Saúde suplementar no Brasil: revisão crítica da literatura de 2000 a 2010

Supplementary health in Brazil: critical review of the literature from 2000 to 2010

José Antonio de Freitas Sestelo Luis Eugênio Portela Fernandes de Souza Lígia Bahia Sobre os autores

Resumos

Este artigo se propõe a realizar uma revisão crítica sobre saúde suplementar no Brasil, entre os anos 2000 e 2010, a partir da SciELO e do Banco de Teses da CAPES/CNPq. Foram selecionados 301 textos para análise, com base em matriz, com os seguintes elementos: ano de publicação, vinculação institucional do autor, localização da instituição e campo disciplinar referido. O conteúdo foi analisado com base nos resumos dos textos. Os resultados indicam ter havido um aumento contínuo da produção sobre saúde suplementar no período pesquisado. O conteúdo dos resumos sugere a naturalização da visão que toma a atual conformação do esquema de comércio de planos de saúde como algo dado e não como fenômeno histórico.

Saúde suplementar; Sistemas de saúde; Planos de pré-pagamento em saúde


This article attempts to perform a critical review on supplementary health in Brazil, between the years of 2000 and 2010, from the SciELO and the CAPES/CNPq's Bank of Theses. Were selected 301 texts for analysis, based on matrix, with the following elements: year of publication, the author's institutional linkage, the institution's location and the reffered disciplinary field. The content was analyzed based on the summaries of the texts. The results suggest a continued increase of the production on supplementary health in the period researched. The content of the summaries suggests the naturalization of vision wich takes the current conformation of the trading scheme of health plans as something given and not as a historical phenomenon.

Supplemental health; Health systems; Prepaid health plans


Introdução

A expansão do capitalismo industrial no período pós-Segunda Guerra Mundial teve impacto importante na economia do Brasil, com a instalação de grandes empresas transnacionais na região sudeste do país, em torno de centros urbanos, como São Paulo.

O sistema de saúde também passou por grandes transformações a partir da década de 1950, com o desenvolvimento da indústria farmacêutica e de equipamentos médicos, gerando um novo perfil de demandas no consumo de bens e produtos de saúde. Da mesma forma, a rede de prestadores de assistência à saúde foi pressionada em direção a uma maior expansão (BRAGA; PAULA, 1981BRAGA, J. C. S.; PAULA, S. G. Saúde e Previdência: estudos de política social. São Paulo: CEBES: HUCITEC; 1981.).

Após o golpe militar de 1964, o novo governo fez uma clara opção pela expansão da rede de assistência, por meio do estímulo a empresas médicas conveniadas ao sistema público. Ao mesmo tempo, as iniciativas inovadoras de prestação de assistência a trabalhadores da indústria, por meio do pré-pagamento de planos de saúde, que haviam florescido no final dos anos 1950, foram indiretamente favorecidas por essa política. Desenvolveu-se, assim, uma rede de prestadores privados, ligados, simultaneamente, ao sistema público e ao esquema de comércio de planos de saúde (CORDEIRO, 1984CORDEIRO, H. A. As empresas médicas: as transformações capitalistas da prática médica. Rio de Janeiro: Graal; 1984.).

Entre as décadas de 1980 e 1990, quando foi instituído o Sistema Único de Saúde (SUS), já havia uma estrutura importante de empresas ligadas ao comércio de planos que atuavam sob um padrão de regulação estatal restrito a políticas fiscais e subsídios à demanda pontuais. Contudo, denúncias de negação de atendimento a pacientes gestantes de risco, idosos e HIV positivos por essas empresas repercutiram no noticiário, deram grande visibilidade à situação dos planos de pré-pagamento naquele momento e, ao lado de outros fatores, acabaram por desencadear o processo que levou à edição da Lei Federal nº 9.656/98, relativa aos planos de saúde (MENICUCCI, 2007MENICUCCI, T.M.G. Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetórias. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.).

Também a produção acadêmica sobre esse tema ganha maior consistência a partir da década de 1980. Um importante referencial, hoje clássico, repleto de evidências empíricas, pode ser relacionado com a caracterização das políticas de saúde no Brasil durante o período da ditadura militar (DONNANGELO, 1976DONNANGELO, M. C. F. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades; 1976.; MELLO, 1977MELLO, C. G. A irracionalidade da privatização da medicina previdenciária. Saúde em Debate, São Paulo, n. 3, p. 8-15, 1977.; POSSAS, 1981POSSAS, C.A. Saúde e trabalho: a crise da Previdência Social. Rio de Janeiro: Graal, 1981.; BRAGA; PAULA, 1981BRAGA, J. C. S.; PAULA, S. G. Saúde e Previdência: estudos de política social. São Paulo: CEBES: HUCITEC; 1981.; CORDEIRO, 1984CORDEIRO, H. A. As empresas médicas: as transformações capitalistas da prática médica. Rio de Janeiro: Graal; 1984.; LUZ, 1979LUZ, M. T. As instituições médicas no Brasil: instituições e estratégias de hegemonia. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.).

Esse referencial, direta ou indiretamente, abordou a participação de empresas privadas no sistema assistencial, dentro de uma visão que articulava as dimensões econômicas e sociais gerais com a organização da assistência à saúde, considerando, inclusive, a participação das empresas médicas de pré-pagamento. No final da década de 1990, a questão da articulação entre o público e o privado na assistência à saúde é abordada por Bahia (1999)BAHIA, L. Planos e seguros saúde: padrões e mudanças das relações entre o público e o privado no Brasil. 1999. 100 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública). - Escola Nacional de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 1999., em um trabalho que, hoje, também é uma referência sobre o tema.

