-tratos, violência, tortura e morte.

Como um componente da pesquisa Nascer no Brasil II, o Estudo Qualitativo sobre Aborto foi desenhado de modo a se alinhar às questões de investigação e ao protocolo dessa pesquisa central, publicado em Leal et al. 2222. Leal MC, Esteves-Pereira AP, Bittencourt SA, Domingues RMSM, Theme Filha MM, Leite TH, et al. Protocolo do Nascer no Brasil II: Pesquisa Nacional sobre Aborto, Parto e Nascimento. Cad Saúde Pública 2024; 40:e00036223.. Resumidamente, o Nascer no Brasil II é uma pesquisa nacional de base hospitalar com amostra planejada de 22.050 pessoas internadas para parto e, aproximadamente, 2.205 para assistência ao abortamento, em 465 estabelecimentos de saúde com 100 ou mais partos/ano. A amostra foi estratificada por macrorregião do país (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul, Centro-oeste), tipo de hospital (público/misto/privado) e localização (capital e municípios de Região Metropolitana/não Região Metropolitana).

Em cada unidade hospitalar, são consideradas elegíveis puérperas de qualquer idade, que tiveram partos de nascidos vivos ou óbitos fetais ou foram internadas com diagnóstico de abortamento, identificadas em registros hospitalares, sejam mulheres cis ou homens trans. São consideradas não elegíveis mulheres que tiveram parto em outra instituição, em domicílio ou via pública, que não falam português, com deficiência auditiva ou mental grave e aquelas internadas para realização de parto por determinação judicial.

Para todas as participantes do Nascer no Brasil II, na etapa quantitativa, são previstas três entrevistas - além de coleta de informações nos cartões de pré-natal e nos prontuários hospitalares. A primeira é realizada presencialmente, durante a internação hospitalar. Em continuidade, duas entrevistas telefônicas ocorrem aos dois e quatro meses após o parto/aborto, para avaliar a utilização de serviços após a alta, morbidade materna e neonatal tardias, aleitamento, saúde mental e maus-tratos na atenção ao parto e abortamento.

O Estudo Qualitativo sobre Aborto não estabeleceu outros critérios gerais de inclusão e exclusão diversos do inquérito hospitalar. Contudo, a construção de problemas teóricos e perguntas de pesquisa, a serem aprofundadas nessa etapa, implicou na eleição de recortes analíticos específicos e no estabelecimento de critérios para a composição de universos heterogêneos de mulheres com experiências e/ou situações específicas, tendo em comum a experiência de perda fetal/aborto. Até o momento, as pessoas entrevistadas na etapa qualitativa da pesquisa são mulheres cis. Optamos, então, por utilizar, neste artigo, o termo “mulher” ou “mulheres”, atentas, contudo, para a importância de dar visibilidade às diferentes identidades de gênero nas análises e publicações da pesquisa.

A revisão da literatura científica sobre abortamento no Brasil incluiu buscas em bases de dados nacionais e internacionais. Pelas suas especificidades, inicialmente categorizamos as buscas em temas como: aborto espontâneo, provocado e legal. Posteriormente, alinhavando questões que perpassam por toda a literatura consultada, elaboramos as seguintes hipóteses a serem investigadas: (1) em nosso contexto, todas as formas de abortamento, em alguma medida, são alvo de estigmas, julgamentos morais, persecução ideológica e criminal; e (2) vulnerabilidades e riscos das mulheres com abortamento − espontâneo, provocado, legal ou perda fetal por gravidez ectópica − não são distribuídos aleatoriamente, mas reproduzem clivagens dos marcadores sociais das diferenças, como classe, raça, território, geração, entre outros.

Em um primeiro momento, estabelecemos como recortes analíticos as especificidades dos itinerários de cuidado segundo: tipo de abortamento; raça/cor; idade/geração; região do país; residência em grandes centros urbanos ou em cidades interioranas e territórios rurais; e internação no setor público ou privado.

A literatura examinada revelou a carência de estudos sobre itinerários de cuidado em algumas situações específicas, como a experiência de morbidade materna grave ou near miss decorrente de abortamento. Então, esses também foram eleitos como eixo de análise específico. Além disso, o início da elaboração da pesquisa coincidiu com a emergência da pandemia do novo coronavírus e o surgimento de publicações científicas que revelavam seus riscos e consequências para gestantes 2323. Nakamura-Pereira M, Amorim MMR, Pacagnella RDC, Takemoto MLS, Penso FCC, Rezende-Filho JD, et al. COVID-19 and maternal death in Brazil: an invisible tragedy. Rev Bras Ginecol Obstet 2020; 42:445-7., motivando uma análise específica dos itinerários de cuidado das mulheres que relataram COVID-19 durante a gravidez.

