Humanização na Atenção Básica: a percepção dos trabalhadores de saúde

Humanization in Primary Care: the perception of health workers

Maria Márcia Silva Nogueira Maria Sônia Lima Nogueira Liduina Farias Almeida da Costa Sobre os autores

RESUMO

Este artigo é produto de urna pesquisa de natureza qualitativa, que utilizou a entrevista semiestruturada e a observação participante para a coleta de dados. Os informantes foram delimitados pelo método de amostragem por saturação teórica e os dados analisados através da hermenêutica dialética. Alguns resultados a que chegamos: os trabalhadores têm conhecimento insuficiente das determinações da Política Nacional de Humanização (PNH); suas ações de humanização são pautadas com ênfase no acolhimento, na redução das filas e na diminuição do tempo de espera por consultas. Muitos acreditam que o que mais influencia na realização desse trabalho é o interesse do profissional guiado por seus valores éticos e de formação.

PALAVRAS-CHAVE:
Atenção Primária; Condições de Trabalho; Humanização da Assistência; Profissionais da Saúde; Ambiente de Trabalho

ABSTRACT

This article is the product of a qualitative research, which used semi-structured interviews and participant observation to collect data. The informants were delimited by the method of sampling and theoretical saturation data analyzed using the hermeneutic dialectic. Some results we have reached: the workers have insufficient knowledge of the determinations of the National Policy of Humanization, their actions are guided humanization with emphasis on the reception, reducing lines and decreasing the waiting time for appointments. Many believe that the most influence in making this work is guided by the interests of professional ethics and values training.

KEYWORDS:
Primary Health Care; Working Conditions; Humanization of Assistance; Health Personnel; Working Environment

Introdução

A preocupação com a saúde das pessoas e a adoção de medidas públicas visando o controle sanitário existem desde a antiguidade, de acordo com Paim (2003)11 PAIM, J.S. Políticas de saúde no Brasil. In: ROUQUAYROL, M.Z.; ALMEIDA-FILHO, N. Epidemiologia e saúde. 6. ed. Rio de Janeiro: Médica e Científica, 2003. Capítulo 20, p. 587-602.. O aparecimento da medicina social no século XIX indicava certa relação entre saúde e sociedade; no entanto, somente a partir dos anos 1980, o Estado brasileiro possibilitou a criação de canais de participação do cidadão na formulação e no acompanhamento das políticas de saúde.

A Constituição Federal de 1988 garantiu o direito à saúde para todos os brasileiros e instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), incorporando os princípios e diretrizes do movimento sanitário no capítulo da seguridade social mediante emenda popular (BRAVO, 20066 BRAVO, M.I.S. Política de Saúde no Brasil. In: MOTA, A.E. et al. (Orgs.). Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional 2. Ed. São Paulo: OPAS, OMS, Ministério da Saúde, 2006.).

Ao ser ampliada a concepção de saúde são apontadas necessidades de políticas públicas intersetoriais, assegurando acesso igualitário e universal às ações e serviços, visando à promoção, à proteção e à recuperação da saúde.

Antes de 1988 o atendimento de saúde era oferecido pelo Estado a quem tinha vínculo empregatício e a seus dependentes, O acesso à saúde era entendido como um favor e não como um direito. Com a criação do SUS, surgem alguns princípios básicos de atendimento: universalidade, equidade, integralidade, hierarquização e controle social, assegurados por meio de políticas públicas de saúde (PAIM, 200311 PAIM, J.S. Políticas de saúde no Brasil. In: ROUQUAYROL, M.Z.; ALMEIDA-FILHO, N. Epidemiologia e saúde. 6. ed. Rio de Janeiro: Médica e Científica, 2003. Capítulo 20, p. 587-602.).

O Brasil, desde a promulgação de sua Constituição em 1988, tem enfrentado um longo processo de mudanças com o objetivo de construir um SUS universal, integral e equânime, A implantação, em 1994, do Programa de Saúde da Família (PSF) possibilitou a organização dos sistemas municipais de saúde, viabilizando o cumprimento dos princípios do SUS, O PSF passou a assumir o caráter de estratégia em 2006, com a implantação da Política Nacional da Atenção Básica (PNAB), passando a ser chamado de Estratégia Saúde da Família (ESF) (ANDRADE; BEZERRA; BARRETO, 20081 ANDRADE, L.O.M.; BEZERRA, R.C.; BARRETO, I.C.H.C. Atenção Primária à Saúde e Estratégia Saúde da Família. In: CAMPOS, G.W.S. et al. Tratado de Saúde Coletiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.).

A ESF, localizada na Atenção Primária à Saúde (APS) prioriza as ações de prevenção, promoção e recuperação da saúde das pessoas, de forma integral e contínua, sendo um mecanismo importante para a atenção básica; no entanto, inúmeros são os desafios que se apresentam a fim de que suas ações gerem impactos na realidade do território onde atuam as equipes de Saúde (BRASIL, 20043 BRASIL. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização. Documento Base para Gestores e Trabalhadores do SUS. Ministério da Saúde, Secretaria Executiva, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização, Brasília: Ministério da Saúde, 2004.).

Destacamos, dentre esses desafios, a fragmentação e vertical ização dos processos de trabalho e o despreparo dos trabalhadores para a realização de trabalhos em equipe e para lidar com as dimensões sociais e subjetivas presentes nas práticas de atenção à saúde (BRASIL, 20043 BRASIL. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização. Documento Base para Gestores e Trabalhadores do SUS. Ministério da Saúde, Secretaria Executiva, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização, Brasília: Ministério da Saúde, 2004.).

Os trabalhadores, por sua vez, favorecem a automatização do contato com os usuários, fortalecendo um olhar sobre a doença, fazendo com que não seja estabelecido o vínculo, tão necessário para a efetivação da responsabilidade sanitária que constitui o ato de saúde (BRASIL, 20043 BRASIL. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização. Documento Base para Gestores e Trabalhadores do SUS. Ministério da Saúde, Secretaria Executiva, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização, Brasília: Ministério da Saúde, 2004.).