O novo Código de Defesa do Consumidor (CDC/Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990), a Lei nº 9.656/98 - que trata da atuação das empresas de planos de saúde - e a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), em 2000, entretanto, contribuíram para dar maior especificidade ao trato da temática, possivelmente, com reflexos na produção acadêmica relativa ao assunto.

Tais referências legais e institucionais, ao tangenciarem a questão do comércio de planos e seguros de saúde, sob um viés de relações de consumo, práticas de mercado e regulação econômica, possivelmente, contribuíram para agregar abordagens igualmente impregnadas de um caráter especializado na literatura acadêmica, diferentemente daquele observado nas referências clássicas citadas acima, consolidando o uso do descritor 'saúde suplementar' como marcador específico para o universo de empresas de planos e seguros de saúde no Brasil.

Na literatura científica internacional, Atherly (2001)ATHERLY, A. Supplemental insurance: Medicare's accidental stepchild. Med Care Res Rev, Thousand Oaks, v. 58, n. 2, p. 131-161, 2001. publicou um trabalho de revisão sistemática sobre esquema de pré-pagamento de contas hospitalares com um conjunto de 118 artigos, do período de 1973 a 1999, nos Estados Unidos, buscando descrever o crescimento dos planos de saúde, seu modelo regulatório e sua relação com o programa público Medicare. Entretanto, permanece como referência fundamental para revisão da evolução histórica da medicina naquele país a obra de Starr (1982)STARR, P. The social transformation of American medicine. New York: Basic Books; 1982., que descreve o surgimento e a consolidação da autoridade médica e, em seguida, discute a transformação da medicina em um processo industrial, bem como a tensão, ainda presente, entre o papel das corporações e do Estado nesse campo.

No Brasil, foram publicados trabalhos que descreveram a evolução do campo privado da saúde, incluindo as empresas de planos de saúde (SOUZA, 2000SOUZA, M. A. O campo privado de saúde em Salvador: evolução a partir da década de 80. 2000. 35 p. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva). - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000.), e revisaram a literatura sobre regulação (PIETROBON; PRADO, CAETANO, 2008PIETROBON, L.; PRADO, M.L.; CAETANO, J.C. Saúde Suplementar no Brasil: o papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar na regulação do setor. Physis, Rio de Janeiro, v. 18, n. 4, p. 767-783, 2008.). Um trabalho (ROSSI, 2009ROSSI, A. L. B. N. As ações em saúde das operadoras de planos médicos e odontológicos no setor suplementar e as relações com a promoção de saúde dos seus beneficiários: revisão da literatura. 2009. 93 f. Dissertação (Mestrado em Promoção da Saúde). - Universidade de Franca, Franca, 2009.) revisou a produção acadêmica relativa às ações de promoção de saúde desenvolvidas pelo setor de saúde suplementar, com 18 textos publicados entre 1998 e 2008. Todavia, não existe registro de revisão que busque caracterizar o panorama das publicações especializadas sobre saúde suplementar no Brasil na fase de vigência da regulação pública especializada.

Assim como a dinâmica de comercialização de planos de saúde no Brasil guarda especificidades que não autorizam uma transposição direta das descrições referentes aos países europeus e aos Estados Unidos (BAHIA; SCHEFFER, 2008BAHIA, L.; SCHEFFER, M. Planos e Seguros Privados de Saúde. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org). Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz: Cebes, 2008. p. 507-543.), também a produção acadêmica local solicita uma descrição que revele suas especificidades e tendências.

Nessa perspectiva, o presente estudo pretende contribuir para a compreensão das características gerais da produção acadêmica sobre saúde suplementar no Brasil, de 2000 a 2010, analisando o material publicado de forma sistematizada, identificando os autores, sua vinculação institucional, o ano de publicação, o campo disciplinar ao qual se vinculam e os temas predominantes, emergentes ou ausentes. Além disso, o artigo busca responder à seguinte questão: se, e em que medida, a prática discursiva dos autores (re)produz uma visão que naturaliza a atual dinâmica de compra e venda de serviços de assistência à saúde por meio de planos e seguros ou assume uma visão crítica sobre esse fenômeno, em linha com os fundamentos teóricos do Movimento Sanitário brasileiro.

Método

Foi realizada uma revisão sistemática sobre saúde suplementar no Brasil, a partir do marco normativo/temporal da Lei nº 9.656/98 e da criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Foram revisados os estudos publicados sobre esse tema, entre 2000 e 2010, a partir das seguintes bases de dados: banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Scientific Eletronic Library On Line (SciELO) e Web of Science.

A escolha dessas bases permitiu o acesso a resumos e textos integrais de teses de doutorado e dissertações de mestrado acadêmico, produzidas em instituições de ensino e pesquisa do Brasil, além de artigos publicados no Brasil e no exterior em periódicos indexados, caracterizando um conjunto de textos com formato acadêmico bem definido (artigos em periódicos, teses e dissertações de mestrado acadêmico). Os artigos em periódicos foram considerados como um grupo homogêneo, sem distinção entre textos ensaísticos e trabalhos com base teórica e empírica bem estruturada.