O conjunto desses recortes analíticos orienta a seleção de elegíveis no banco de dados do Nascer no Brasil II e a composição de um universo heterogêneo de participantes, atentando para grupos pouco investigados como: adolescentes; indígenas; residentes na região Norte e na área rural; assistidas no setor privado; que tiveram COVID-19 na gestação; com morbidades maternas graves ou near miss em decorrência do aborto; e que informaram abortos provocados, legais ou gravidez ectópica.

A técnica de produção de informações para a análise dos itinerários de cuidado é a entrevista narrativa. Desde a elaboração do projeto, antes do começo da pandemia, foi previsto que as entrevistas qualitativas seriam realizadas por meio telefônico ou digital e gravadas com o consentimento da entrevistada, estratégia que tem se mostrado adequada para a investigação de temas sensíveis como o aborto. Isso nos permitiu contornar as adversidades que a crise sanitária impôs a estudos que envolvem entrevistas face-a-face.

O instrumento-guia para a entrevista qualitativa foi construído segundo alguns critérios. Primeiro, deveria atender às necessidades de uma entrevista narrativa, ou seja, fugir à dinâmica pergunta-resposta e propor temas para motivar a interlocutora a narrar livremente sua história, selecionar e ordenar acontecimentos, ir e vir nos assuntos, contextualizá-los, fazer correlações e dar significados à sua experiência 1414. Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G, editors. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Editora Vozes; 2002. p. 90-113.. Em segundo lugar, mesmo propondo grandes questões comuns a todas as entrevistadas, o instrumento-guia deveria poder ser utilizado de modo flexível para atender aspectos relacionados a cada um dos recortes específicos. Desse modo, esse instrumento-guia foi organizado em quatro blocos: experiência durante a internação hospitalar resultante do aborto; itinerário de cuidado antes da chegada ao hospital; contexto de vida e do engravidamento; síntese dos aspectos mais marcantes na experiência de engravidar e abortar (Material Suplementar - Figura S1: https://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/suppl-e00006223_2992.pdf).

O trabalho de campo teve início em março de 2022 e está previsto para terminar em dezembro de 2023. Na intenção de abarcar uma diversidade de situações e perfis de entrevistadas e reunir material suficiente para discutir os vários recortes analíticos específicos, planeja-se realizar 120 entrevistas no estudo qualitativo.

Estratégias e procedimentos técnicos e operacionais do estudo

Estabelecidos os recortes analíticos e desenvolvido o instrumento de entrevista qualitativa, passamos à constituição do fluxo do trabalho de campo. O processo do estudo qualitativo precisava se ajustar aos tempos e estratégias do estudo quantitativo, que, como vimos, prevê três entrevistas com cada participante: (1) uma primeira, realizada presencialmente, durante a internação hospitalar, com aplicação de questionário estruturado sobre questões sociodemográficas, reprodutivas, obstétricas e clínicas; (2) uma primeira entrevista telefônica, dois meses após o parto ou aborto, com aplicação de questionário que visa estudar a prevalência de morbidade materna e neonatal, uso de serviços de saúde pós-natais, satisfação com o atendimento, sintomas de depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático (telefônica 1); e (3) uma segunda entrevista telefônica, quatro meses após o parto ou aborto, com aplicação de questionário que investiga ocorrência de maus tratos na atenção recebida, satisfação com o atendimento, discriminação no dia a dia e aleitamento materno (telefônica 2). Em conjunto com a equipe da pesquisa Nascer no Brasil II, estabelecemos um intervalo ideal para a realização das entrevistas qualitativas sobre o aborto, preferencialmente entre as entrevistas telefônicas 1 e 2.

Para a operacionalização das entrevistas, organizamos um fluxo e construímos uma planilha, na qual são lançados: códigos das mulheres entrevistadas na etapa hospitalar; informações sobre estado de origem, raça/cor/etnia, zona de residência (urbana/rural), internação setor público/privado/misto; se foi obtido contato e se a pessoa concordou em conceder a entrevista telefônica 1; data mínima e máxima prevista para a entrevista qualitativa; se foi iniciado o contato para entrevista telefônica 2; grupo(s) temático(s) (recortes específicos) em que a entrevistada se enquadra; nome da entrevistadora designada; histórico de contatos e tentativas de agendamento; data da realização da entrevista e da recusa/desistência; controle das transcrições. Um esquema de cores assinala as potenciais entrevistadas ainda não contatadas, contatos em andamento, entrevistas realizadas, recusas ou desistência do contato pela equipe, número de telefone não existente ou pertencente a outra pessoa.

