Implementação da Atenção Especializada em Saúde Bucal em dois municípios na Bahia/Brasil

Secondary dental care implementation in two municipalities in the state of Bahia/Brazil

Thaís Regis Aranha Rossi Sônia Cristina Lima Chaves Sobre os autores

Resumos

O objetivo do estudo foi analisar a implementação dos Centros de Especialidades Odontológicas em dois municípios com 100% de cobertura da Atenção Básica na Bahia. Desenvolveu-se análise documental, observação participante e entrevistas semiestruturadas com informantes-chave. Os dados foram analisados pela técnica da análise de conteúdo temática, tendo sido pautada teoricamente pelo postulado de coerência e triângulo de governo matusiano. A presente investigação apontou o protagonismo do governo local para o êxito da implementação de políticas com formulação e indução do nível federal. O propósito/projeto de governo e a capacidade de governo parecem ter sido as categorias mais relevantes.

Avaliação de serviços de saúde; Política de saúde; Serviços de saúde bucal; Planejamento em saúde


This study aimed to analyze the secondary dental care implementation in two municipalities in the state of Bahia State. It involved two case studies in municipalities, which had 100% primary care coverage. Data collection methods involved semi-structured interviews with informants, document analysis, and participant observation. Data were examined using thematic content analysis and was theoretically guided by coherence postulate and Carlos Matus' government triangle concept. The present study confirms the local government has an important role in a successful policy implementation with federal level formulation and induction. The government purpose/project and its ability seem to be the most relevant categories.

Health services evaluation; Health policy; Dental Health services; Health planning


Introdução

A entrada da Saúde Bucal (SB) na agenda de prioridades do governo federal no Brasil ocorreu quase duas décadas após a realização da I Conferência Nacional de Saúde Bucal e do I Levantamento Epidemiológico em Saúde Bucal (ambos de 1986), quando já se denunciava a precária situação de SB da população e os limites da atenção pública nessa área (MACHADO; BAPTISTA; NOGUEIRA, 2011MACHADO, C. V.; BAPTISTA, T. W. F.; NOGUEIRA, C.O. Políticas de saúde no Brasil nos anos 2000: a agenda federal de prioridades. Cad. Saúde Pública, Rio de janeiro, v. 27, n. 3, p. 521-532, 2011.).

Em 2004, a publicação do documento 'Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal' aponta certa importância concedida ao tema no governo Lula, tendo sido considerada enquanto prioridade (MACHADO; BAPTISTA; NOGUEIRA, 2011; PAIM et al., 2011PAIM, J. et al. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet, London, v. 377, n. 9779, p. 1778-97, may 2011. ). Segundo seus formuladores, a Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) baseia-se em uma concepção ampliada de saúde e objetiva reorganizar os serviços odontológicos assegurando a integralidade das ações (PUCCA JR et al., 2009PUCCA JÚNIOR, G.A. A política nacional de saúde bucal como demanda social. Ciênc. saúde colet., Rio de janeiro, v. 11, n. 1, p. 243-246, 2006. ; PUCCA JÚNIOR, 2006).