Conforme Merhy (1998)10 MERHY, E.E. A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde. Uma discussão do modelo assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In: MERHY, E. E. Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte – Reescrevendo o Público. São Paulo: Editora Xamã, 1998., os usuários não reclamam da falta de conhecimento tecnológico, mas da falta de interesse e de responsabilização dos diferentes serviços à sua pessoa e ao seu problema em particular. Quando um usuário procura um serviço de saúde não procura apenas para realização de exames ou de procedimentos que exigem a atuação de máquinas ultramodernas, o que eles buscam são relações de confiança e a certeza de que seu problema vai ser entendido e resolvido.

Por outro lado, os trabalhadores estão insatisfeitos com as condições de trabalho, que envolvem questões salariais, organização dos processos de trabalho, confusão de competências, insuficiência de insumos, estrutura física inadequada dos locais de trabalho, falta de formação permanente e sobrecarga de trabalho.

Para fazer frente a essa problemática, o Ministério da Saúde propôs, em 2004, uma Política Nacional de Humanização da Atenção e da Gestão da Saúde (PNH), visando ofertar atendimento de qualidade articulando os avanços tecnológicos com o acolhimento dos pacientes e com a melhoria dos ambientes de cuidados e das condições de trabalho dos profissionais.

Nesse sentido, a PNH propõe mudanças na qualidade dos serviços prestados pelo SUS, tendo uma maior participação dos cidadãos, sejam eles usuários, trabalhadores ou gestores da saúde.

Tendo por base as discussões a respeito da humanização, lançamos a seguinte questão central: Como os trabalhadores do Centro de Saúde da Família (CSF) compreendem a humanização no atendimento?

A motivação em estudar essa temática surgiu, a princípio, pela relevância desse tema para o avanço e fortalecimento do SUS, pois não é suficiente dizer que os usuários têm direitos, é preciso fazer valer esses direitos e, segundo, pela nossa intervenção como residente de Serviço Social da Residência Multiprofissional no Programa Saúde da Família e Comunidade. A observação de alguns atendimentos realizados pelas equipes que compõem a APS no território do CSF pesquisado nos despertou o desejo de entender como esses trabalhadores compreendem a humanização e de que forma isso tem repercutido na sua intervenção profissional.

Tal inquietação nos levou a elencar os seguintes objetivos: compreender a humanização no atendimento, preconizada pela PNH, do ponto de vista dos trabalhadores da atenção básica; descrever como aconteceu o processo de implantação dessa política nesse CSF; apontar os possíveis entraves e limites desse processo e verificar se, e de que modo, a PNH tem mudado a intervenção profissional dos trabalhadores no CSF. Para tanto, seguimos uma metodologia de base qualitativa, tendo como referência as ideias de Minayo (2006)9 MINAYO, M.C.S. et al. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9. ed. revista e aprimorada. São Pauto: Hucitec, 2006. ao tratar da pesquisa na área da Saúde.

De acordo com a autora, a pesquisa qualitativa contém o método que coaduna melhor ao estudo da história, das relações e das crenças, interpretando como os humanos constroem a si mesmos, a seus artefatos e como sentem e pensam. Propicia, ainda, a construção de novas abordagens, revisão e criação de novos conceitos e categorias durante a investigação, caracterizando-se pela empiria e pela sistematização progressiva de conhecimento até a compreensão da lógica interna do grupo ou do processo em estudo, sendo, portanto, utilizada para a investigação de grupos e segmentos delimitados e focalizados.

Para a coleta de dados, utilizamos a entrevista semiestruturada, gravada com a permissão dos entrevistados, e a observação participante. A escolha deste tipo de entrevista justifica-se devido ao fato de ser um procedimento que permite obter dados objetivos e subjetivos a partir da fala dos sujeitos, por ser formulada com perguntas abertas e fechadas, facilitando que o entrevistado discorra sobre o tema em questão sem se prender a indagações formuladas e orienta a condução das falas para que pesquisadores menos experientes não percam o foco da pesquisa (MINAYO, 19948 MINAYO, M.C.S. et al. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.).

Esse tipo de entrevista permitiu que os entrevistados tivessem liberdade de desenvolver suas ideias, porém foi necessário estabelecer um roteiro de perguntas elaborado e apropriado pelo pesquisador, assegurando que os pressupostos da pesquisa fossem esclarecidos (MINAYO, 19948 MINAYO, M.C.S. et al. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.).

Quanto à técnica de observação participante, foi imprescindível por permitir uma maior aproximação com a situação que foi pesquisada, favorecendo a captação de uma variedade de fenômenos que não seriam obtidos por outros meios, já que a pesquisadora entrou em contato direto com a realidade que pretendia compreender, uma vez que desenvolvia suas atividades de residente na instituição onde foi realizada a pesquisa (MINAYO, 20069 MINAYO, M.C.S. et al. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9. ed. revista e aprimorada. São Pauto: Hucitec, 2006.).

A realidade social, também no campo da saúde, não está dada, mas em processo de construção e é infinitamente mais rica, mais dinâmica, mais complexa, do que qualquer discurso ou teoria escrita sobre ela. Conforme Minayo (2006)9 MINAYO, M.C.S. et al. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9. ed. revista e aprimorada. São Pauto: Hucitec, 2006. há uma série de fenômenos de grande importância que não podem ser registrados por meio de perguntas ou em documentos quantitativos, mas devem ser observados em sua realidade. Assim a pesquisadora, ao participar do cotidiano dos entrevistados, colheu os dados, modificando e sendo modificada por este contexto, numa relação dialética.

No momento das observações do cotidiano dos profissionais na unidade de saúde, o diário de campo foi um instrumento auxiliar de suma importância no registro de informações colhidas, o que fizemos cotidianamente.

