Estudo sobre o processo de medicalização de crianças no campo da saúde mental

Study about the children's medicalization process on mental health area

Valéria Nogueira Leal Sanches Paulo Duarte de Carvalho Amarante Sobre os autores

Resumos

O presente artigo demonstra o resultado final de uma pesquisa que visou aproximar-se de um serviço de saúde e analisar os fatores que contribuem para a medicalização infantil em saúde mental, buscando compreender como questões inerentes ao cotidiano da vida de uma criança se tornam problemas médicos. Para tanto, foram analisados os prontuários de crianças atendidas pelo serviço durante o ano de 2008, destacando: demandas iniciais, presença de diagnóstico e práticas adotadas pelos atores envolvidos. Foi possível confirmar a hipótese de que a medicalização se faz presente no dia a dia das crianças, observando-se, por exemplo, questões como mau comportamento sendo tratadas como doença.

Preparações farmacêuticas; Saúde mental; Criança; Atenção farmacêutica


The present article demonstrates the final result of a research which has aimed to approach to a health service and analyzes the factors that contribute to the childhood's medicalization process on mental health, comprehending how related issues to the daily life of a child, become medical problems. Therefore, were analyzed the medical records of the children helped by the mental health service during the year of 2008, highlighting: initial demands, the presence of diagnosis and the adopted practices by the actors involved. It was possible to confirm the hypothesis that the medicalization is present on children's day-by-day, verifying that, for example, issues such as misbehavior being treated as a disease.

Pharmaceutical preparations; Mental health; Child; Pharmaceutical care


O processo de medicalização e sua interferência nos parâmetros de normalidade

Este artigo se propõe a apresentar um estudo sobre a prática de medicalização presente em nossa sociedade atual. O processo de medicalização vem se mostrando crescente e atinge praticamente todos os campos da vida. É um processo político e cultural que transforma experiências de vida, reduzindo-as a uma racionalidade médica, patologizando-as. Pela lógica de medicalização, o sujeito possuidor de uma diversidade humana é visto como portador de uma doença. Com o público infantil, a medicalização tem encontrado explicações médicas para as dificuldades de aprendizagem das crianças, transformando essas dificuldades em doenças.

Atualmente, é crescente o encaminhamento de crianças aos serviços de saúde mental com demandas sociais, e é crescente, também, o consumo de psicofármacos pela população infantil, trazendo as indústrias farmacêuticas para o cenário da medicalização.

O presente tema é de relevância para a saúde da população, e diversos autores têm retomado a análise do mesmo. É um tema que vem se atualizando na sociedade, inclusive embasando políticas públicas.

Do poder disciplinar em Foucault ao futuro da medicalização em Conrad

O estudo, como marco teórico, fez uma revisão histórica do conceito de medicalização e suas consequências sociais a partir de alguns autores relevantes para o tema. São eles: Michel Foucault, Ivan Illich e Peter Conrad. A análise desse histórico mostrou como o processo de medicalização vem crescendo em um continuum medicalizante e atualizando-se diante da criação de novas necessidades. Incluiu-se ao marco teórico a autora Marcia Angell, que faz uma análise das estratégias de mercado utilizadas pelas indústrias farmacêuticas a fim de ganhar mercados e consumidores; e Maria Aparecida Affonso Moysés, pediatra e pesquisadora da Unicamp, que analisa a medicalização no campo da educação escolar.

Para Foucault, a palavra medicalização está ligada a uma medicina que, valendo-se do poder de seu discurso científico, toma a sociedade como objeto de higienização, disciplinando os corpos (FOUCAULT, 2001, p. 35FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001.) e ampliando de tal forma sua apropriação que chega à regulação de seus comportamentos: o biopoder, o poder sobre a vida das pessoas.

O poder disciplinar para Foucault pauta-se em uma nova forma de olhar e falar sobre os corpos e seu funcionamento. Através dessa racionalidade científica que surge, saúde e doença passam a ser objeto da medicina.