Essa Política preconiza a implementação dos Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs) como estratégia principal na oferta de Atenção Especializada (AE) no serviço público. Autores que analisaram como vem ocorrendo esse processo de implementação sugerem a ampliação do acesso e da oferta de ações e serviços especializados (ARAUJO; MENEZES; SOUZA, 2012ARAUJO, D. B.; MENEZES, L. M. B., SOUZA, D.L. Secondary dental care and implementation of specialized dental clinics in a state in Northeast Brazil. RGO. Porto Alegre, v. 60, n. 1, p. 49-54, 2012.; FIGUEIREDO; GOES, 2009FIGUEIREDO, N.; GOES, P.S.A. Construção da atenção secundária em saúde bucal: um estudo sobre os Centros de Especialidades Odontológicas em Pernambuco, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 259-67, 2009. ; PUCCA JÚNIOR, 2006). Algumas investigações apontaram que características, como a existência de serviços especializados anteriores à PNSB com funcionamento superior a um ano, porte populacional e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) municipal, estão relacionadas a um melhor desempenho dos CEOs no nível local (CHAVES et al., 2010CHAVES, S. C. L.; VIEIRA-DA-SILVA, L.M. Oral health care and health decentralization in Brazil: two case studies in Bahia State. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 5, p. 1119-1131, 2007.; FIGUEIREDO; GOES, 2009), além de maior cobertura da Atenção Básica (AB) (FIGUEIREDO; GOES, 2009). Nesses estudos, os municípios investigados não tinham 100% de cobertura populacional estimada da Estratégia Saúde da Família (ESF), e as possíveis lacunas encontradas muitas vezes estariam relacionadas a diversas barreiras na AB. Por outro lado, essas investigações têm feito suas análises sem aproximação com referenciais da ciência política e sociologia. Estes referenciais permitem investigar aspectos importantes, como as características do governo local, para melhor compreender o processo de implementação de políticas de saúde (SOARES; PAIM, 2011SOARES, C. L. M.; PAIM, J.S. Aspectos críticos para a implementação da política de saúde bucal no Município de Salvador. Cad. Saúde Pública, Rio de janeiro, v. 27, n. 5, p. 966-974, 2011.). Ressalta-se a ausência de estudos que analisem a implementação dos CEOs sob esta perspectiva, seja em âmbito nacional ou local.

Nesse sentido, esta investigação justifica-se pela importância e originalidade de estudos que analisem as características de governo local e os resultados dos investimentos realizados na implementação dos CEOs no nível municipal.

Devido ao exposto, o presente estudo visou analisar a implementação da AE em SB, no contexto local, em dois municípios no estado da Bahia, Brasil.

Metodologia

Desenho de estudo

Foram conduzidos dois estudos de caso na Bahia no período entre 2010 e 2011. Inicialmente, foi feito o levantamento dos municípios da Bahia, nos quais existiam CEO e 100% de cobertura populacional estimada da ESF. Além disso, a Área Técnica de Saúde Bucal da Secretaria Estadual de Saúde (Sesab) indicou os municípios considerados exemplares quanto ao desempenho do serviço especializado em SB. Os critérios de avaliação utilizados foram decorrentes das visitas técnicas realizadas pela referida Área Técnica da Sesab e da avaliação anual realizada pela Coordenação Nacional de Saúde Bucal/Ministério da Saúde (MS). Assim, foram definidos intencionalmente dois municípios, casos exemplares de porte populacional semelhante, ambos de médio porte. Os procedimentos para a produção de dados foram: a análise documental, a realização de entrevistas semiestruturadas e a observação participante descritiva (MINAYO, 2010MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2010. ). A observação participante descritiva foi realizada em todas as visitas. A pesquisadora fazia os registros em seu diário de campo.

Constituíram-se fontes de análise documental: o documento das diretrizes para a Política Nacional de Saúde Bucal, que norteia a organização das ações e dos serviços no âmbito estadual e municipal, e outras publicações do Ministério da Saúde que versaram sobre o tema; Plano Plurianual (PPA); Planos Municipais de Saúde (PMS) e Relatórios Anuais de Gestão (RAG); protocolos assistenciais municipais e conteúdo das atas do Conselho Municipal de Saúde (CMS) sobre o tema em questão.

Foram entrevistados 24 informantes-chave de ambos os municípios, definidos a partir do seu papel na gestão local ou atuação na assistência, a saber: 1 prefeito (a), 2 secretários de saúde, 2 coordenadores de SB e/ou do CEO, 8 cirurgiões-dentistas especialistas nos CEOs e 1 generalista da AB, 8 auxiliares de SB e 3 funcionários dos serviços. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas segundo a técnica de análise de conteúdo temática (BARDIN, 2002BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002.).

O presente projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, nº 045/2010, e obteve fomento do edital DCIT/MS/Fapesb - PPSUS nº 6127/2010.

Elementos teóricos

Este estudo baseou-se na articulação entre conceitos oriundos de distintas teorias no campo da política, planejamento e gestão em saúde.