O local escolhido para a realização da pesquisa foi um Centro de Saúde da Família, localizado em área de abrangência territorial da Secretaria Executiva Regional III, unidade na qual exercemos nossas atividades enquanto Assistente Social residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade do Município de Fortaleza, Ceará.

O método utilizado na delimitação dos informantes foi a amostragem por saturação teórica em um processo de inclusão gradativa de sujeitos. Assim, iniciamos as entrevistas com sete profissionais do referido centro de saúde, tendo como critério de delimitação do número inicial da amostra a disponibilidade e interesse dos profissionais em participar da pesquisa. Ao darmos por satisfeitas as questões a que a pesquisa se propôs, demos por encerrada a amostra que foi finalizada em 11 sujeitos.

Segundo Fontanella (2008)7 FONTANELLA, B.J.B. et al. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, jan. 2008, p. 17-27., o fechamento amostrai por saturação teórica é definido como a suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, certa redundância ou repetição, não sendo considerado relevante persistir na coleta de dado. O processo de coleta satura quando há a percepção de que os dados novos a serem coletados não mais contribuirão para o adensamento da pesquisa, ou seja, as informações fornecidas pelos novos participantes não mais contribuem significativamente para o aperf eiçoamento da reflexão teórica fundamentada nos dados que estão sendo coletados,

Com relação às questões éticas, afirmamos que a presente pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Associação Cearense de Odontologia (ACO), com parecer favorável ao desenvolvimento da pesquisa, sendo que esta se iniciou após sua aprovação obedecendo aos ditames do Conselho Nacional de Saúde, sob a Resolução 1996/96, que trata da ética em pesquisar seres humanos, de modo que valorizamos a preservação da identidade dos entrevistados garantindo o sigilo de seus nomes, Para a análise dos resultados nos referimos a eles utilizando apenas números que identificam as entrevistas. Esclarecemos aos participantes que as informações por eles fornecidas seriam utilizadas em publicações de acordo com sua permissão no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado em duas vias, tanto pela entrevistadora quanto pelos entrevistados, ficando uma com cada um deles e outra com a pesquisadora.

Ao analisarmos os dados, utilizamos a hermenêutica dialética, segundo lembra Minayo (2006)9 MINAYO, M.C.S. et al. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9. ed. revista e aprimorada. São Pauto: Hucitec, 2006., pelo fato do método reconhecer que os indivíduos ao viverem determinada realidade pertencem a grupos, classes e segmentos diferentes, sendo condicionados pelo momento histórico em que vivem, tendo interesses coletivos que os unem e interesses específicos que os distinguem e os contrapõem.

A referida autora, ao propor essa abordagem, afirma que a mesma possui a maior capacidade de conectar as relações essenciais que não são necessariamente apreendidas através das representações sociais com o valor heurístico dos dados, unindo razão e experiência, categorias analíticas e empíricas, análise e síntese, A hermenêutica realiza o entendimento dos textos, dos fatos históricos, da cotidianidade e da realidade; a dialética, por sua vez, enfatiza o dissenso, a mudança e os macroprocessos. Assim, ambas se complementam sendo consideradas necessárias na produção de racionalidade em relação aos processos sociais e em relação aos processos de saúde e doença.

Neste trabalho discutimos algumas categorias que são centrais para o entendimento de nosso objetivo, a exemplo da atenção primária, processos de trabalho e humanização.

Faz-se necessário deixar claro que o estudo aqui apresentado não contou com financiamento de qualquer instituição de fomento à pesquisa, mas tão somente do Ministério da Saúde ao subsidiar uma bolsa de residente e da própria pesquisadora.

Discutindo atenção primária em saúde, processos de trabalho e humanização

A noção de APS, utilizada nesta pesquisa, vem precedida pelas contribuições de Starfield (2002)15 STARFIELD, B. Atenção Primária à Saúde e a organização de redes regionais de Atenção à Saúde no Brasil. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002. e outros pesquisadores que trazem reflexões sobre a importância da reorganização dos sistemas de atenção à saúde, pautados em APS.

Data de 1920 a divulgação de um texto oficial na Grã-Bretanha, tratando da organização do sistema de serviços de saúde, O objetivo era distinguir três níveis principais, ficando assim delimitados: centro de saúde primário, centro de saúde secundário e hospitais escola, fornecendo posteriormente a base para a reorganização dos serviços de saúde em muitos países.

Essa nova forma de organização dos serviços de saúde teve um grande impacto sobre a importância da atenção primária. Em 1978, foi realizada a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde em Alma Ata, De acordo com o consenso alcançado nesse encontro, a APS foi assim definida: atenção essencial à saúde baseada em tecnologias e métodos práticos, cientificamente comprovados e socialmente aceitáveis. É o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema de saúde, levando a atenção à saúde o mais próximo possível do local onde as pessoas vivem e trabalham, constituindo o primeiro plano de um processo de atenção continuada (STARFIELD, 200215 STARFIELD, B. Atenção Primária à Saúde e a organização de redes regionais de Atenção à Saúde no Brasil. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002.).

Em Alma Ata ficou ainda especificado que os componentes fundamentais da atenção primária à saúde eram: educação em saúde; saneamento ambiental, especialmente de águas e alimentos; programa de saúde materno-infantil, inclusive imunizações e planejamento familiar; prevenção de doenças endêmicas locais; tratamento adequado de doenças e lesões comuns; fornecimento de medicamentos essenciais; promoção de boa nutrição e medicina tradicional,

A APS deveria ser orientada de acordo com os principais problemas sanitários da comunidade e prestar atenção preventiva e curativa, de reabilitação e de promoção da saúde. No entanto, devido ao fato dos territórios refletirem as condições econômicas e os valores sociais dos seus moradores, cada país deveria organizar seus serviços de atenção primária, respeitando suas diferenças locais (ANDRADE; BEZERRA; BARRETO, 20081 ANDRADE, L.O.M.; BEZERRA, R.C.; BARRETO, I.C.H.C. Atenção Primária à Saúde e Estratégia Saúde da Família. In: CAMPOS, G.W.S. et al. Tratado de Saúde Coletiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.).