O poder da medicina para normatizar a vida social advém da construção desse saber médico moderno, que apresenta soluções da clínica médica para problemas que têm como principal causa as condições sociais e econômicas da vida das pessoas.

Para Foucault, a doença passou, então, a ser um estado corporal, permitindo sua leitura pela ciência. Desarticulando o sujeito de seu sofrimento, os sintomas assumiram destaque, sendo considerados os determinantes da doença, representando, assim, um sinal de patologia e não uma tentativa de solução. O sujeito, por sua vez, passa a ser o paciente, através do olhar clínico que o vê como um conjunto de órgãos e tecidos.

O austríaco Ivan Illich, padre, teólogo e sociólogo, valorizava a capacidade que as pessoas têm para lidar com a realidade humana da morte, de dor e de doença. As tecnologias de saúde disponíveis, para esse autor, poderiam ser uma ajuda nesse processo, mas a medicina moderna, em seu entendimento, foi longe demais e lançou-se como um Deus na batalha para erradicar a morte, a dor e a doença. Com essa prática, vem transformando as pessoas em consumidores ou objetos, destruindo a sua capacidade pessoal de busca e autonomia por sua saúde (ILLICH, 1975ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.).

Em suas reflexões, surge, fortemente, o conceito de iatrogenia, epidemia de doenças causadas pela medicina. São efeitos adversos ou complicações causadas por ou resultantes do tratamento médico. São consequências das ações dos profissionais de saúde (ILLICH, 1975ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.).

Segundo Illich, a medicalização acaba fazendo parte da cultura popular quando se aceita como algo natural o fato de termos necessidades de cuidados médicos ao longo de toda a nossa vida, seja no momento em que uma mulher está gestante ou quando um bebê é recém-nascido, ou mesmo quando estamos em climatério ou na velhice. A vida, então, passa a ser uma sequência de períodos durante os quais estamos sujeitos a um tipo particular de cuidado terapêutico, e não mais vemos a vida como uma sucessão diversa de formas de saúde (NOGUEIRA, 2003NOGUEIRA, R.P. A saúde pelo avesso. Natal: Seminare, 2003.). O indivíduo submete-se, então, às prescrições de pedagogos, pediatras, ginecologistas, geriatras, entre outros especialistas de saúde, que gerem seus passos e sua vida, domesticando o ser humano, que passa a pertencer, ao longo de sua existência, a celas específicas e especializadas.

Em suma, para Illich, uma das maiores epidemias do nosso tempo é causada pela iatrogenia médica, ou seja, pelos exageros de atuação da medicina. O autor faz uma crítica ácida à medicina, e nos leva a concluir que sua crítica à medicalização social, à época, estava voltada para uma direção única de medicalização, qual seja a de uma medicina que impõe a medicalização para a sociedade, enquanto esta, por sua vez, perde sua autonomia de escolha perante o saber técnico do médico.

O autor Peter Conrad é um sociólogo que estuda atualmente o tema. Conrad é professor de ciências sociais da Brandeis University, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Para ele, medicalizar é definir um problema em termos médicos, utilizando linguagem médica para descrevê-lo ou usando uma intervenção médica para tratá-lo (CONRAD, 1992CONRAD, P. Medicalization and Social Control. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 18, p. 209-232, 1992.). Essa manobra coloca o problema em um plano onde somente especialistas podem discuti-lo, retirando, assim, a população do debate. No caso das crianças, um comportamento inadequado em sala de aula passa a ser considerado um problema médico quando analisado por profissionais de saúde somente, haja vista a tendência médica a interpretar os problemas de comportamento como tendo origens orgânicas ou bioquímicas.

O ponto principal de sua análise é encarar a medicalização como um processo que não é unidirecional, ou seja, para esse autor, o imperialismo médico não é suficiente para explicar o processo de medicalização. Conrad defende tratar-se de uma interação social complexa, que envolve múltiplos atores e onde o ser medicalizado é ativo (CONRAD, 1992CONRAD, P. Medicalization and Social Control. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 18, p. 209-232, 1992.).