A busca no banco de teses da CAPES/CNPq foi feita por palavras-chave, usando, sucessivamente, os seguintes descritores: 'saúde suplementar', 'planos de saúde', 'seguro saúde' e 'mercado de saúde' para o período de 2000 a 2010. A busca limitou-se às dissertações de mestrado acadêmico e às teses de doutorado, excluindo-se os trabalhos de conclusão de mestrado profissionalizante que, ao tratar de planos e seguros de saúde, tenderiam, possivelmente, a assumir um viés mais pragmático, relacionado com temas gerenciais.

Na base SciELO, a pesquisa foi realizada com os mesmos descritores utilizados para a base CAPES/CNPq, na busca de artigos publicados em periódicos indexados no período de 2000 a 2010.

Para a Web of Science, foi utilizado o descritor private health insurance na busca de artigos publicados em língua inglesa, sem intervalo de tempo definido. A busca priorizou os artigos de revisão e, entre esses, aqueles com maior número de citações para exploração do estado da arte, ou seja, para identificação de conceitos e referência fundamentais em circulação para introduzir uma discussão referente, especificamente, ao que se publica no Brasil.

As buscas permitiram a identificação de 4.700 títulos. Em um primeiro nível de análise, foi feita a leitura dos títulos desses trabalhos, o que permitiu a exclusão das repetições e a seleção dos textos efetivamente relacionados com o objeto 'saúde suplementar no Brasil', excluindo-se títulos referentes a 'suplemento alimentar', planos de saúde de secretarias estaduais ou municipais e mercado de produtos de saúde (medicamentos e equipamentos).

Em um segundo nível de análise, cada um dos 301 textos selecionados foi categorizado de acordo com uma matriz, composta dos seguintes elementos: ano de publicação, vinculação institucional do autor principal, localização geográfica da instituição e campo disciplinar referido.

A disposição do material em uma sequência definida por ano de publicação permitiu o estudo das frequências de publicações ao longo de uma série histórica.

O registro da vinculação institucional e da localização geográfica possibilitou a identificação das instituições e das regiões do país mais envolvidas com o tema.

Os campos disciplinares foram identificados, no caso das teses e dissertações (210 textos), com base no registro feito pelos autores em espaço específico no banco de teses da CAPES/CNPq ou, quando não havia esse registro, com base na denominação do programa de pós-graduação ao qual estava vinculado o autor do trabalho. No caso dos artigos (91 textos), foram consideradas as referências explícitas a campos disciplinares constantes nos títulos e palavras-chave ou, quando não havia essa referência, foram inferidas a partir da leitura do resumo. Essa estratégia permitiu saber o leque de disciplinas acadêmicas referidas interessadas na temática.

Em um terceiro nível de análise, foram identificados os objetivos, os métodos e os resultados com base nos resumos dos textos. Nem sempre explícitos, a identificação exigiu, algumas vezes, um trabalho de interpretação. De todo modo, essas três categorias foram utilizadas para caracterizar o conteúdo dos textos e possibilitaram a identificação das temáticas mais prevalentes, das lacunas e dos temas emergentes nesse universo de produção acadêmica.

Os conteúdos, inferidos a partir dos objetivos, dos métodos e dos resultados, foram coligidos para análise com base na seguinte série temática, construída a partir da leitura dos resumos dos textos:

(1) práticas administrativas - essa temática reúne os textos de diversos campos disciplinares que tratam da administração do negócio das empresas de planos de saúde sob variados aspectos, tendo em comum o propósito de contribuir para as boas práticas administrativas ou com subsídios para decisões dos gestores das empresas;

(2) legislação - agrupa os textos que tratam da legislação específica dos planos de saúde, no que se refere ao direito do consumidor ou à norma constitucional da saúde como direito de cidadania, ao lado da liberdade da iniciativa privada no provimento da assistência;

(3) políticas de saúde - temática que engloba textos que, embora centrados na questão dos planos privados, tratam de aspectos gerais de políticas de saúde. Desse grupo, foram destacados três subgrupos:

(3.1) regulação - reúne os textos que tratam da discussão sobre regulação pública da assistência à saúde, em especial, da regulação dos planos de saúde;

(3.2) informação - reúne textos que tratam da gerência de informações sobre a atuação dos prestadores de serviços e sobre os clientes dos planos;

(3.3) articulação público/privada - reúne os textos que abordam, especificamente, a articulação entre o setor público e o setor privado na assistência à saúde.

(4) demanda - reúne textos que procuram descrever as características da demanda por planos de saúde sob qualquer aspecto;

(5) oferta - reúne textos que buscam caracterizar a oferta de assistência em saúde suplementar sob qualquer aspecto;

(6) relações de trabalho - reúne textos que tratam das relações de trabalho, de modelos de organização de trabalho dos prestadores e da relação de sindicatos com os planos de saúde;

(7) odontologia - dadas as particularidades da área (rápida expansão e grande lucratividade), foi conveniente criar um grupo temático próprio para agrupar os textos que tratam de planos de odontologia;

(8) assistência aos idosos - dado o envelhecimento da população e seu impacto nos custos da assistência à saúde, cresceu, recentemente, o número de textos que tratam da assistência aos idosos, o que justificou a definição dessa temática específica;

(9) revisão - reúne textos de revisão da literatura.