A atenção primária serve de porta de entrada ao sistema de saúde para todas as novas necessidades e problemas. Sendo a atenção centrada na pessoa e não em sua enfermidade, reconhece os problemas mais comuns da comunidade, formando a base e determinando o trabalho de todos os outros níveis do sistema de saúde, pelo fato de lidar com o contexto no qual a doença existe e influencia a resposta das pessoas a seus problemas de saúde. É essa atenção que organiza e racionaliza o uso de todos os recursos, tanto básicos como especializados, direcionados para a promoção, manutenção e melhoria da saúde (STARFIELD, 200215 STARFIELD, B. Atenção Primária à Saúde e a organização de redes regionais de Atenção à Saúde no Brasil. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002.),

Mesmo com as recomendações internacionais sobre a importância da APS, nem todos os países se organizaram fortalecendo a APS como porta de entrada do serviço de saúde. Starfield (2002)15 STARFIELD, B. Atenção Primária à Saúde e a organização de redes regionais de Atenção à Saúde no Brasil. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002. afirma que as descobertas tecnológicas do século XX têm sido responsáveis por uma tendência à especialização medica, sendo este imperativo mais forte em alguns países que em outros. Conforme o conhecimento se acumula, os profissionais se subespecializam. Assim, observamos a fragmentação com um crescente estreitamento de conhecimentos e competências e um enfoque cada vez maior sobre tipos de enfermidades específicos, em vez de haver uma preocupação com a saúde de uma forma geral das pessoas.

A atenção especializada, conforme lembra Starfield (2002)15 STARFIELD, B. Atenção Primária à Saúde e a organização de redes regionais de Atenção à Saúde no Brasil. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002., exige mais recurso e não garante maximização da saúde, tendo em vista que não basta apenas utilizar tecnologias no controle de doenças, mas sim efetivar a prevenção, a promoção e o conhecimento do contexto no qual a doença ocorre e no qual o paciente vive.

A autora lembra ainda que a atenção especializada, por ser mais cara do que a primária, ameaça os objetivos da equidade, já que é muito improvável que alguma sociedade possua recursos ilimitados para fornecer serviços de saúde a toda a sua população. Desse modo, torna-se menos acessível para os indivíduos com menos recursos financeiros.

O Brasil, desde a promulgação de sua Constituição em 1988, tem enfrentado um longo processo de mudanças com o objetivo de construir um SUS universal, integral e equânime. A implantação, em 1994, da ESF possibilitou a organização dos sistemas municipais de saúde, viabilizando o cumprimento dos princípios do SUS.

O aumento da cobertura da ESF tem mostrado que a forma brasileira de organização do sistema de saúde a partir da atenção básica possui características similares ao que é proposto pela organização dos serviços baseada em APS, destacando-se algumas particularidades como a riqueza do trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde, o trabalho multiprofissional desempenhado pelas equipes, o vínculo estabelecido pelas equipes, os usuários e o território, e o estímulo à participação comunitária (STARFIELD, 200215 STARFIELD, B. Atenção Primária à Saúde e a organização de redes regionais de Atenção à Saúde no Brasil. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002.).

A história de criação e de consolidação do SUS é de muita luta e resistência. Nos primeiros anos de sua criação a palavra de ordem era acesso, como fazer para ter acesso aos serviços de saúde. Depois a discussão era para ampliar o financiamento, privilegiando a atenção básica, a palavra de ordem foi qualidade. Atualmente sabemos que a saúde se faz com pessoas e entre pessoas, mediada pelas descobertas tecnológicas e pela sabedoria popular. Assim, o SUS precisa rever suas práticas políticas, sua forma de organização dos sistemas, incrementando a democracia participativa e o controle social, a palavra de ordem agora é humanizar o atendimento (SAMPAIO, 200513 SAMPAIO, J.J.C. Humanização em Saúde: um problema prático, uma utopia necessária. In: Fortaleza Humaniza SUS. Curso de extensão universitária. Fortaleza: Caderno de Textos, 2005. v. 01.).

O Brasil parece ter encontrado seu rumo na organização do seu sistema de saúde, no entanto inúmeros são os desafios que se colocam para que a ESF venha de fato a se consolidar como um modelo de APS, cumprido as determinações e os princípios do SUS, Um desses desafios se apresenta como a capacidade de oferecer atendimento de qualidade aos usuários que procuram a atenção básica.

Segundo Merhy (1998)10 MERHY, E.E. A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde. Uma discussão do modelo assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In: MERHY, E. E. Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte – Reescrevendo o Público. São Paulo: Editora Xamã, 1998., esse desafio tem a ver com a crise no atual modo de organização do sistema de saúde, entretanto essa crise não encontra sua base de sustentação na falta de conhecimento tecnológico sobre os principais problemas de saúde ou mesmo na possibilidade material de atuação diante dos problemas apresentados pela população.

Sob o ponto de vista da gestão em saúde, a crise é da ordem de financiamento, os trabalhadores reclamam do processo de trabalho e os usuários estão insatisfeitos com a forma de tratamento que recebem dos profissionais de saúde. Nesse sentido, a crise se configura nas relações sociais entre trabalhadores, usuários e gestores. Para compreendermos melhor esta questão, faz-se necessário entendermos as mudanças no processo de trabalho dos profissionais dessa área.

De acordo com Santos e Rigotto (2009)12 SANTOS, A.L.; RIGOTTO, R.M, Territórioeprocessosdeterritorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na Atenção Básica. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2009,, com a modernidade tecnológica temos a expansão da informática e da microeletrônica revolucionando os conceitos de tempo e distância, a comunicação, a produção e os nossos modos de vida. A população mundial cresceu, a maioria é mais bem alimentada, tem mais longevidade e muito mais anos de estudos. Alguns problemas de saúde desapareceram ou são enfrentados de forma mais eficazes com a descoberta de novos tratamentos e medicamentos, todavia existem problemas fundamentais da humanidade, que não podem ser resolvidos com a centralização na racionalidade, na técnica e na ciência.