Essa planilha é alimentada, em parte, pelo banco de dados do Nascer no Brasil II, abrigado na plataforma REDCap (https://redcap.fiocruz.br/redcap/), em parte, pelas próprias pesquisadoras do estudo qualitativo, que geram periodicamente relatórios com balanço desse fluxo. Na plataforma REDCap, é disponibilizado um link de acesso às informações geradas pelos questionários aplicados nas fases anteriores, que nos auxiliam na eleição das participantes a serem contatadas e na singularização das entrevistas.

Inicialmente, realizamos um estudo-piloto no qual testamos formas de abordagem, formato das entrevistas e o instrumento-guia, buscando aperfeiçoar e desenvolver técnicas sensíveis à heterogeneidade das participantes. As entrevistas qualitativas são realizadas por ligação telefônica tradicional, por WhatsApp ou aplicativo similar, e, em alguns casos, por videochamada.

Nas primeiras entrevistas, alguns desafios se impuseram: contatos telefônicos inexistentes ou pertencentes a outras pessoas; dificuldades de acesso à internet; falta de privacidade e/ou de tempo livre para conceder uma entrevista mais duradoura, por motivo de trabalho fora de casa, afazeres domésticos e/ou cuidados com filhos. Para driblar barreiras à participação das participantes, buscamos diversificar o repertório de estratégias de abordagens - variando entre mensagens por meio de aplicativos e ligações telefônicas, em horários e dias diferentes - e de agendamento de entrevistas, oferecendo também uma variedade de horários e dias, realizando a entrevista em dois ou três dias diferentes, se necessário; quanto ao formato, caso uma conversa telefônica não fosse possível, realizamos a entrevista por troca de mensagens.

O fato de o Nascer no Brasil II contar com várias etapas exigiu cuidado especial. A fim de lembrar às participantes de que a pesquisa continuava após as entrevistas iniciais, esclarecer as características da entrevista qualitativa e enfatizar a sua importância, elaboramos um texto que embasa o contato inicial por aplicativo de mensagem:

Olá, tudo bem, [participante]? Eu sou [entrevistadora], faço parte da equipe da pesquisa Nascer no Brasil, da qual você aceitou participar lá no [nome do hospital]. Minhas colegas já conversaram com você em fases anteriores - no hospital e por telefone, lembra? Faço parte de uma nova fase da pesquisa, estou entrando em contato agora pra gente conversar mais um pouquinho, mas desta vez eu queria mais ouvir você com suas próprias palavras, uma conversa mais livre. Pra gente é muito importante saber o que você tem a dizer. Pode ser? Aí podemos marcar mais uma ligação quando você puder”.

A proposta de uma conversa mais livre tem encontrado distintas receptividades, ora sendo um trunfo para a pesquisa, pois muitas potenciais participantes desejam falar mais e livremente sobre a experiência do aborto, ora sendo um incômodo, pois algumas delas referem já ter dito “tudo o que tinham para dizer”. É preciso, nesse último caso, compreender se há recusa definitiva à continuidade de participação ou apenas ao formato de conversa livre. Ainda, se ocorre apenas uma indisposição ao que imaginam ser mais um questionário como os outros respondidos, indicando indisponibilidade momentânea ou atitude hesitante em participar da pesquisa. Para esgotar as possibilidades de obter a entrevista, mas de forma respeitosa, as negociações são conduzidas sem pressões e, algumas vezes, por um longo intervalo de tempo. Isso faz com que, em muitos casos, a entrevista qualitativa seja agendada somente após a realização da telefônica 2, mudança que exigiu nova conversa com as equipes do estudo quantitativo para remanejo do fluxo.

O critério de contatar potenciais entrevistadas somente após a primeira entrevista telefônica quantitativa teve, igualmente, que ser flexibilizado, pois para um número importante daquelas que integravam os nossos grupos prioritários, o contato dois meses após a alta hospitalar não havia sido exitoso. Especificamente para essas, foi criado um processo de “repescagem” adicional, que consistiu na realização de novas tentativas de contato, sempre com o cuidado de respeitar a atitude de não querer continuar na pesquisa.