O futuro é promissor para a medicalização, acredita Conrad. Haverá combinação de genes para que as pessoas se mantenham magras, haverá a busca genética por QI alto, além de futuros pais consultando um menu como se fossem almoçar em um restaurante, escolhendo as manipulações genéticas que desejam para seus futuros bebês, tendo a área de saúde como maitre.

A autora Márcia Angell, em seu livro A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos (2008), relata as diversas estratégias das indústrias farmacêuticas para ganhar mercados. Essa indústria, hoje em dia, desempenha importante papel na questão da medicalização. Com um mercado a conquistar, tem conseguido transformar pessoas com algum tipo de sofrimento físico ou mental de "usuários do sistema de saúde" em verdadeiros "consumidores". Angell aborda que (2008, p.16) os laboratórios farmacêuticos afastaram-se de sua missão de descobrir e fabricar medicamentos úteis para a população e transformaram-se em máquinas poderosas de marketing. Renomeia alguns tipos de mal-estares, como a azia, que agora é chamada de doença do refluxo gastresofágico, e a timidez, chamada de transtorno de ansiedade social. Dessa forma, mais pessoas se encaixam como potenciais consumidores das drogas fabricadas pelas indústrias. A autora relata que, como doença psiquiátrica, a timidez iniciou seu percurso com o nome de fobia social, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSMIII), em 1980, e, na época, era considerada doença rara. Já no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSMIV) de 1994, teve seu nome alterado para transtorno de ansiedade social, passando a ser comum e considerada uma grave condição médica, o que impulsionou a venda de medicamentos como o Paxil. Angell alerta que alguns dos maiores blockbusters (nome dado aos medicamentos cuja venda anual ultrapassa um milhão de dólares) são psicofármacos (medicamentos para tratamento de transtornos mentais).

O complexo processo de medicalização coloca em evidência os interesses de uma política econômica, seja das indústrias farmacêuticas, seja do complexo médico-industrial como um todo.

A indústria farmacêutica, hoje, com seu enorme poder econômico, acaba por interferir no conhecimento médico. Ela financia programas de pesquisa e produz conhecimento científico com interesse próprio. A produção de conhecimento médico passa a ser sustentada por essas pesquisas de interesses comerciais privados e não com interesse no bem-estar da população. Por esse motivo, a divulgação de seus resultados varia, também, de acordo com o interesse dessas indústrias. As pesquisas sobre medicamentos alimentam, ainda, a produção de artigos científicos, aumentando a circulação específica e tendenciosa de conhecimento (ANGELL, 2008ANGELL, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.).

Com essa atitude consumista, questões de saúde vêm entrando em uma lógica de mercado, e esse é um fenômeno que tem se intensificado bastante em nossa sociedade ocidental.

Com interesse em transformar todo cidadão em consumidor de seus produtos, a indústria farmacêutica capta pessoas saudáveis - que vêm consumindo cada vez mais medicamentos.

Um dos grupos sociais mais presentes na vida das crianças, a escola, também é captada pelo processo medicalizante. A autora Maria Aparecida Affonso Moysés, que é pediatra e estudiosa sobre o tema da medicalização, relata que é possível ver claramente a dinâmica de medicalização quando se traz para o âmbito da saúde a incapacidade de aprendizado da criança.

Com essa lógica, o fato de uma criança ter dificuldades de aprendizagem tem sido traduzido como doença da criança, retirando do debate o desgaste que vive, hoje, o sistema educacional, por exemplo. Essa forma de olhar para as dificuldades escolares é o que ela chama de medicalização do fracasso escolar. É tratar um problema social, como o ensino, fazendo-o parecer um problema médico. Para essa autora, o fracasso escolar e seu reverso - a aprendizagem - vêm sendo medicalizados em grande velocidade. A medicalização é fruto de um processo que transforma questões sociais e humanas em questões biológicas, reduzindo-se os problemas humanos ao mundo da natureza (MOYSÉS, 2001MOYSÉS, M.A.A. A institucionalização invisível:crianças que não aprendem na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2001.). Para Moysés, o que acontece no processo de medicalização é mais perverso do que considerar as pessoas como um corpo biológico, descontextualizadas de seu mundo. Por esse processo, apaga-se a subjetividade do sujeito, que passa a ser um objeto inerte, menos que um corpo biológico, um corpo sem vida (MOYSÉS, 2001MOYSÉS, M.A.A. A institucionalização invisível:crianças que não aprendem na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2001.).