Neste cenário de modernização, surgem mudanças profundas na vida social e nos processos de trabalho, o que vem sendo estudado como reestruturação produtiva ou nova ordem econômica mundial. A Reestruturação Produtiva rompe com a hegemonia do Estado e o sistema capitalista de bem-estar social do pós-guerra, afetando o interior do processo produtivo, a divisão social e o mercado de trabalho, o papel dos sindicatos e as negociações coletivas (SANTOS; RIGOTTO, 200912 SANTOS, A.L.; RIGOTTO, R.M, Territórioeprocessosdeterritorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na Atenção Básica. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2009,; ANTUNES, 19992 ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre afirmação e negação do trabalho. São Paulo: Bom tempo, 1999.).

Santos e Rigotto (2009)12 SANTOS, A.L.; RIGOTTO, R.M, Territórioeprocessosdeterritorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na Atenção Básica. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2009, afirma ainda que as novas tecnologias e as novas formas de organizar o trabalho acarretam exigências de um novo perfil do trabalhador. O conhecimento não é capaz, sozinho, de atender as demandas do mercado, sendo necessária qualificação permanente e polivalência na execução das ações.

Todas essas mudanças interferem na qualidade dos serviços prestados pelos trabalhadores em todos os setores, Na saúde isso não é diferente, pelo contrário, é intensificado o desgaste do trabalhador, já que nesse âmbito o trabalhador lida com o limite humano e com sua própria impotência (SANTOS-FILHO; BARROS, 200714 SANTOS-FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B. de. Trabalhador da saúde. muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. São Paulo: Editora Unijuí, 2007.).

Os profissionais reclamam das condições de trabalho, da sobrecarga, dos baixos salários, da insuficiência de insumos, da falta de autonomia e da instabilidade. Enfim, estão insatisfeitos e muitos acabam repassando toda a carga negativa do seu desprazer para o atendimento de forma incorreta e, às vezes, até ‘desumana’ aos usuários que demandam de suas intervenções (SANTOS-FILHO; BARROS, 200714 SANTOS-FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B. de. Trabalhador da saúde. muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. São Paulo: Editora Unijuí, 2007.).

Um processo de trabalho pautado em tais características produz um atendimento para a grande maioria dos usuários de forma automatizada, fortalecendo o olhar sobre a doença, não favorecendo a efetivação do vínculo que permite a responsabilização sanitária que constitui o ato de saúde. Os usuários reclamam e se sentem sozinhos, pois não há, muitas das vezes, onde possam reclamar, já que o controle social ainda é algo fragilizado e não tem conseguido fazer os enf rentamentos necessários para as mais diversas situações apresentadas pelos trabalhadores, usuários e gestores de saúde (BRASIL, 20043 BRASIL. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização. Documento Base para Gestores e Trabalhadores do SUS. Ministério da Saúde, Secretaria Executiva, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização, Brasília: Ministério da Saúde, 2004.).

Nesse sentido, com a implantação da PNH o Ministério da Saúde reconhece a necessidade de mudanças no modelo de gestão e atenção do SUS. Essa política tem sido apresentada como uma das formas para promover mudanças efetivas nos modelos de gestão do SUS com o objetivo de viabilizar uma saúde digna para todos, com profissionais comprometidos com a ética da saúde e com a defesa da vida.

Na prática, essas mudanças consistem em superar as iniquidades no acesso e melhorar a qualidade das ações tomando por referencia valores éticos humanitários, sobretudo a garantia do direito inalienável à saúde que pode ser traduzido, entre outros, como garantia de acesso universal e equitativo a essas práticas e ações integrais.

Assim, a PNH foi proposta como uma política transversal, promovendo mudanças de ações nos diversos serviços, nas práticas de saúde e nas instâncias do sistema, devendo traduzir princípios e modos de operar no conjunto das relações entre profissionais e usuários, entre as diversas unidades e serviços de saúde que constituem o SUS.

Processos de trabalho e humanização na ESF: o que pensam os profissionais

A PNH é uma estratégia de enfrentamento dos desafios postos aos profissionais, que é tornar os princípios do SUS uma realidade no cotidiano da população.

Assim, o Ministério da Saúde elaborou, em 2004, uma política na qual a Humanização e entendida como um instrumento de mudanças nos modelos de atenção e gestão, tendo como valores centrais as necessidades dos cidadãos, a produção de saúde e o próprio processo do trabalho, valorizando os trabalhadores e as relações sociais estabelecidas.

Mas será que os profissionais têm esse entendimento? Como será que eles, os executores dessa política, compreendem a proposta da PNH? Foi com esses questionamentos que nos lançamos às análises das informações colhidas nas falas dos onze entrevistados.

Esses profissionais possuem formas diversificadas de contratação trabalhista, o que, hipoteticamente, supomos ter uma relação com a fragilidade dos vínculos com a comunidade. Alguns são servidores públicos concursados, outros terceirizados com carteira de trabalho assinada e outros com vínculos mais fragilizados, que são os contratados em cargos comissionados ou ditos de confiança. Neste último caso a fragilidade se estabelece na medida em que tal contrato se dá a partir de um vínculo político partidário, que, ao mudar a conjuntura política, o contrato expira, não havendo, portanto, como firmar vínculo com os usuários com relações de contratação tão fragilizadas.

Quanto ao conhecimento da PNH, os entrevistados informaram não ter muita familiaridade teórica com o assunto, haja vista na prática profissional não utilizarem muitos dos seus termos.

Diante disso, conduzimos as entrevistas de modo a deixar os entrevistados à vontade para relatarem suas ações práticas, sem se prenderem a terminologias, Com isso, pretendíamos nos aproximar o máximo possível de suas realidades sem pré-julgamentos, favorecendo a apresentação da realidade dos fatos.