Ausência de respostas aos contatos, hesitações e recusas devem ser também interpretadas como parte constituinte dos desafios das pesquisas sobre aborto no Brasil. Silêncios e segredos em torno da experiência 2424. Motta FM. Sonoro silêncio: por uma história etnográfica do aborto. Revista Estudos Feministas 2008; 16:681-9.,2525. Porto RM. Aborto legal e cultivo ao segredo: dramas, práticas e representações de profissionais de saúde, feministas e agentes sociais no Brasil e em Portugal [Doctoral Dissertation]. Florianópolis: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina; 2009. são expressões de um contexto que articula o peso da proibição legal e dos estigmas e tabus culturais e morais 2626. Scavone L. Políticas feministas do aborto. Revista Estudos Feministas 2008; 16:675-80.. Para minimizar esses problemas, tanto quanto possível, a equipe foi treinada para a construção de um diálogo acolhedor e livre de julgamentos.

Nesse sentido, a linguagem relacionada à experiência do aborto recebeu atenção especial. Entrevistadoras foram orientadas a não antecipar ou pressupor a relação entre aborto e trauma, assim como a se manterem “abertas” ao acolhimento de manifestações de sofrimento em relação ao evento. Essa preocupação é fundamentada em achados de inúmeros estudos que identificaram diversidade, ambivalências ou ambiguidades, polifonia ou consciência multifacetada das narrativas sobre abortamento 2727. Duarte NIG. O Dispositivo da maternidade em tensão: a polifonia das narrativas sobre aborto provocado em uma comunidade online [Master's Thesis]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2019.,2828. Santos DLA, Brito RS. Processo decisório do aborto provocado: vivência de mulheres. Physis (Rio J.) 2014; 24:1293-314.,2929. Gonzaga PRB. Eu quero ter esse direito a escolha: formações discursivas e itinerários abortivos em Salvador [Master's Thesis]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2017.,3030. Ardaillon D. O lugar do íntimo na cidadania de corpo inteiro. Revista Estudos Feministas 1997; 5:376.,3131. Arend SMF, Assis GO, Motta FM, editors. Aborto e contracepção, histórias que ninguém conta. Florianópolis: Insular; 2012.. Por isso, especialmente durante a realização das entrevistas, o respeito a essa multiplicidade de sentidos da experiência com aborto espontâneo ou provocado é construído, também, por técnicas de espelhamento de vocabulário. Entrevistadoras evitam formas de nomear a experiência, em seus aspectos fisiológicos, culturais e emocionais, fazendo uso de palavras já utilizadas pelas entrevistadas.

Finalmente, a experiência no campo aponta que a maior parte das participantes desejam compartilhar suas histórias de gravidez e aborto. As entrevistas frequentemente superam uma hora de duração e, algumas vezes, é necessário mais de um encontro para dar continuidade aos relatos. Os diferentes cenários nos quais estão quando concedem as entrevistas, seja por chamadas telefônicas ou vídeo chamadas, também transparecem durante a conversa: o “som ao redor”, como ruídos de televisão ligada ao fundo, eletrodomésticos, de afazeres laborais, das vozes de filhos e familiares, entre outros. Interrupções das tarefas domésticas e profissionais também se tornam parte da entrevista-conversa. A fim de registrar esses dados, as entrevistadoras são estimuladas a produzir resumos de suas impressões e descrições sobre o contexto da entrevista que são anexados ao material do campo qualitativo.

Com o consentimento oral da participante, áudios das entrevistas são gravados, compartilhados apenas em plataformas seguras e transcritos, com supressão de nomes e outras informações pessoais.

Assim, o fluxo do campo da etapa qualitativa foi consolidado da seguinte forma:

(1) Atualização quinzenal da planilha de elegíveis para entrevista qualitativa, conforme novos casos são registrados no banco de dados do Nascer no Brasil II, de forma codificada e com acesso restrito;

(2) Distribuição dos contatos entre entrevistadoras, conforme critérios de seleção e com marcadores de prioridade temática;

(3) Envio de mensagem inicial padronizada, no caso daquelas que deixaram contato de WhatsApp ou outra mídia social de mensagens, ou ligação telefônica inicial;

(4) Continuidade do contato com diferentes estratégias conforme as respostas (ou ausência delas);

(5) Agendamento da entrevista, registro de recusa ou manutenção de diálogo aberto, quando há indefinição ou ausência de resposta;