Por fim, em um quarto nível de análise, as expressões utilizadas pelos autores como sinonímia para 'saúde suplementar' foram coligidas e dispostas em um quadro comparativo, o que permitiu observar se, de fato, há uma variedade significativa de termos em uso na definição do objeto "saúde suplementar" (SCHEFFER; BAHIA, 2005SCHEFFER, M.; BAHIA, L. Planos e seguros privados de saúde no Brasil: lacunas e perspectivas da regulamentação. IN: HEIMANN, L. S.; IBANHES, L. C.; BARBOZA, R.; (Org.). O público e o privado na saúde. São Paulo: HUCITEC, 2005. p.127-168.) e, principalmente, estabelecer uma discussão sobre a terminologia utilizada para designar, categorizar e classificar as características do processo de comercialização de planos e seguros de saúde no Brasil e sua relação com as evidências empíricas (SANTOS, 2009SANTOS, I. S. O mix público-privado no sistema de saúde brasileiro: elementos para a regulação da cobertura duplicada. 2009. 186 f. Tese (Doutorado em Ciências). - Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009.) sobre a questão.

Resultados

Foi selecionado um total de 301 textos, entre artigos publicados em periódicos indexados, dissertações de mestrado acadêmico e teses de doutorado, relacionados ao tema 'saúde suplementar no Brasil no período de 2000 a 2010'. As dissertações de mestrado representam pouco mais da metade dos textos encontrados (54,4%); os artigos, um terço (30,2%); e os demais (15,2%) são teses de doutorado.

O quantitativo total de publicações, ao longo do período, apresenta uma tendência crescente até o ano de 2003 (passando de um total de sete textos, em 2000, para vinte e sete, em 2003), seguida por um período de estabilização (com variação entre 24 e 28 textos) até 2007. Em 2008, há um incremento acentuado no quantitativo total de publicações, devido, principalmente, aos artigos em periódicos (gráfico 1). No ano de 2009, há uma diminuição do quantitativo total de publicações, porém, para um nível ainda superior ao observado em 2003 (34 textos). Em 2010, um total de 40 textos, dos quais, 29 eram dissertações.

Gráfico 1
Quantitativo de publicações sobre saúde suplementar no Brasil, de 2000 a 2010, em números absolutos

Fonte: Elaboração própria

O número de dissertações publicadas aumenta de 2000 a 2003 e mantém uma relativa estabilidade até 2009, quando volta a subir. O número de teses aumenta até o biênio 2002/2003, diminui em 2004 e retoma o patamar no período de 2005 a 2009, quando atinge o pico de publicações. São encontrados poucos artigos publicados até 2005. A partir de 2006, ocorre um aumento na publicação de artigos, com um pico acentuado em 2008, seguido de uma redução em 2009 e 2010.

Os textos publicados relacionam-se com uma grande variedade de campos disciplinares ou campos de produção de conhecimento referidos, havendo, entretanto, alguns elementos mais prevalentes: Direito (15,3%); Saúde Coletiva (14,3%); Administração (8,6%); Políticas de Saúde (7%); Economia da Saúde (7%); Economia (6,6%); Saúde Pública (6,3%); e Administração em Saúde (5,6%). Outras denominações encontradas são: Ciências Sociais em Saúde (3,6%); Ciências Contábeis (3,3%); Engenharia de Produção (2,6%); Economia Política (2,3%); e Administração Pública (2,3%). Além disso, em menor número, são encontrados também os seguintes campos disciplinares: Enfermagem; Epidemiologia; Demografia; Odontologia; Serviço Social; Ciência da Computação; Odontologia Preventiva; Medicina Preventiva; Comunicação; Economia Doméstica; Ciência da Informação; Gerontologia; Ergonomia; Engenharia Biomédica; Psicologia Social; Políticas públicas; Economia Agrária; Estatística; e Clínica Médica. O campo 'interdisciplinar' é referido em duas publicações.

Considerando o campo disciplinar informado pelos autores, a segmentação alcança recortes bem específicos. A Administração, por exemplo, é referida como Administração em Saúde, Administração Pública, além de envolver textos de Ciências Contábeis (Administração Contábil e Atuarial) e Economia (Administração Financeira e análises de mercado). A Economia é referida como Economia da Saúde, Economia Política e Economia Doméstica. Ocorrem referências a textos de Engenharia de Produção, Engenharia Biomédica, Ciência da Computação e Ergonomia. Destaca-se, ainda, um grande número de textos da área de Direito, do campo da Saúde Coletiva, de Políticas de Saúde e de Saúde Pública.

Quando se agrupam os campos disciplinares referidos em conjuntos mais abrangentes, obtém-se o seguinte resultado (gráfico 2): Saúde Coletiva (32,8%); Administração (19,8%); Economia (16,2%); Direito (15,3%); Ciências Médicas (5,6%); Engenharia (3,2%); Demografia (1,6%); e Outros (5,5%).

Gráfico 2
Campos disciplinares referidos agregados por grandes áreas

Fonte: Elaboração própria

A vinculação institucional do autor principal envolve uma variedade de unidades de ensino e pesquisa públicas e privadas, além de agências governamentais, associações de gestores públicos e operadoras de planos de saúde.

As instituições vinculadas ao maior número de publicações são as unidades públicas de ensino e pesquisa, ocorrendo, ainda, uma grande variedade de instituições com um pequeno número de publicações cada (gráfico 3): ENSP-FIOCRUZ-RJ (14%); USP-SP (9,6%); UFRJ (8,6%); UFMG (7,6%); PUC-SP (6,6%); UERJ (5,6%); FGV-SP (3,3%); UFF-RJ (3%); UNICAMP-SP (2,6%); UNISINOS-RS (2,3%); UFPR (2,3%); UFSC (2%); UnB (1,6%); UFRS (1,6%); e Outras (29,3%).