A análise das características de gestão dos CEOs, em sua etapa de implementação do ciclo da política pública (PINTO, 2008PINTO, I.C.M. Mudanças nas políticas públicas: a perspectiva do ciclo da política. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 12, p. 27-36, 2008.), foi pautada teoricamente no 'triângulo de governo' matusiano e 'postulado de coerência' (MATUS, 1996MATUS, C. Política, planejamento e governo. 2. ed. Brasília DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 1996.; TESTA, 1992TESTA, M. Pensamento Estratégico e lógica de programação: o caso da Saúde. São Paulo: Hucitec, 1995.), utilizando-se contribuição de Vilasboas e Paim (2008)VILASBOAS, A. L. Q.; PAIM, J.S. Práticas de planejamento e implementação de políticas no âmbito municipal. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 6, p. 1239-1250, 2008. .

O conceito de 'triângulo de governo' refere-se a três variáveis que conformam os vértices de um triângulo: o projeto de governo, a capacidade de governo e a governabilidade (MATUS, 1996). Matus (1996) aborda que o projeto de governo seria um sistema propositivo ou conjunto de propostas de ações realizadas pela equipe dirigente no intuito de alcançar sua meta.

Testa (1992) afirma que os propósitos de um governo podem ser definidos enquanto legitimação, crescimento ou transformação. Articulando as duas teorias, entende-se o projeto de governo enquanto expressão do propósito de governo (MATUS, 1996; TESTA, 1992). Todavia, não são apenas as circunstâncias e interesse do ator que determinam o conteúdo propositivo de suas ações, mas também sua capacidade de governo. Esta refere-se à capacidade de condução, gerência ou administração e refere-se a técnicas, métodos, destrezas, habilidades e experiências de um ator e sua equipe de governo para conduzir o processo social quanto aos seus propósitos.

O terceiro vértice do triângulo de governo se refere à governabilidade de um sistema na qual se expressa o poder que determinado ator tem para realizar seu projeto. É uma categoria relativa a um determinado ator, às demandas e exigências que o projeto de governo impõe a ele e à sua capacidade de governo (MATUS, 1996).

Os métodos de governo representam a formalização de uma boa prática, baseada implícita ou explicitamente em uma teoria eficaz. No que tange à organização, quanto à relação de coerência, esta será determinada pelo propósito de governo e pelo método. Para Testa (1992), a organização constitui-se 'uma cristalização da história'. A análise de organização em um dado momento retrata indiretamente outras determinações advindas do passado, juntamente com as atuais.

Esse conjunto de referenciais teóricos para análise da implementação da PNSB no nível local está representado no quadro 1 e na figura 1. A figura expressa especialmente a etapa de implementação do ciclo da política de SB, bem como quando uma necessidade de SB foi reconhecida e entrou na agenda no nível local. Após entrar na agenda, a política foi formulada segundo regras institucionais. Nessa etapa do ciclo, a análise dos recursos é fundamental para uma implementação adequada. Na terceira etapa, os atores locais exercem papel central, sendo o governo municipal protagonista da implementação (CECILIO et al., 2007CECILIO, L. C. O. et al. O gestor municipal na atual etapa de implantação do SUS: características e desafios. RECIIS, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 200-207, 2007.).

Quadro 1.
Matriz de análise das características de gestão dos CEOs em dois municípios das Bahia, 2011

Figura 1.
Marco teórico referencial do ciclo da política de saúde bucal no contexto local.

Resultados

Município A: seta na direção do alvo

Nesse município, a equipe gestora da SB - secretário de saúde e coordenador da SB/CEO - era composta por sanitaristas com experiência prévia na gestão pública da saúde. A prefeita era pedagoga, com mestrado em educação. O projeto do CEO entrou na agenda do governo municipal após conferência municipal de saúde e análise dos resultados do inquérito epidemiológico em SB realizado pelo próprio município em escolares no ano 2000. O projeto foi formulado pela coordenadora de SB, apresentado ao secretário e ao gestor municipal antes de ser encaminhado à Comissão Intergestores Bipartite (CIB). Esse projeto passou por discussões e aprovação no CMS, assim como com profissionais da SB do município. Houve cálculo técnico-político para construção de viabilidade de implementação do projeto tendo em vista que, na tomada de decisão para implementação do serviço, aliou-se estratégia de formalização em relatório pelos profissionais da enorme demanda de usuários encaminhada a outros municípios devido à ausência de oferta procedimentos especializados. Essas informações eram apresentadas periodicamente ao secretário de saúde, que, por sua vez, levou o projeto à prefeita.