(6) Reavaliação dos casos que permanecem “em aberto” por longo período, com troca de entrevistadoras para novas tentativas;

(7) Quando há disposição para entrevista: oferecimento de diferentes formatos para sua realização (vídeo chamada, chamada de áudio, ligação telefônica ou, se nenhuma dessas for possível ou desejada, continuação da entrevista por mensagens), e diferentes horários ou dias de semana. Caso a entrevistadora em contato não tenha disponibilidade, a equipe é acionada para a substituição;

(8) Preparação da entrevista, com releitura do roteiro temático e leitura do questionário respondido pela participante na maternidade; preparação do dispositivo para a realização da chamada e posicionamento de dispositivo para gravação de áudio;

(9) Início da entrevista com reforço da explicação dos objetivos da pesquisa, direitos da participante e pedido de consentimento para gravação do áudio;

(10) Escrita do resumo e das impressões de campo imediatamente após a entrevista;

(11) Armazenamento seguro dos áudios e transcrições com preservação do anonimato;

(12) Reunião de transcrições, resumos e impressões de campo para composição do banco qualitativo para análise.

No que diz respeito às técnicas de análise, são utilizadas combinadamente: análise de narrativa e análise categorial temática. Para Jovchelovitch & Bauer 1414. Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G, editors. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Editora Vozes; 2002. p. 90-113. (p. 91), no ato de narrar “as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma sequência, encontram possíveis explicações para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos que constroem a vida individual e social”. De acordo com esses autores, a estrutura de uma narrativa é composta por um conjunto de acontecimentos acionados pela pessoa que narra, ordenados em uma certa sequência; apresentação do contexto no qual as coisas acontecem e dos atores envolvidos nos eventos narrados; motivações das ações do narrador e dos outros e suas relações e interações; associações causais; julgamentos de valor sobre os acontecimentos e avaliação de seus efeitos ou resultados. Porém, esses componentes são individualizados apenas para fins analíticos, porque a narrativa é um todo que configura um enredo - e é no interior desse enredo que se produz o sentido das experiências narradas.

A análise de conteúdo categorial temática, por sua vez, potencializa a análise da narrativa, pois, segundo Minayo 3232. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 9ª Ed. São Paulo: Hucitec Editora; 2006. (p. 209), visa “descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado”.

Essas matrizes analíticas orientam nosso estudo. Nas histórias contadas sobre o aborto, procuramos identificar os componentes narrativos, analisar as relações de cuidado tecidas no curso dos acontecimentos e interpretar os sentidos que contornam essas experiências.

As etapas do trabalho analítico da equipe se inspiram nas propostas de Bardin 3333. Bardin L. A análise do conteúdo. Metodologia das Ciências Sociais. Lisboa: Edições 70; 2011., como: (1) leituras flutuantes individuais, seguidas de apresentação e discussão coletiva das entrevistas; (2) identificação de temas e categorias das narrativas, sistematização em planilha e discussão dessas categorias temáticas à luz da literatura sobre o tema; e (3) interpretação das experiências narradas, construção de núcleos de sentido e discussão, tendo em vista questões, objetivos e problemas teóricos do estudo.

Parâmetros e cuidados éticos

Como parte integrante da pesquisa Nascer no Brasil II, o estudo qualitativo foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), em 11 de março de 2020 (CAAE 21633519.5.0000.5240), e por comitês locais de ética em pesquisa das instituições participantes ou da diretoria clínica, quando não existiam comitês locais. O estudo segue estritamente as normativas éticas das Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016 da CONEP. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, no caso de adolescentes, é utilizado também o Termo de Assentimento dos Responsáveis Legais na etapa hospitalar da pesquisa.

Os aspectos ético-metodológicos das pesquisas sobre aborto, entretanto, abarcam desafios específicos. Esses são amplamente debatidos no Brasil 55. Menezes GMS, Aquino EML, Fonseca SC, Domingues RMSM. Aborto e saúde no Brasil: desafios para a pesquisa sobre o tema em um contexto de ilegalidade. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00197918. recentemente e envolvem desde dificuldades de acesso seguro a dados e relatos em primeira pessoa, até a proteção dessas informações e garantia do sigilo e anonimato das participantes. Considerando a experiência da equipe do Nascer no Brasil II no campo dos direitos e da justiça reprodutiva, esses desafios se traduziram em compromisso ético-político, mobilizando estratégias e pactos entre as pesquisadoras.