Gráfico 3
Vinculação institucional do autor principal em números relativos

Fonte: Elaboração própria

Quando agrupados por critério de distribuição geográfica das instituições, os estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais destacam-se em volume de publicações.

Os grupos temáticos construídos, relacionados com o conteúdo (objetivos, métodos e resultados) dos resumos coletados, são dispostos aqui em números relativos: práticas administrativas (25,3%); legislação (14,2%); regulação (11,3%); políticas de saúde (9,6%); relação público/privado (8,9%); demanda (8,9%); oferta (7,3%); odontologia (4,6%); relações de trabalho (4,3%); informação (2,3%); assistência a idosos (2%); e revisão (1%).

Foram encontradas 29 diferentes expressões utilizadas como sinonímia para 'saúde suplementar', dispostas no quadro 1.

Quadro 1
Prática discursiva/sinonímia utilizada para 'saúde suplementar' no Brasil

Discussão

O crescimento da quantidade de publicações ao longo do período ocorre de forma contínua, havendo um pico no ano de 2008 (gráfico 1). Nesse ano, ocorre a publicação da edição temática de um importante periódico sobre a "saúde suplementar e o modelo assistencial brasileiro", o que explica o aumento dos textos no formato de artigo. Em 2009 e 2010, o quantitativo de artigos retorna a um patamar superior ao observado no ano de 2006.

As dissertações de mestrado acadêmico constituem o formato mais encontrado ao longo da série, com exceção de 2008, quando prevalecem os artigos. O crescimento do número de dissertações se dá de forma acentuada nos primeiros três anos (2000 a 2003), possivelmente estimulado pelo interesse sobre a nova legislação relativa aos planos de saúde e sobre a agência de regulação recém-criada. Por sua vez, as teses de doutorado aparecem sempre em menor número, menos no biênio 2002-2003, quando ultrapassam os artigos. Se admitirmos que, por um lado, as dissertações podem dar origem a teses e artigos, esse fenômeno sinaliza uma sustentabilidade no crescimento da produção ao longo do tempo e indica uma permanência do interesse acadêmico sobre saúde suplementar. Por outro lado, o pequeno número relativo de artigos publicados pode indicar que o tema não tem sido prioritário para as editorias de periódicos científicos, nem de ciências econômicas nem de saúde.

É evidente, também, a relação entre o aumento do número de publicações e o marco normativo da criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar. A temática dos planos de saúde, portanto, parece ter sido incorporada à agenda de discussão acadêmica sobre saúde, economia e sociedade, a partir de 2000, de forma definitiva.

A grande variedade de campos disciplinares das publicações sobre saúde suplementar demonstra as múltiplas áreas de interesse acadêmico na abordagem do objeto. Existem desde abordagens especializadas, como, por exemplo, a engenharia de produção, que aproxima a saúde suplementar da esfera da produção industrial e de uma lógica de lucratividade empresarial baseada em ampliação da escala de produção de serviços, até abordagens mais abrangentes, como os trabalhos do campo da saúde coletiva, passando por campos disciplinares tradicionais, relacionados com uma visão empresarial da atividade de prestação de serviços de saúde (administração e economia).

Entretanto, a baixa prevalência de estudos de caráter interdisciplinar pode explicar, como sugere Bahia (2008)BAHIA, L.; SCHEFFER, M. Planos e Seguros Privados de Saúde. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org). Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz: Cebes, 2008. p. 507-543., a persistência de lacunas no conhecimento, não preenchidas por descrições parciais das diversas dimensões desse objeto.

Ao atribuir categorias disciplinares mais abrangentes ao elenco informado pelos autores, o destaque vai para o campo da Saúde Coletiva (que não significa, necessariamente, um viés interdisciplinar), seguido dos tradicionais campos da Administração, da Economia e do Direito (gráfico 2).

De outra forma, analisando o conteúdo do material publicado, com base em seus objetivos, métodos e resultados, e formando grupos temáticos com esse conjunto de dados, fica claro que a maioria (25,3%) dos textos trata de aspectos relacionados com a administração da Saúde Suplementar, na perspectiva das empresas gestoras e prestadoras de serviços.

O quadro 2 relaciona uma sequência de artigos selecionados como exemplos dessa vertente.

Quadro 2
Seleção de textos sobre práticas administrativas

Destaca-se também, em 14,2% dos textos, o tema da legislação sobre saúde suplementar, seja no aspecto relacionado com o Código de Defesa do Consumidor e suas implicações nas relações contratuais entre compradores e vendedores de planos de saúde (RODRIGUES, 2004RODRIGUES, F. G. A boa fé objetiva e sua efetiva aplicabilidade nos contratos de planos de saúde. 2004. 110 f. Dissertação (Mestrado em Direito). - Faculdade de Direito de Campos, Campos, 2004.), seja na discussão do princípio constitucional atribuído à livre iniciativa e aos seus reflexos na dinâmica de comercialização de pacotes de serviços (SILVA, 2004).