A implantação da política na unidade onde desenvolvemos a pesquisa ocorreu de forma fragmentada, apenas alguns trabalhadores realizaram um momento de sensibilização sobre a PNH, porém não há formação continuada. Esse assunto é abordado como ponto de pauta nas reuniões com a coordenação do CSF, sempre em forma de cobranças, objetivando reduzir o nível de insatisfação dos usuários e evitar reclamações. A palavra de ordem é humanizar o atendimento, todavia muitas vezes não é informado em que aspecto, quais as diretrizes que a orientam, ou mesmo qual o significado dessa humanização.

Ao serem perguntados sobre a PNH, a maioria dos profissionais relatou logo sobre a humanização no atendimento e, de pronto, mencionaram o acolhimento como a principal ferramenta dessa política. Assim se expressou um dos entrevistados:

Eu entendo, porém, nunca estudei sobre, mas acredito que a PNH é a mudança no atendimento, que inclui os princípios do SUS, que não veja o paciente só como doença, é preciso que haja acolhimento, respeito, eu acho que é isso (Entrevista 10).

Lembramos que a proposta trazida pela PNH sobre acolhimento está alem de ser um espaço ou um local, na verdade, exige uma postura ética e não pressupõe hora ou profissional específico para fazê-lo. Dessa forma, diferencia-se assim da triagem, pois o acolhimento não se constitui como uma etapa do processo, mas como ação que deve ocorrer em todos os locais e momentos do serviço de saúde.

De acordo com o princípio da universalidade, o indivíduo que chega a qualquer serviço público deve ser atendido. Esse atendimento deve se dar de acordo com as necessidades de saúde que o indivíduo apresenta, respeitando o princípio da equidade, A população tem direito a ser acolhida ao procurar os serviços de saúde porque está exercendo um direito constitucional (SAMPAIO, 200513 SAMPAIO, J.J.C. Humanização em Saúde: um problema prático, uma utopia necessária. In: Fortaleza Humaniza SUS. Curso de extensão universitária. Fortaleza: Caderno de Textos, 2005. v. 01.).

O Acolhimento preconizado pela Política caracteriza-se como um processo que implica responsabilização do trabalhador ou equipe de saúde pelo usuário, desde sua chegada até sua saída, Fazendo uso de uma escuta qualificada, garantindo atenção integral, resolutiva e responsável, por meio da articulação das redes internas e externas dos serviços, visando à continuidade da assistência quando necessária.

Ressaltamos que a PNH tem sido apresentada pelos órgãos oficiais do governo como uma das formas para promover mudanças efetivas nos modelos de gestão do SUS, entendendo humanização como a valorização dos diferentes sujeitos — usuários, trabalhadores e gestores — implicados no processo de produção de saúde, ampliando suas capacidades de transformar a realidade em que vivem, através da responsabilidade compartilhada, da criação de vínculos solidários, da participação coletiva nos processos de gestão e de produção de saúde (BRASIL, 20043 BRASIL. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização. Documento Base para Gestores e Trabalhadores do SUS. Ministério da Saúde, Secretaria Executiva, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização, Brasília: Ministério da Saúde, 2004.).

Nesse sentido, quando indagamos sobre as implicações trazidas pela PNH para atuação profissional, todos afirmaram que ela existe, divergindo quanto ao fato de ser positiva ou negativa. Alguns afirmaram que atualmente há uma cobrança da gestão e dos usuários para que a humanização aconteça em todos os atendimentos; no entanto, os trabalhadores não percebem mudanças significativas nos seus processos de trabalho, sendo essa questão unânime entre os entrevistados. Conforme relata esse entrevistado:

Não há compromisso da gestão municipal em melhorar as condições de trabalho, em melhorar a infraestrutura física, no fornecimento de insumos que atendam as necessidades básicas. Falta de papel toalha a medicamentos (Entrevista 5).

Outros afirmaram que as cobranças não estão em consonância com as condições de trabalho oferecidas, acarretando desestímulo e estresse para o trabalhador como observamos em seu relato:

Para nós não houve mudanças positivas com essa política, pois nós somos muito mais cobrados pelos pacientes e pela gestão, que só cobra e não lhe dá condições de trabalho. Veja bem, não há reconhecimento profissional, não há melhorias salariais e não há espaço físico adequado (Entrevista 4).

Ainda sobre essa questão é importante frisar que muitos trabalhadores procuram prestar um bom atendimento por receio que haja reclamações sobre suas intervenções e não por que estão sensibilizados em prestar atendimento com qualidade pautado nas diretrizes da PNH. Então, vejamos essa fala:

Hoje o usuário pode reclamar e até denunciar caso não seja bem atendido, isso serve para que muitos profissionais policiem suas ações, por outro lado, isso ê muito triste, saber que muitas pessoas precisam desse tipo de estímulo para realizar seu trabalho de forma humanizada [...] se a coordenação deixar um pouquinho aberto, aí o negócio cai, então tem que ficar o tempo todo atento (Entrevista 7).

Destacamos, todavia, o fato de ter ficado evidente nas falas que as condições do processo de trabalho influenciam muito para a realização de um atendimento humanizado, entretanto a maioria também acredita que o essencial é o interesse profissional, é ele fazer o que gosta e saber se colocar no lugar do outro, como assevera esse entrevistado:

Eu acho que não depende da quantidade de salas, ou do quanto você ganha, às vezes você chega em uma casa bem pobrezinha e é tão bem atendido e às vezes chega em uma casa rica e nem é bem recebido [...] quando você vai para uma profissão dessa lidar com a vida humana, e não faz o que gosta, só quem sofie é o paciente mesmo (Entrevista 8).

De acordo com Sucupira (2005)16 SUCUPIRA, A.C. O Acolhimento como expressão do direito à saúde. In: Fortaleza Humaniza SUS. Curso de extensão universitária. Fortaleza: Caderno de Textos, 2005. v. 01., a satisfação dos usuários está de certo modo na dependência da satisfação dos profissionais no exercício do seu trabalho. Desse modo é importante ouví-los nas suas necessidades e desejos, observando a relação dialética entre direitos e deveres.