Os gestores da SB afirmaram ter sido realizada uma análise dos recursos necessários à implementação do CEO, além de ter contado com o recurso disponibilizado pelo Ministério da Saúde. O CEO foi implementado no ano de 2006.

Na análise do Propósito e Projeto de Governo, os documentos oficiais mostraram coerência entre propostas e ações, ainda que com alguma divergência entre o Plano Municipal de Saúde (PMS) 2010-2013 e RAG 2010 (quadro 2). Nesse PMS, não se constataram metas para o CEO especificamente, apesar dos relatórios de gestão 2009 e 2010 apontarem perspectivas de ampliação do serviço para CEO tipo II (quadro 2). Essa ampliação também esteve presente na narrativa dos entrevistados.

Quadro 2.
Propostas e ações constatadas na análise documental, município A, PPA e PMS, período 2006 a 2013, e RAG 2007 a 2010

A prefeita relatou que a manutenção e ampliação do CEO fizeram parte do seu projeto de governo na campanha para sua reeleição exitosa e estavam contidos nas diretrizes do governo atual. Quanto aos propósitos de governo, os atores destacaram em seus discursos o propósito de crescimento para a atenção à SB.

Nossa ideia é que possamos ampliar para o CEO II, ampliar a possibilidade de serviços, prótese também, ampliando isso para que possamos oportunizar a população esse acesso gratuito a um serviço que até então é um serviço caro, e [...] acaba cumprindo o papel do serviço público que é atender a população mais carente. (Prefeita).

Destaca-se, assim, a ausência do propósito de transformação tendo em vista que a principal gestora compreende o serviço público, como o Sistema Único de Saúde (SUS), para pobres (PAIM, 2009). Ainda assim, o investimento no CEO tornou-se fonte de legitimação política da administração municipal, o que tem garantido um propósito de crescimento. A formação sanitarista da coordenadora de SB, enquanto componente da capacidade de governo, foi um aspecto importante no êxito da organização do serviço. No estudo da sua capacidade de governo e método, observou-se insatisfação pela sobrecarga de trabalho. Isso se traduz na fala do ator pela autodenominação de 'EUquipe de Saúde Bucal'. Verificou-se precarização do vínculo de trabalho não só da coordenadora como também dos profissionais da SB.

'Euquipe'. É assim, nós 'euquipe' de Saúde Bucal [...] Eu resolvo as coisas aqui levo para secretário e para coordenadora de AB. [...] eu não tenho nenhuma pessoa, tudo sou eu: do material de limpeza, ao material odontológico, do CEO e da SB, tudo é comigo. (Coordenadora SB/CEO).

Essa coordenação era responsável pela manutenção e funcionamentos dos consultórios e equipamentos odontológicos, acompanhamento da licitação, supervisão do trabalho da equipe assistencial, liderança no planejamento das ações, monitoramento da oferta/utilização do serviço e avaliação.

Identificou-se distintas práticas de planejamento com base nas narrativas dos entrevistados, como o cálculo técnico político para construção de viabilidade (VILASBOAS; PAIM, 2008) do projeto de implementação do CEO, planejamento para ações de AB e especializada e elaboração do plano municipal de saúde. A gestora da SB possuía alta capacidade de governo não apenas pela sua capacidade de condução do projeto da SB, mas também pela sua experiência na gestão, pela utilização de protocolos assistenciais preconizados pelo Ministério da Saúde (MS) e pelas habilidades no controle do processo de trabalho, constatadas na observação participante, na análise dos documentos e pelas entrevistas com gestores e profissionais. Os profissionais de SB da assistência referiram participar da tomada de decisão quanto ao seu trabalho.