A temática da regulação em saúde suplementar aparece em 11,3% dos textos, desde o período imediatamente posterior à criação da agência reguladora, em 2000, (RIBEIRO; COSTA; SILVA, 2000RIBEIRO, J. M.; COSTA, N. R.; SILVA, P. L. B. Política de saúde no Brasil e estratégia regulatória em ambiente de mudanças tecnológicas. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 6, n. 2, p. 61-84, 2000.) até 2009, com referência ao processo de captura do agente regulador pelos interesses do segmento regulado (FARIAS, 2009FARIAS, S. F. Interesses estruturais na regulação da assistência médico-hospitalar do SUS. 2009. 221 f. Tese (Doutorado em Ciências). - Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2009.). Em alguns textos, a palavra 'regulamentação' aparece como sinônimo de 'regulação', quando, de fato, a Lei 9.656/98, que trata dos planos e seguros de saúde, ainda carece de regulamentação que desenvolva e explicite os princípios gerais tratados na lei.

Em ambos os casos, legislação e regulação, a recorrência da temática ao longo de todo o período pesquisado assinala a persistência de uma litigância nas relações contratuais, que solicita a participação constante do Poder Judiciário (judicialização da saúde). Sinaliza, também, a ausência de uma regulamentação específica, de iniciativa do Poder Executivo, que possa esvanecer a nebulosidade da Lei nº 9.656/98 e das resoluções emanadas do órgão regulador.

O tema da articulação entre o público e o privado na assistência à saúde (8,9%) e a discussão mais geral sobre políticas de Estado em saúde (9,6%) também aparecem com algum destaque quando considerados em conjunto. Nesse aspecto, o interesse dos autores transita pela descrição do processo de construção de políticas em abordagens históricas, com a identificação dos principais atores envolvidos, relações de poder implícitas, e pela investigação dos elementos que transitam na fronteira entre as esferas pública e privada.

É comum, na literatura, o uso do conceito de mescla (mix) público-privada para tratar da interface que une/separa os dois polos dessa dicotomia. As agências internacionais, como a Organização Pan-Americana de Saúde, a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial, utilizam e difundem essa ideia desde a década de 1980. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também adota o conceito de mescla em uma taxonomia dos sistemas de seguro privado proposta para os seus membros (RANNAN-ELIYA; LORENZONI, 2010RANNAN-ELIYA R. P.; LORENZONI L. Guidelines for improving the comparability and availability of private health expenditures under the system of health accounts framework. Paris: Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD); 2010 May. 67 p. (OECD Health Working Papers, 52).).

Entretanto, há uma crítica à transposição direta desse conceito para os sistemas de saúde dos países da América Latina, formulada na época do auge da expansão do processo de privatização resultante do modelo neoliberal (1980/1990), que ainda deve ser considerada (EIBENSCHUTZ, 1996EIBENSCHUTZ, C. (Org). Política de saúde: o público e o privado. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.). A crítica ressalta que falar de 'mescla' (mix) implica uma intenção velada de estabelecer certa igualdade e neutralidade entre as dimensões pública e privada do sistema de serviços de saúde, misturadas sem consideração aos aspectos qualitativos inerentes a cada uma das polaridades. O tema adotado pelo II Seminário Latino Americano de Política Sanitária, promovido pela Associação Latino-Americana de Medicina Social, em 1993, foi: "Articulação público/privada dos sistemas de saúde na América Latina", pretendendo criar espaço para determinar a complexidade e as especificidades da relação entre os serviços de assistência à saúde em países periféricos.

A descrição do caráter mais duplicado que suplementar da rede de serviços de saúde, ligada às empresas de planos e seguros no Brasil (SANTOS, 2009SANTOS, I. S. O mix público-privado no sistema de saúde brasileiro: elementos para a regulação da cobertura duplicada. 2009. 186 f. Tese (Doutorado em Ciências). - Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009.), revela que os clientes dessas empresas usam, também, os serviços do SUS naquilo que os convém, o que explicita a fragilidade do modelo de regulação pública da assistência suplementar. Além disso, existe uma dinâmica concorrencial que opõe as expectativas de expansão do negócio da venda de planos e seguros à lógica sistêmica que reserva, em tese, um espaço apenas suplementar a essas empresas. A análise macroeconômica, feita por Andreazzi (2002)ANDREAZZI, M. F. S. Teias e tramas: relações público-privadas no setor saúde brasileiro dos anos 90. 2002. 345 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva). - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002., sobre as relações entre o público e o privado na assistência à saúde, nos anos 1990, apontava para um crescimento das empresas ligadas ao capital financeiro e para uma perspectiva de choque mediato entre os interesses das empresas de planos e seguros de saúde e os de amplos setores organizados da sociedade.

Embora os prognósticos, então formulados (ANDREAZZI, 2002ANDREAZZI, M. F. S. Teias e tramas: relações público-privadas no setor saúde brasileiro dos anos 90. 2002. 345 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva). - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.), de que as seguradoras e autogestões teriam maior possibilidade de se manter no mercado do que as cooperativas e medicinas de grupo não tenham se confirmado, é inegável que a lógica financeira tornou-se dominante na estratégia corporativa de todas as empresas do setor, não importando a denominação que recebam.

Quanto ao conflito de interesses (concorrência) entre os planos de expansão das empresas e a lógica sistêmica da saúde como direito de cidadania, trata-se de tema atual. Cabe investigar, considerando a complexidade e as peculiaridades do sistema de serviços de saúde nacional, se, por exemplo, a capacidade instalada das empresas de prestação de serviços de saúde é capaz de acolher os clientes da classe de consumidores emergentes ou se será estabelecido um modelo de relação onde os gastos catastróficos ficarão por conta do sistema público, e as empresas ampliarão sua base de receita, garantindo atendimento apenas para as demandas de menor valor de custeio (CORDEIRO FILHO, 2006CORDEIRO FILHO A. Desenvolvimento das pequenas e médias empresas do setor de serviços na saúde suplementar. 2006. 131 f. Dissertação (Mestrado em Administração de Empresas). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.).