A medicalização do fracasso escolar alimenta a crença de que as dificuldades de aprendizagem estão no aluno e são consequências de uma doença. Esse fato movimenta um grande mercado de serviços por meio dos encaminhamentos a especialistas feitos pelas escolas. As crianças são submetidas a uma quantidade de exames e testes tantos quantos forem necessários à suposta 'descoberta de seu problema'. Um aspecto importante a ser observado para a análise da medicalização escolar não é a existência real de uma doença, e sim o fato de não mais se pensar na criança agitada sem se levar em conta algum distúrbio neurológico.

Considerações metodológicas sobre o trabalho de campo

O trabalho de campo teve por objetivo conhecer as demandas de tratamento em saúde mental, tomando como referência o ano de 2008, da população infantil que foi atendida em um Centro de Saúde Escola no Rio de Janeiro - área de Manguinhos - e compreender como os profissionais da saúde, famílias e escolas lidam com essas demandas. Para tanto, foram analisados os prontuários dessa população infantil, através de uma planilha específica.

O estudo foi realizado no Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria, pertencente ao quadro da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que tem por clientela a população da área de Manguinhos (população adscrita), que, à época, contava com cerca de 50.000 pessoas, das quais, grande parte era de crianças (não existe um levantamento do número de crianças dessa população).

O Complexo de Manguinhos, como é conhecido, está representado por 16 comunidades, as quais revelam uma grande parcela de pobreza e violência e particularidades tanto na condição geográfica e em suas formas de ocupar o espaço físico quanto em seu dinamismo, suas tradições, procedências, culturas, fontes de renda e nas formas de lidar com a violência.

A pesquisa partiu da premissa de que uma parte da demanda para crianças na área de saúde mental se refere a questões sociais e políticas, e não especificamente de saúde, não negando, entretanto, a existência de sofrimento nas demandas apresentadas.

No presente trabalho, foram analisados os encaminhamentos das demandas de saúde mental infantil, a fim de verificar se o caminho da medicalização se confirma em nossa sociedade.

Tratou-se de uma pesquisa qualitativa cuja análise foi feita com base na metodologia de análise das práticas discursivas segundo Foucault. Optou-se por esse eixo de análise por sua preocupação com a produção de sentidos existentes nos discursos, ou seja, as práticas discursivas como práticas que estão em constante construção e a partir das quais as pessoas dão sentido e se posicionam em suas relações sociais cotidianas. O foco foi analisar o discurso enquanto prática social, produzindo realidades e constituindo saberes e poderes. Analisaram-se os discursos relatados nos prontuários das crianças, incluindo os relatos de pais, professores e da própria criança, bem como os relatórios escolares e os pareceres dos profissionais de saúde.

O público alvo da pesquisa foram crianças de até 11 anos e 11 meses de idade, moradoras do Complexo de Manguinhos, atendidas no período de janeiro a dezembro de 2008. Nesse recorte, foram obtidos, inicialmente, 122 prontuários, que, depois de analisados os seus erros de listagem, resultaram em 106 prontuários. Os prontuários foram categorizados com base nas principais queixas apresentadas. Para uma análise mais minuciosa da presença ou não do processo de medicalização nos prontuários pré-selecionados, foram escolhidos os prontuários de crianças que ingeriam medicamentos para sanar os problemas apresentados. Buscou-se avaliar a presença do processo de medicalização e a pertinência do medicamento na resolução do problema apresentado pela criança. Nesse recorte, obtiveram-se 12 prontuários.