O apoio político do governo municipal ao projeto do CEO foi fundamental para a implementação exitosa do serviço. Entretanto, observou-se baixa governabilidade da gestão dos recursos humanos tendo em vista que a contratação de pessoal era fruto de indicações políticas. A estrutura predial era própria, tendo sido adquirida pela prefeitura para implementação do serviço.

Município B: o serviço refém da crise de gestão

No município B, o coordenador SB/CEO tinha dupla inserção, um consultório particular na cidade e exercia o cargo de gestor de SB há mais de dez anos. O secretário era administrador e, devido ao bom desempenho como secretário na pasta de Planejamento e Fazenda, foi direcionado para a SMS. A prefeita era pedagoga. O projeto do CEO entrou na agenda do governo municipal por uma indução da então secretária de saúde, após ter participado de uma palestra do MS sobre o CEO. Após o descrito, essa gestora solicitou a formulação do projeto ao coordenador de SB e o levou à aprovação da prefeita, antes de encaminhá-lo à CIB. O projeto para o CEO nesse município não foi fruto de uma construção coletiva de um grupo de atores, tendo contado com recurso para implementação disponibilizado pelo nível federal e implementado no ano de 2006.

No município B, não houve análise prévia de recursos nem planejamento sistemático para implementação do serviço (MATUS, 1996). O requisito de sistematicidade no planejamento refere-se àquele que segue corpos ideológicos, teóricos e metodológicos que apóiam o "cálculo que precede e preside a ação" (MATUS, 1996, p. 17.). Apesar de o gestor ter afirmado que não houve estratégia de implementação, ao se presumir a inevitabilidade do planejamento e por compreender estratégia enquanto maneira de se colocar em situação para se aproximar e alcançar a meta, pode-se afirmar que esse ator é um improvisador errático (MATUS, 1996), pois "atua conforme as circunstâncias e segundo um cálculo imediatista que estabelece coerência entre ideologia, teoria e métodos que apóiam seu cálculo" (MATUS, 1996, p. 55-56).

A análise dos documentos cedidos, das entrevistas e dos dados oriundos da observação participante mostra disparidade entre propostas e ações executadas no município estudado na variável Propósito e Projeto de Governo. Não havia propostas para AE no município B nos PMS, todavia no PPA 2010-2013 constava como ação o funcionamento do CEO (quadro 3). Os RAG analisados e as entrevistas revelam a implementação do serviço com posterior 'ascensão'. Essa 'ascensão' foi caracterizada pelo aumento da produção, ajuste da carga horária de profissionais com vistas ao cumprimento de portaria ministerial, contratação de especialistas, ajustes da infraestrutura, contratação de gerente para o CEO, atividades de educação em SB, aquisição de equipamentos e instrumentais (quadro 3). Posteriormente a essa etapa de ascensão, foi relatado um declínio, levando o serviço do status de 'referência na região' para 'não exitoso'. As narrativas dos entrevistados apontaram que o anúncio de cortes de gastos na saúde deveu-se à derrota em "disputa territorial envolvendo petróleo" com município vizinho. Todavia, muitos afirmaram que o CEO foi o alvo dos cortes mais severos de recursos financeiros, com diversas ameaças de fechar o serviço.

Quadro 3.
Propostas e ações constatadas na análise documental, município B, PPA e PMS, período 2006 a 2013, e RAG 2007 a 2010

Ademais, percebeu-se uma visão do serviço público de saúde enquanto 'SUS para pobres' (PAIM, 2009). No discurso do secretário de saúde do município B, é citado um cidadão que vai à procura do serviço público por não lhe restar outra opção e um Estado que 'unilateralmente' oferece condições mínimas para prestação do serviço e ameniza os problemas de saúde para manter a reprodução social. Permeou a fala dos odontólogos e Auxiliares de Saúde Bucal (ASBs) uma grande desmotivação pelo 'descaso' da administração com o serviço. Muitos afirmaram que o serviço mantinha-se funcionando pelo apoio e esforço mútuo dos profissionais, que, a exemplo do endodontista, quando não existia lençol de borracha para efetuar os tratamentos endodônticos, utilizava uma luva de procedimentos como seu substituto. Os profissionais referiram não participar das decisões relativas ao seu trabalho.