Merece registro a ocorrência de trabalhos que descrevem as características da demanda por planos de saúde (8,9%) e da oferta de serviços de assistência (7,3%). Além disso, como temas emergentes, podem ser destacados os relacionados com as mudanças no modelo de organização do trabalho dos prestadores de serviço e os que analisam o papel do movimento sindical na demanda por planos de saúde para os trabalhadores (4,3%).

Outros temas de interesse relacionam-se com os planos exclusivamente odontológicos (4,6%), com o registro e a análise de informação em saúde suplementar (2,3%) e com a assistência a idosos (2%). A literatura salienta a extrema lucratividade relacionada com a comercialização de planos odontológicos e seu extraordinário crescimento diante da garantia de retorno do capital investido (VIEIRA; COSTA, 2008VIEIRA, C.; COSTA, N. R. Estratégia profissional e mimetismo empresarial: os planos de saúde odontológicos no Brasil. Ciencia Saude Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, p. 1579-1588, 2008.). Revela, também, que a gestão de informação em saúde é um desafio para a organização da assistência, seja na perspectiva do gestor público que busque compreender as características da demanda e da oferta de serviços em seu território (incluindo, aí, os recursos imobilizados pelos prestadores de assistência aos clientes de planos de saúde), seja na perspectiva do administrador de empresas que vendem planos, ou de prestadoras conveniadas, para conhecer o perfil de demanda de sua clientela.

A mudança na estrutura etária, com o envelhecimento da população, entra como tema e elemento de pressão sobre os custos operacionais das empresas e do conjunto do sistema de saúde.

Finalmente, no que concerne às lacunas, observa-se a ausência de uma caracterização do conjunto da produção acadêmica por meio de trabalhos de revisão e de uma maior compreensão das relações entre as dimensões econômicas e sociais com a saúde, em abordagens interdisciplinares. Tendo como referência o projeto de construção de um sistema único de saúde baseado no interesse público, pode-se apontar, também, a baixa ocorrência de trabalhos sobre temas importantes, como a articulação entre, de um lado, a saúde suplementar e, de outro, o mercado de trabalho profissional, a financeirização da economia, além de padrões de organização de redes familiares de apoio para o financiamento da assistência. Faltam, ainda, estudos sobre a relação entre políticas de estímulo à transformação de empresas hospitalares em unidades de ensino e a saúde suplementar.

Dentro da grande variedade de instituições de ensino e pesquisa a que estão vinculados os autores principais das publicações, ocorre uma concentração de títulos em instituições públicas sediadas na região onde está a maior clientela de empresas que comercializam planos e seguros de saúde, especialmente nos estados de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A dispersão, entretanto, se dá por quase todo o país por meio de instituições particulares de ensino, com um pequeno número de publicações cada, sem o estabelecimento de linhas de pesquisa mais elaboradas, que atendam às especificidades regionais. A grande expansão das empresas de ensino universitário com cursos nas áreas de direito e administração poderia explicar esse fenômeno.

As instituições públicas de ensino e pesquisa, inclusive as de saúde coletiva, têm demonstrado grande interesse nos dois temas mais prevalentes da série temática elaborada: práticas administrativas e legislação. Mais da metade das publicações (55%) que tratam desses temas teve origem nessas instituições, evidenciando um envolvimento da produção acadêmica financiada por recursos públicos com a visão pragmática do mundo corporativo na saúde suplementar.

Há autores que guardam vinculação institucional com empresas de planos de saúde, com Secretarias Estaduais de Saúde, unidades de assistência e com outras instituições de fomento ao desenvolvimento econômico, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

A análise do quadro comparativo (quadro 1), onde está disposta a sinonímia utilizada pelos autores para tratar da venda de planos e seguros de saúde, guarda algumas características que merecem ser discutidas. A primeira delas é a grande variedade de denominações utilizadas para se referir ao mesmo objeto. A segunda é a falta de relação entre o significado atribuído e a evidência empírica existente para referenciar a descrição desse tipo de atividade (SANTOS, 2009SANTOS, I. S. O mix público-privado no sistema de saúde brasileiro: elementos para a regulação da cobertura duplicada. 2009. 186 f. Tese (Doutorado em Ciências). - Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009.).

A denominação 'assistência suplementar à saúde' foi, segundo Andreazzi (2002)ANDREAZZI, M. F. S. Teias e tramas: relações público-privadas no setor saúde brasileiro dos anos 90. 2002. 345 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva). - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002., cunhada por elementos ligados ao empresariado para designar a parcela do setor privado que opera de modo exógeno às relações contratuais com o Sistema Único de Saúde. À época da criação da agência reguladora, o momento era de abertura de mercados, privatização de empresas públicas e estabelecimento de marcos regulatórios que garantissem a segurança e a previsibilidade do esquema de investimentos em curso. Simultaneamente, um sistema público de acesso universal se implantava como conquista de cidadania.

A 'suplementaridade' na assistência à saúde, como princípio, não é contraditória à lógica do Sistema Único de Saúde. Ela reforça o sentido de unidade, ao agregar aspectos não essenciais, mantendo a subordinação ao interesse público como parâmetro de ordenamento dos recursos disponíveis. A retórica da suplementaridade, entretanto, apropria-se da legitimidade inerente ao Sistema de Seguridade Social, como conquista de cidadania, para validar uma dinâmica de comercialização de planos de saúde que, na prática, concorre e busca subordinar o interesse público à sua lógica de expansão como atividade empresarial lucrativa.