As principais queixas que levaram os pais e/ou responsáveis a procurar pelo serviço foram:

  1. Dificuldades na escola/de aprendizagem = 3 prontuários selecionados;

  2. Agitação/irritação/hiperatividade/agressividade = 2 prontuários selecionados;

  3. Violência (sofreu ou presenciou) = 2 prontuários selecionados;

  4. Desobediência/conflitos familiares = 2 prontuários selecionados;

  5. Luto/tristeza = 1 prontuário selecionado;

  6. Bullying = 1 prontuário selecionado;

  7. Ligadas à sexualidade da criança = 1 prontuário selecionado.

Discussão - O processo de medicalização dos comportamentos infantis e a presença de diagnósticos e preconceitos

O presente trabalho pretendeu buscar a compreensão do processo de medicalização a partir da análise dos prontuários de crianças atendidas por um serviço local de saúde, no ano de 2008.

O objetivo da pesquisa foi o de compreender de que maneira questões inerentes ao desenvolvimento de uma criança e inerentes ao contexto em que ela se encontra passem a ser entendidas como um problema de transtorno mental. Os processos de medicalização foram identificados em toda a sua trajetória, desde elencar um comportamento como problemático até sua transformação em uma questão médico/psicológica; identificaram-se os atores envolvidos nesse processo e a forma como lidam com as demandas; verificaram-se quais questões inerentes ao contexto de vida das crianças e que aparecem nos casos estudados são ou não consideradas com relação aos sintomas apresentados pelas crianças; foram analisados: a importância dada aos contextos social e cultural da criança no encaminhamento e os tratamentos dados a cada caso; foram identificadas as atuações de caráter individual e institucional de cada ator envolvido e a forma como o serviço local de saúde lida com essas demandas.

A partir desse trabalho de campo, pode-se confirmar a hipótese de que a medicalização realmente se faz presente no dia a dia das pessoas e que diversas questões inerentes ao desenvolvimento de uma criança são vistas e tratadas como doenças.

O trabalho de campo evidenciou, ainda, as dificuldades escolares como o motivo responsável pelo maior número de encaminhamentos infantis ao setor de saúde mental do centro de saúde, no ano de 2008.

Os relatos de prontuário evidenciaram o encaminhamento de crianças para o serviço de saúde mental com dificuldades de aprendizagem, sem antes serem avaliadas, pedagogicamente, as suas dificuldades, considerando o não aprender como uma incapacidade pessoal da criança.

Observou-se que o espaço escolar atuou mais como um espaço de diagnóstico do que como um espaço onde alternativas pedagógicas fossem propostas.

Foi possível observar que em mais de um relato familiar e da escola surgiram queixas de pouco contato escola/família para a discussão dos conflitos surgidos.

Uma prática observada nos relatos de prontuários foi a de a escola diminuir a carga horária de crianças que apresentam comportamento inadequado em suas dependências, como forma de pressionar os responsáveis para a resolução do problema. Com essa atitude, o espaço escolar mostrou-se mais punitivo e omisso do que acolhedor.

Comportamentos como timidez, agitação e tristeza foram vistos como doenças; nos casos de agitação, observou-se uma tendência a considerar a criança como portadora de Transtorno do Défict de Atenção com Hiperatividade (TDAH).

A questão medicamentosa também surgiu de forma preocupante, tomando lugar não de conforto para a criança, mas de alívio para quem convive com ela através da possibilidade de contenção química.

Nos relatos das famílias e escolas, foi possível observar situações de violência vividas tanto pelas crianças quanto pela comunidade em geral. A dificuldade que surge ao lidar com a violência foi vista como incapacidade individual da criança, buscando na área de saúde um alento para seu sofrimento, através de uma intervenção médica (medicamento para acalmá-la). A criança, por ser uma pessoa em crescimento e desenvolvimento, é muito vulnerável às situações de violência que ocorrem em seu entorno social, seja na família, na escola ou na comunidade em que vive. Ela depende de proteção e orientação dos adultos, das instituições e das políticas públicas.