O contato com a potencial entrevistada para o estudo ocorreu ainda no hospital, pela equipe do inquérito hospitalar. Nessa ocasião, são fornecidas informações sobre objetivos, metodologia, riscos e benefícios da pesquisa e, caso aceite em conceder entrevista, a assinatura dos TCLE. Posteriormente, no contato para convite e marcação de entrevista qualitativa, as entrevistadoras apenas fazem menção à internação hospitalar, sem caracterizá-la como aborto, evitando que mensagens sensíveis sejam lidas por terceiros. Nesse momento, reitera-se que a concessão da entrevista é voluntária, que é garantido o anonimato e a confidencialidade, que é autorizada a recusa de resposta a qualquer questão ou desistência de participação.

Áudios e transcrições das entrevistas são armazenados na plataforma REDCap do Nascer no Brasil II, abrigada em servidor da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O acesso à plataforma é restrito à coordenação executiva e todas as entrevistadoras da equipe assinam um termo de responsabilidade, se comprometendo com o anonimato das participantes e o sigilo das informações. Para análise do material e posterior publicação, nomes fictícios serão utilizados e serão descartados descritores que possam identificar as pessoas.

Além da proteção dos dados, do sigilo e do anonimato, um importante cuidado ético nas pesquisas sobre aborto é a constituição da entrevista como um espaço acolhedor para uma partilha livre de julgamentos e estigmas. Essa é uma preocupação metodológica central. Incluímos estratégias de atenção a situações sensíveis como pedidos de socorro, demonstração de sofrimento e identificação de situações de violência. Diante dessas, encaminhamentos são discutidos na coordenação da pesquisa, recorrendo tanto a protocolos estabelecidos pelo Nascer no Brasil II, como informar sobre serviços de saúde mental e acessar dispositivos de proteção à violência e de assistência psicossocial na região da participante.

A equipe de pesquisa: aventuras interdisciplinares e político-acadêmicas

A pesquisa é desenvolvida por uma equipe multidisciplinar, intergeracional e oriunda de duas regiões do país (Nordeste e Sudeste). O estudo foi inicialmente concebido por cinco pesquisadoras com diferentes origens disciplinares (ciências sociais, comunicação, enfermagem e medicina) e experiência acadêmica em saúde reprodutiva e sexual, estudos de gênero e saúde e, em especial, em saúde coletiva. Merece também ser destacada a dimensão político-ativista que aproxima as integrantes da equipe: todas se definem como feministas, antirracistas e engajadas na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos e pelo fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa dimensão se reveste de particular importância, em nossa avaliação, pois se relaciona diretamente ao modo como o objeto da pesquisa é enquadrado e interpretado. Entre 2021 e 2022, a equipe incorporou novas integrantes com formação semelhante à original.

O projeto foi iniciado durante os primeiros meses da pandemia da COVID-19 e seu desenvolvimento tem se dado quase integralmente de forma não presencial. A implementação do estudo estimulou a criação do grupo de pesquisa Gênero, Reprodução e Justiça (RepGen), hoje envolvido em outras investigações científicas.

Considerações finais

Com foco nos itinerários de cuidado à saúde de mulheres em situações de abortamento, participantes da pesquisa Nascer no Brasil II, a metodologia da etapa qualitativa foi desenvolvida de forma a considerar a diversidade de histórias reprodutivas, contextos socioculturais, perfis sociodemográficos e dinâmicas relacionais. A perspectiva de justiça reprodutiva perpassa a construção de todas as estratégias - enfoque teórico, elaboração dos problemas de pesquisa, desenvolvimento do instrumento e procedimentos de construção do campo - e inspira profundamente os aspectos e cuidados éticos adotados. A partir de uma analítica que articula narrativa e conteúdo temático, pretendemos compreender como as experiências de mulheres que perdem uma gravidez, de forma espontânea ou provocada, são marcadas pelas desigualdades de gênero, étnico-raciais, de classe social, geracionais, de territórios existenciais, entre outras, e quais as repercussões desses entrelaçamentos para suas condições de autocuidado e cuidado e para suas vidas.