A palavra 'mercado', frequentemente associada à ideia de liberdade de escolha e estímulo à criatividade, inerente à livre concorrência, dificilmente poderia ser aplicada ao ambiente de comercialização de serviços de saúde quando se considera a relevância pública e a assimetria de informação entre os agentes envolvidos (BAHIA; SCHEFFER, 2008BAHIA, L.; SCHEFFER, M. Planos e Seguros Privados de Saúde. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org). Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz: Cebes, 2008. p. 507-543.).

As denominações 'setor' e 'segmento' referem-se à dimensão econômica estrita, relacionada com o negócio das empresas que vendem planos de saúde, portanto, ligam-se apenas a um aspecto do objeto. Enquanto 'sistema privado' e 'subsistema' referem-se a uma lógica organizativa (sistêmica) de inter-relação da parte com o todo, que, na prática, não vigora na dinâmica do relacionamento entre os diversos componentes da rede de assistência à saúde no Brasil.

Enfim, as contradições presentes na prática discursiva associada à Saúde Suplementar resultam em uma permanente nebulosidade, que dificulta a compreensão da articulação entre os elementos públicos e privados presentes nesse campo. Por outro lado, para a estratégia de construção de um sistema de saúde pautado no interesse público, poucas palavras são necessárias para sua denominação: sistema, único e saúde.

Considerações finais

A análise do material selecionado permite uma caracterização do conjunto das publicações sobre saúde suplementar do período marcado pela consolidação e expansão do esquema de compra e venda de planos e seguros de saúde desde a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Se a edição da Lei nº 9.656/98 e a criação da agência reguladora estabelecem parâmetros mínimos para o funcionamento das empresas de saúde suplementar, legitimando a consolidação dessa prática comercial, também a produção acadêmica relativa ao tema passa a dispor de um descritor mais específico, que aglutina um rol de publicações ligado direta ou indiretamente ao assunto. Da mesma forma, se o viés de regulação praticado assume uma visão de zeladoria de mercado, monitorando o regime de capitalização das empresas e estabelecendo regras de entrada e saída, contribuindo, assim, para a manutenção de sua saúde financeira (das empresas) e favorecendo a expansão do mercado, de forma análoga, a produção acadêmica expande-se e assume um aspecto fortemente identificado com o trato de questões administrativas específicas, relativas à expansão comercial de serviços assistenciais no formato 'planos de saúde'.

Exemplo disso é identificado na produção específica sobre o tema emergente relativo aos planos de odontologia. A extrema lucratividade das empresas que vendem os planos está relacionada com a baixa sinistralidade envolvida no processo. Se a cada 100 reais pagos pelo usuário, apenas 46 estão empenhados no custeio da assistência (ANS, 2000AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (ANS). Caderno de Informação da Saúde Suplementar. [Internet]. 2000. Disponível em: <http://www.ans.gov.br>. Acesso em 24 ago. 2011.
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), isso significa um bom negócio para a empresa e um mau negócio para o pagador, e, possivelmente, para o prestador também. Se, para efeito de regulação, aplica-se uma visão de zeladoria de mercado, trata-se apenas de um caso de bom prognóstico. Porém, se a regulação assume um viés mais amplo, relacionado com o planejamento estratégico do sistema de saúde, trata-se de questões de universalidade e equidade.

Na década de 1980, Cordeiro (1984)CORDEIRO, H. A. As empresas médicas: as transformações capitalistas da prática médica. Rio de Janeiro: Graal; 1984. já apontava o papel importante representado pelas empresas de pré-pagamento na apropriação privada dos meios de trabalho médico e na transformação da prática autônoma em trabalho assalariado. A produção mais recente aponta para novas mudanças no modelo de organização do trabalho de profissionais de saúde prestadores de serviço, promovidas por iniciativa dessas mesmas empresas. Não há novidade no vetor que fragiliza um polo das relações de trabalho como estratégia de acumulação de capital. Aqui, a história se repete.

Do mesmo modo, as abordagens que preconizam a utilização de práticas preventivas, no âmbito da saúde suplementar - como estratégias declaradas de redução de custo operacional ou como possível avanço na regulação da assistência na perspectiva da integralidade -, mimetizam o dilema preventivista apontado por Arouca (2003)AROUCA S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São Paulo: UNESP; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. e reatualizam a necessidade de radicalização da investigação dos determinantes de iniquidade no sistema, proposta pela Reforma Sanitária Brasileira. Não é possível, realmente, falar de integralidade a partir de uma lógica de funcionamento que segmenta a clientela dos serviços com base na capacidade de pagamento. A pesquisa acadêmica sobre saúde suplementar, financiada por recursos públicos, poderia contribuir para o aprofundamento dessa discussão.

É preciso mapear as referências que têm balizado o tratamento do tema, identificando a natureza dos argumentos propostos e valorizando as abordagens capazes de integrar as dimensões econômicas e sociais gerais com as formas de organizar a atenção à saúde. Essa necessidade aumenta, especialmente, quando se transita sobre a linha tênue que delimita os elementos públicos e os privados em permanente contato na nebulosa interface conhecida como 'saúde suplementar' no Brasil.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2014

Histórico

  • Recebido
    Out 2013
  • Aceito
    Mar 2014
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