Em um dos relatos, uma adolescente vê a possibilidade de utilização das tecnologias em saúde para tornar-se mais bonita e atraente, através de uma cirurgia plástica. O desejo de realizar tal procedimento cirúrgico levou-a a entrar em conflito com os pais.

O luto sendo tratado como doença e recebendo intervenção medicamentosa, queixas referentes a bullying e homofobia no interior das escolas e outras relacionadas às dificuldades das escolas em lidar com as situações de conflito que surgem também foram observados.

Conclusão - Diferença como diversidade e não como doença

A medicalização é um processo que considera legítima a intervenção profilática para questões sociais mais amplas. Com relação às dificuldades escolares das crianças, esse processo tenta cessar sintomas sem levar em conta a complexa manifestação de singularidade de cada sujeito. Assim, em vez de considerar que a criança está com seu psiquismo em estruturação, supõe-se que ela tenha um déficit neurológico.

Por vezes, há de se considerar que o sintoma pode não ser sinal de uma doença e sim de uma tentativa de solução. É a forma singular com que cada pessoa expressa sua busca de soluções.

Todo o processo de escolarização está inserido em um momento histórico, social e político. Não é um processo somente individual, do aprendiz. Um aspecto importante a ser observado para a análise da medicalização escolar não é a existência real de uma doença e sim o fato de não mais se pensar na criança agitada sem se levar em conta algum distúrbio neurológico.

A criança que sofre ou presencia violência não é doente, ela reage aos conflitos sociais de seu contexto. Esse deslocamento feito do social para o individual deixa as pessoas cada vez menos autônomas em sua relação com a vida e com os outros. A análise que se faz aqui, com referência ao tema da medicalização, é a de que questões sociais de extrema complexidade, como a violência, buscam no serviço de saúde, alternativas individuais para o indivíduo que externa seu sofrimento perante a violência.

Questões como luto e tristeza também são silenciadas pela medicalização. Ao anestesiar o sujeito com psicofármacos, rouba-se o tempo necessário para que ele supere o abalo de uma morte importante, uma doença ou um acidente grave e construa novas referências, compatíveis com a perda ou a incapacitação pela qual passou. O tratamento farmacológico para enfrentar as diversas manifestações da dor de viver também foi observado na pesquisa. Na cultura medicalizante que se vive hoje, o medo de uma futura doença ou transtorno vir a aparecer por algum acontecimento ou comportamento retroalimenta a medicalização e alarga seu campo de atuação. A capacidade das pessoas de administrar seus sofrimentos parece estar encolhendo diante da força que tem a atual cultura da medicalização. Perdendo o potencial para enfrentar seus sofrimentos, tristezas e crises da vida, as pessoas perdem a confiança em seu próprio potencial.

Espera-se que este estudo possa contribuir para uma reflexão dos profissionais de saúde no tocante às suas práticas de trabalho, no sentido de que estejam alertas a uma maior humanização nos atendimentos e para uma postura que permita que as crianças sejam o que são, ajudando-as em sua tarefa de virarem adultos.

Esperamos contribuir para que o profissional de saúde assuma uma postura de enfrentamento à submissão cristalizada a um modelo medicalizante que se diz benéfico à saúde das pessoas, recuperando sua capacidade de sensibilizar-se com a dor do outro, hoje já tão naturalizada, e ajudando as famílias a recuperarem sua capacidade de buscar internamente soluções para os conflitos da vida. Compreender e divulgar que diferença é diversidade e não doença. Compreender que saúde é um fenômeno humano complexo e não um fato puramente biológico; é próprio da forma de vida de uma pessoa, de seu contexto, de sua história vivida e concreta.

Cada vez mais problemas, sofrimentos e experiências, que, usualmente, eram administradas no interior das famílias, estão passando para a arena de atuação externa às mesmas e trazendo um futuro promissor ao processo de medicalização. São as indústrias farmacêuticas e de serviços em saúde que se especializam e se modernizam cada vez mais, alimentando essa prática e oferecendo-se para classificar, diagnosticar e tratar de quase tudo (TESSER, 2009TESSER, C. (Org.) Medicalização social e atenção à saúde no SUS. São Paulo: Hucitec, 2009.).