Nesse sentido, vale ressaltar que as mudanças advindas com a nova ordem econômica também é responsável pela flexibilização das relações de trabalho e pelo retrocesso dos direitos trabalhistas conquistados, como as formas de contratação e a jornada de trabalho (SANTOS; RIGOTTO, 200912 SANTOS, A.L.; RIGOTTO, R.M, Territórioeprocessosdeterritorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na Atenção Básica. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2009,). Cresce o número de trabalhadores terceirizados, que estão expostos a riscos ocupacionais mais relacionados à carga mental e psíquica. As relações de trabalho se tornaram mais competitivas, mais individualistas, o que fragiliza as lutas trabalhistas e traz maior dificuldade para a ação coletiva e sindical.

O trabalho na saúde não está descontextualizado do resto do mundo, o desenvolvimento dos processos produtivos, no atual estágio do capitalismo global, vem gerando desemprego e desvalorização do trabalho.

De acordo com Santos-Filho e Barros (2007)14 SANTOS-FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B. de. Trabalhador da saúde. muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. São Paulo: Editora Unijuí, 2007., a satisfação do profissional é um conceito complexo estando relacionada a inúmeros fatores, tais como: expectativas, valores, problemas encontrados, poder de resolubilidade, comprometimento e compromisso, salário, segurança no emprego e, em decorrência desses fatores, a satisfação pode ter várias percepções.

É preciso considerar, de acordo com Sucupira (2005)16 SUCUPIRA, A.C. O Acolhimento como expressão do direito à saúde. In: Fortaleza Humaniza SUS. Curso de extensão universitária. Fortaleza: Caderno de Textos, 2005. v. 01., que a realidade atual dos serviços de saúde contribui para a desumanização na relação entre os profissionais e os usuários. Não se deve simplesmente culpabilizar os trabalhadores pelo tipo de atendimento que realizam. A rotina de trabalho vai muitas vezes impedindo que muitos consigam enxergar as situações inadequadas. Por outro lado, não se pode permitir que todas essas questões continuem servindo de desculpas para a realização de um ‘mau atendimento. Nesse sentido, a PNH propõe mudanças no modelo técnico assistencial, na estrutura organizacional dos serviços e nas relações entre os profissionais e destes com a população.

Quanto às mudanças proporcionadas pela PNH em benefício dos usuários todos os entrevistados reconhecem ter havido melhorias. A fala de um entrevistado expressa essa melhoria: “Hoje o usuário chega aqui, ele tem que ser acolhido, tem que ser ouvido desde a entrada na recepção até a saída pela farmácia” (Entrevista 10).

A implantação da humanização, sobretudo com o acolhimento, acarretou ganhos significativos para os usuários que podem ser facilmente visualizados na unidade de saúde, valendo destacar a melhoria da comunicação que o usuário tem com a equipe profissional, a facilidade de acesso à gestão local, o reconhecimento do atendimento como direito, a ausência das filas que perdurava de um dia para o outro para marcação de consultas e a diminuição do tempo de espera, essa outra fala evidencia isso:

Eu acho que os ganhos são enormes, porque no momento em que eu me sensibilizo com a situação do paciente, eu eu tento resolver o máximo possível (Entrevista 8).

Quando indagados sobre as diretrizes da PNH, os entrevistados não souberam informar quais eram as preconizadas pela política, por isso não sabiam informar se as mesmas eram importantes para a sua intervenção profissional.

Com relação às dificuldades de efetivação da Política na Unidade de Saúde, eles apontaram à falta de ambiencia, a infraestrutura física como o principal fator somado às fragilidades dos processos de trabalho, a insuficiência de insumos e de recursos humanos e ao fato de alguns trabalhadores ainda não estarem sensibilizados para a prática da humanização. Sobre essa questão eis o relato de um entrevistado:

É preciso identificar os funcionários que não conseguem aderir às orientações e está o tempo todo sensibilizando, treinando, aí a gestão precisa ter um olhar crítico e identificar aqueles que precisam ser melhor trabalhados, não é que não precise sensibilizar todos, mas existem alguns que precisam ser melhor trabalhados. É preciso melhorar o espaço fisico, pois essa unidade não atende às exigências de ambiência; não há salas adequadas que garantam sigilo e privacidade; existe muito barulho. Eu não vejo vontade da gestão em resolver, projetos são feitos, mas nada concretizado. A gestão já perdeu a credibilidade, enquanto trabalhador a gente faz com o que pode, mas isso é angustiante, você se sente desvalorizado, É preciso melhorar os insumos, falta maca, até papel toalha (Entrevista 5).

A PNH conceitua ambiência como ambiente físico, social, profissional e de relações interpessoais que deve estar relacionado a um projeto de saúde voltado para a atenção acolhedora, resolutiva e humana, Nos serviços de saúde, a ambiência é marcada tanto pelas tecnologias médicas, quanto por outros componentes estéticos ou sensíveis apreendidos pelo olhar, pelo olfato e pela audição, por exemplo: a luminosidade, os ruídos do ambiente, a temperatura, etc.

O conceito de ambiência preconizado por essa política apresenta três eixos: espaço que visa conforto focado na privacidade e individualidade dos sujeitos envolvidos; espaço que possibilita encontro de sujeitos; espaço usado como ferramenta facilitadora do processo de trabalho, favorecendo a otimização de recursos, o atendimento humanizado acolhedor e resoíutivo (BRASIL, 20085 BRASIL.Ministério da Saúde. Portaria GM n° 154, de 24 de Janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio á Saúde da Família NASF. Diário Oficial da República Federativa do Brasil Poder Executivo, Brasília, DF, 04 de Março 2008, S.1, n.43.),

De modo geral, os trabalhadores expressaram um entendimento de que a Unidade de Saúde tem conseguido atender alguns aspectos da PNH. Conforme seus próprios relatos, se comparado a outros centros de saúde do município, porém, acreditam que muito ainda precisa ser feito para que a humanização seja vista como um direito do usuário e não apenas como uma obrigação do trabalhador ou uma determinação governamental.