O contexto de criminalização que cerca o aborto no Brasil, cujos efeitos se estendem mesmo às situações em que a prática é legal ou aos casos de aborto espontâneo, impõe desafios e impacta a produção de conhecimento sobre o tema 55. Menezes GMS, Aquino EML, Fonseca SC, Domingues RMSM. Aborto e saúde no Brasil: desafios para a pesquisa sobre o tema em um contexto de ilegalidade. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00197918.. É particularmente desafiador estimular as mulheres a participarem e falarem sobre experiências de aborto por meio de entrevista telefônica - estratégia relativamente nova no Brasil e oportuna no contexto da crise sanitária da COVID-19. Essa ferramenta de produção dos dados é comum em países do Norte Global, sobretudo para investigação de temas considerados delicados ou sensíveis 3434. Jagannathan R. Relying on surveys to understand abortion behavior: some cautionary evidence. Am J Public Health 2001; 91:1825-31.,3535. Smith LB, Adler NE, Tschann JM. Underreporting sensitive behaviors: the case of young women's willingness to report abortion. Health Psychol 1999; 18:37-43.. Ao evitar a interação presencial entre entrevistada e entrevistadoras, a abordagem telefônica pode favorecer a narrativa sobre eventos estigmatizados ou de difícil declaração, como neste caso. Quanto ao aborto provocado, em particular, não se pode minimizar os impactos da conjuntura política dos últimos anos, adversa a temas como direitos reprodutivos e aborto, no sentido de inibir mulheres a falar sobre suas vivências e publicizá-las para além dos circuitos íntimos com quem compartilharam suas experiências. Outro desafio limitante ao alcance do estudo diz respeito às iniquidades sociais que se expressam também como desigualdades digitais, marcadas pelos diferentes domínios de acesso e habilidades de uso dessas tecnologias de nível individual e macro, que incluem curso de vida, gênero, raça e classe, atividade econômica e capital social 3636. Robinson L, Cotten SR, Ono H, Quan-Haase A, Mesch G, Chen W, et al. Digital inequalities and why they matter. Information, Communication & Society 2015; 18:569-82.. A busca por reduzir essas desigualdades encontra, na abordagem inicial presencial da etapa hospitalar, uma aliada na integração de estratégias analógicas e digitais em direção à diversificação do perfil das participantes. Aspectos metodológicos se entrelaçam, assim, a cuidados éticos, adotados pela equipe da pesquisa, sensibilizada e capacitada para uma escuta respeitosa e sem estigmatização.

A incorporação da avaliação da assistência às mulheres com abortamento à segunda pesquisa Nascer no Brasil, assim como a inclusão de um componente qualitativo voltado a esse grupo, materializa o reconhecimento dos eventos relacionados ao aborto como parte indissociável de uma agenda de políticas públicas que assegurem às mulheres pleno gozo aos direitos sexuais e reprodutivos, enfrentem as desigualdades estruturais no âmbito da vivencia da sexualidade e da reprodução e promovam a construção da justiça reprodutiva.