Aliados a esses mercados e serviços disponíveis, estão o envelhecimento da população e os tratamentos para fatores de risco como se já fossem doenças. Sem falar das cirurgias estéticas que inauguram uma nova atuação dos serviços de saúde, antes, reparadoras, e, atualmente, medicalizando a beleza. A indústria farmacêutica também inaugurando um novo mercado, o de pessoas saudáveis desejando melhoras de performance, tanto na vida acadêmica quanto na vida sexual. As possibilidades relatadas por Conrad de, futuramente, poder escolher feições e características genéticas de seus futuros filhos como se escolhe uma refeição em um restaurante.

Não se trata de desvalorizar as especialidades nem os benefícios que muitos medicamentos trazem diariamente à vida das pessoas, mas de alertá-las sobre a importância de sua autonomia para também cuidarem de suas vidas e de sua própria saúde, encontrando um caminho do meio, sem perder sua capacidade de enfrentar as intercorrências próprias da vida. Lembrando que grande parte de nossos sofrimentos e tristezas são mais ou menos passageiros, são fases da vida, as quais precisamos reunir recursos para enfrentar. De outra forma, ficamos mais dependentes de especialistas e menos conhecedores de nós mesmos e do outro.

É importante valorizar a capacidade que as pessoas têm para conhecer melhor seus problemas e participar ativamente do seu plano terapêutico, negociado em conjunto com o profissional de saúde, valorizando seu discurso, sua voz, seu potencial e, assim, poder usufruir melhor dos serviços de saúde quando eles realmente forem necessários. Dos profissionais de saúde, espera-se, também, que não alimentem no paciente a sua dependência e a atual compulsão por consumo de serviços de saúde, o que acaba gerando mais demanda por atenção e enfraquecimento do sujeito.

Reivindicar ou repudiar um diagnóstico na contemporaneidade não tem sentido único. Manejar essa complexa questão no dia a dia dos serviços de saúde é um desafio para seus profissionais. Segundo Tesser (2009)TESSER, C. (Org.) Medicalização social e atenção à saúde no SUS. São Paulo: Hucitec, 2009., pressionados por escolas, pelo tempo de consulta, pelos pacientes e suas famílias, com expectativas de medicamentos e serviços de saúde que lhe aliviem os sofrimentos, o profissional, por vezes, pode se sentir vencido por um processo poderoso e crescente na sociedade, como é o de medicalização. É preciso que o encontro do paciente com o profissional de saúde seja feito sempre de forma humanizada, considerando o potencial do paciente, compreendendo que quem melhor pode falar de si é o próprio paciente, e, então, juntos, paciente e profissional de saúde construam um plano terapêutico que faça sentido para ambos.

Das escolas, espera-se que assumam cada vez mais seu papel implícito de educar os alunos. Que sejam um espaço de abertura para novos valores, oferecendo às crianças e aos jovens uma pluralidade de pensamentos, além de informações importantes para o seu crescimento e o convívio social. A escola não só absorve muitas horas do dia de seus alunos, mas acompanha o jovem durante muitos anos de sua vida - um motivo a mais para ser um ambiente acolhedor, transformador e formador, onde os conflitos possam ser discutidos internamente com as famílias.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • ANGELL, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.
  • CONRAD, P. Medicalization and Social Control. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 18, p. 209-232, 1992.
  • FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001.
  • ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
  • MOYSÉS, M.A.A. A institucionalização invisível:crianças que não aprendem na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2001.
  • NOGUEIRA, R.P. A saúde pelo avesso. Natal: Seminare, 2003.
  • TESSER, C. (Org.) Medicalização social e atenção à saúde no SUS. São Paulo: Hucitec, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2014

Histórico

  • Recebido
    Fev 2014
  • Aceito
    Jul 2014
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