Esse posto atende as exigências com certeza, nós sentimos isso em cada visita, eu faço questão de perguntar como foi cada consulta, como foi o atendimento, se a pessoa ficou com dúvida, se posso ajudar em algum encaminhamento. O que eu escuto é: olha o atendimento foi bom, foi esclarecedor, quando eu cheguei ao posto não sabia para onde ir, mas logo veio uma moça e perguntou “posso ajudar?” E falou “olha o Senhor se dirija para aquela sala, aqui você vai resolver, vamos que eu vou com você [...]” lógico que tem muita coisa para ser melhorada, mas que aqui as pessoas são bem atendidas são, diferente de outros postos de saúde aqui mesmo perto do nosso bairro (Entrevista 8),

Para a PNH, humanizar o atendimento significa valorizar os diferentes sujeitos implicados no processo de produção da saúde (usuários, trabalhadores e gestores), incluindo valores como autonomia e protagonismos dos sujeitos, corresponsabilidade, estabelecimento de vínculos solidários e participação coletiva no processo de gestão.

De acordo com Sucupira (2005)16 SUCUPIRA, A.C. O Acolhimento como expressão do direito à saúde. In: Fortaleza Humaniza SUS. Curso de extensão universitária. Fortaleza: Caderno de Textos, 2005. v. 01., pequenos detalhes fazem a diferença e interferem significativamente no acolhimento do usuário: o modo como a unidade se organiza para recebê-lo, desde a recepção até os trajetos no seu interior, as filas para a realização dos procedimentos, ou a ausência de um lugar confortável para essa espera e o direito a privacidade no momento do atendimento.

Ressaltamos, todavia, a fragilidade da importância dada a realização das atividades coletivas, da ampliação da clínica para além da epidemiologia da doença, da relevância de outros saberes profissionais e do fortalecimento da equipe de saúde com seu território de abrangência. Isso ficou evidenciado nas falas dos entrevistados, como também, através da observação participante.

Enfatizamos o fato de que, apesar de muitos afirmarem que a humanização está relacionada com a postura profissional que inclui seus valores éticos e os de sua formação profissional, esteve implícito nas falas e também pôde ser sentido na observação da pesquisadora, que o processo de trabalho interfere mais do que é relatado, fato que é comentado em quase todas as entrevistas, mesmo que não houvesse um interesse da pesquisa em aprofundá-lo, haja vista nosso interesse de desvelar a compreensão dos profissionais sobre a política de humanização focando nas mudanças trazidas para o atendimento com o usuário.

Considerações finais

No momento em que destacamos a importância da PNH como uma ferramenta de superação das iniquidades no acesso e melhoria da qualidade das ações da saúde, observamos na prática que é urgente reconhecer os direitos dos usuários a esses serviços, explicitando as reais condições em que se dão os processos de trabalho e o papel central dos profissionais de saúde na interface entre técnica, ética e política. Nesse sentido, é necessário questionar se esses trabalhadores estão em condições de garantir um cuidado orientado pela perspectiva política crítica da PNH.

Do ponto de vista da PNH, a problemática caracterizada como desumanização que se configura nas situações de filas, insensibilidade dos trabalhadores frente ao sofrimento das pessoas, os tratamentos desrespeitosos, o isolamento das pessoas de suas redes sociofamiliares nos procedimentos, consultas e internações, as práticas de gestão autoritária, as deficiências nas condições concretas de trabalho, incluindo a degradação nos ambientes e nas relações de trabalho, derivam de condições precárias da organização de processos de trabalho, A PNH compreende que esses fenômenos, genericamente apontados como desumanização, expressam mais que falhas éticas individuais de um ou outro trabalhador ou gestor, corresponde a acontecimentos cuja origem não está no fato em si, que apenas revela e expressa determinadas concepções de trabalho e de suas formas de organização (BRASIL, 20104 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção/ Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.).

Observamos, com a conclusão deste artigo, que existem muitas dificuldades para a efetivação da PNH no CSF pesquisado, das quais se destacam: a fragilidade dos vínculos estabelecidos entre as equipes da ESF e os usuários por elas referenciados; o processo de trabalho ao qual estão submetidos seus trabalhadores; a ausência de educação permanente, sobretudo quanto aos conhecimentos da PNH; e a precária infraestrutura física dos locais de atendimentos.

Por outro lado, destacamos que, apesar das dificuldades de implementação da PNH, muitas são as mudanças positivas em benefício dos usuários que procuram o referido CSF, a saber: implantação do acolhimento; reconhecimento por parte dos trabalhadores que a saúde é um direito do usuário; ausência das filas no turno da noite; diminuição no tempo de espera por uma consulta e facilitação do acesso aos serviços ofertados pela unidade de saúde e, em consequência, aos serviços ofertados pelo Sistema de Saúde especializado.

Nesse sentido, acreditamos que é necessário ampliar o diálogo entre os profissionais, a população e a gestão municipal, com o intuito de promover de fato uma gestão mais participativa em que todos reconheçam seus direitos e exerçam seus deveres de forma consciente e equânime. Somente através de vontade política e organização social a humanização no atendimento deixará de ser uma utopia e poderá ser de fato reconhecida como uma política que transversaliza as diferentes ações e instâncias gestoras do SUS, implicando na construção de trocas solidárias e comprometidas com a dupla tarefa de produção de saúde e produção de sujeitos.

Em suma, entendemos que, para que o SUS possa dar as respostas para as quais ele foi criado, fazse urgente o reconhecimento do que se tem de mais rico em todo esse processo; a valorização do humano e tudo o que a ele se relaciona, pois de nada adiantará inventar novas tecnologia ou estratégias se não compreendermos que o maior investimento deve ser feito nas pessoas envolvidas.

  • Suporte financeiro: Ministério da Saúde

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2012

Histórico

  • Recebido
    Jul 2011
  • Aceito
    Mar 2012
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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