Referências

  • 1
    Cardoso BB, Vieira FMSB, Saraceni V. Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais? Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00188718.
  • 2
    Domingues RMSM, Fonseca SC, Leal MC, Aquino EML, Menezes GMS. Aborto inseguro no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00190418.
  • 3
    Uliana MD, Marin DFD, Silva MB, Giugliani C, Iser BPM. Hospitalization due to abortion in Brazil, 2008-2018: an ecological time-series study. Epidemiol Serv Saúde 2022; 31:e2021341.
  • 4
    Adesse L, Jannotti CB, Silva KS, Fonseca VM. Aborto e estigma: uma análise da produção científica sobre a temática. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:3819-32.
  • 5
    Menezes GMS, Aquino EML, Fonseca SC, Domingues RMSM. Aborto e saúde no Brasil: desafios para a pesquisa sobre o tema em um contexto de ilegalidade. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00197918.
  • 6
    Fonseca SC, Domingues RMSM, Leal MC, Aquino EML, Menezes GMS. Aborto legal no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00189718.
  • 7
    Goes EF, Menezes GMS, Almeida MCC, Araújo TVB, Alves SV, Alves MTSSB, et al. Vulnerabilidade racial e barreiras individuais de mulheres em busca do primeiro atendimento pós-aborto. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00189618.
  • 8
    Departamento de Ciência e tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. (Sério B. Textos Básicos de Saúde).
  • 9
    Ross LJ. Reproductive justice as intersectional feminist activism. Souls 2017; 19:286-314.
  • 10
    Roberts D. Reproductive justice, not just rights. Dissent 2015; 62:79-82.
  • 11
    Alves PCB, Souza IMA. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: Rabelo MCM, Alves PCB, Souza IMA, editors. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999; p. 125-38.
  • 12
    Gerhardt TE. Itinerários terapêuticos em situações de pobreza: diversidade e pluralidade. Cad Saúde Pública 2006; 22:2449-63.
  • 13
    Spink MJP, Gimenes MGG. Práticas discursivas e produção de sentido: apontamentos metodológicos para a análise de discursos sobre a saúde e a doença. Saúde Soc 1994; 3:149-71.
  • 14
    Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G, editors. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Editora Vozes; 2002. p. 90-113.
  • 15
    Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípio para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, editors. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 109-32.
  • 16
    Hirata H, Guimarães NA. Introdução. In: Hirata H, Guimarães NA, editors. Cuidado e cuidadoras. As várias faces do trabalho do care. São Paulo: Editora Atlas; 2012. p. 1-12.
  • 17
    Molinier P. Ética e trabalho do care. In: Hirata H, Guimarães NA, editors. Cuidado e cuidadoras. As várias faces do trabalho do care. São Paulo: Editora Atlas; 2012. p. 15-28.
  • 18
    Enriquez CR. Economia feminista y economia del cuidado. Nueva Sociedad 2015; (256):30-44.
  • 19
    Guimarães NA. Casa e mercado, amor e trabalho, natureza e profissão: controvérsias sobre o processo de mercantilização do trabalho de cuidado. Cadernos Pagu 2016; (46):59-77.
  • 20
    Sorj B. Políticas sociais, participação comunitária e a desprofissionalização do care. Cadernos Pagu 2016; (46):107-28.
  • 21
    Tronto JC. Assistência democrática e democracias assistenciais. Sociedade e Estado 2007; 22:285-308.
  • 22
    Leal MC, Esteves-Pereira AP, Bittencourt SA, Domingues RMSM, Theme Filha MM, Leite TH, et al. Protocolo do Nascer no Brasil II: Pesquisa Nacional sobre Aborto, Parto e Nascimento. Cad Saúde Pública 2024; 40:e00036223.
  • 23
    Nakamura-Pereira M, Amorim MMR, Pacagnella RDC, Takemoto MLS, Penso FCC, Rezende-Filho JD, et al. COVID-19 and maternal death in Brazil: an invisible tragedy. Rev Bras Ginecol Obstet 2020; 42:445-7.
  • 24
    Motta FM. Sonoro silêncio: por uma história etnográfica do aborto. Revista Estudos Feministas 2008; 16:681-9.
  • 25
    Porto RM. Aborto legal e cultivo ao segredo: dramas, práticas e representações de profissionais de saúde, feministas e agentes sociais no Brasil e em Portugal [Doctoral Dissertation]. Florianópolis: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina; 2009.
  • 26
    Scavone L. Políticas feministas do aborto. Revista Estudos Feministas 2008; 16:675-80.
  • 27
    Duarte NIG. O Dispositivo da maternidade em tensão: a polifonia das narrativas sobre aborto provocado em uma comunidade online [Master's Thesis]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2019.
  • 28
    Santos DLA, Brito RS. Processo decisório do aborto provocado: vivência de mulheres. Physis (Rio J.) 2014; 24:1293-314.
  • 29
    Gonzaga PRB. Eu quero ter esse direito a escolha: formações discursivas e itinerários abortivos em Salvador [Master's Thesis]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2017.
  • 30
    Ardaillon D. O lugar do íntimo na cidadania de corpo inteiro. Revista Estudos Feministas 1997; 5:376.
  • 31
    Arend SMF, Assis GO, Motta FM, editors. Aborto e contracepção, histórias que ninguém conta. Florianópolis: Insular; 2012.
  • 32
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 9ª Ed. São Paulo: Hucitec Editora; 2006.
  • 33
    Bardin L. A análise do conteúdo. Metodologia das Ciências Sociais. Lisboa: Edições 70; 2011.
  • 34
    Jagannathan R. Relying on surveys to understand abortion behavior: some cautionary evidence. Am J Public Health 2001; 91:1825-31.
  • 35
    Smith LB, Adler NE, Tschann JM. Underreporting sensitive behaviors: the case of young women's willingness to report abortion. Health Psychol 1999; 18:37-43.
  • 36
    Robinson L, Cotten SR, Ono H, Quan-Haase A, Mesch G, Chen W, et al. Digital inequalities and why they matter. Information, Communication & Society 2015; 18:569-82.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2023
  • Revisado
    20 Jul 2023
  • Aceito
    06 Out 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br