Às vezes dizem assim: 'Não é Dr. X o coordenador, a coordenadora é você, porque você resolve tudo! Você faz tudo'. Agora uma questão que incomoda é a seguinte: 'Você faz tudo, seu trabalho é ótimo', e não recebe salário suficiente por isso" (Auxiliar de SB). "O problema maior é a falta de condição de trabalho, porque estamos sem nenhuma proteção, tomando a radiação toda. O coordenador nunca nos procurou e nós não procuramos o coordenador. É um cargo de fachada. (CD Endodontista).

Apesar de todos os governos buscarem legitimação como propósito de permanência no poder, a SB não se constituiu fonte de legitimação para a política local nesse município, pois se constatou secundarização desse segmento da saúde nos PMS e RAG, nas entrevistas e na observação participante. Quanto à capacidade de governo e método, nenhum dos gestores da SB possuía formação sanitarista nesse município. O coordenador tinha um cargo de confiança comissionado na gestão da saúde, e os profissionais de SB eram concursados.

As atividades do coordenador situavam-se principalmente no âmbito de resolução de problemas técnicos e funcionamento dos equipamentos odontológicos. O coordenador SB/CEO interagia com mais frequência com o secretário de saúde e com a ASB/recepcionista, que exercia efetivamente a gerência do CEO, mas declarava não ser remunerada pelas funções que exercia. Esse gestor mostrou baixa capacidade de governo. No município B, inicialmente, a área de SB detinha boa governabilidade que não foi acumulada nos anos seguintes com a crise 'financeira' da gestão. A mesma gestão municipal responsável pela implementação do CEO foi reeleita e permanecia na administração municipal até o período do estudo.

Observou-se baixa governabilidade da coordenação SB/CEO quanto à administração dos recursos financeiros, contratação de pessoal e compra de material. As evidências ratificam que a governabilidade de um sistema é menor se o ator tem baixa capacidade de governo, sendo também muito influenciada pela fragilidade no projeto. O espaço apresentava sinais de deterioração, sem perspectivas de reforma.

Discussão

O presente estudo revelou que, em ambos os municípios, o governo local desempenhou papel fundamental na implementação de uma política de saúde; achado semelhante ao de um estudo sobre a implementação da PNSB em Salvador (BA) e estudos sobre a gestão descentralizada no Brasil (SOARES; PAIM, 2011; COELHO; PAIM, 2005COELHO, T. C. B.; PAIM, J.S. Processo decisório e práticas de gestão: dirigindo a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1373-1382, 2005.).

As primeiras etapas do ciclo da política pública, ou seja, o processo de entrada na agenda e formulação (PINTO, 2008), mostraram relevância para o êxito ou não da implementação. Assim, quando a entrada na agenda e formulação foi produto da ação política de um grupo de atores, houve maior possibilidade de êxito na implementação.

Estudo aponta que a indução de políticas e recursos federais, como a PNSB, é fator fundamental para que os governos locais assumam o papel de provedores de serviços sociais universais no Brasil (SOUZA, 2004). No entanto, a autora questiona sua sustentabilidade e trajetória futura devido à capacidade de governo desigual dos diferentes municípios brasileiros.

A capacidade de governo e método utilizados pelo ator influenciaram a implementação exitosa do CEO no município A. Constatou-se centralização de funções e sobrecarga de trabalho do coordenador de SB/CEO, cargo exercido por apenas um odontólogo em ambos os municípios. Estudo que analisou a capacidade de governo em uma Secretaria Estadual de Saúde também abordou a sobrecarga da equipe e centralização de funções como entraves à capacidade de governo (SAMPAIO et al., 2011SAMPAIO, J. et al. Avaliação da capacidade de governo de uma secretaria estadual de saúde para o monitoramento e avaliação da Atenção Básica: lições relevantes. Ciênc. saúde colet., Rio de Janeiro v. 16, n. 1, p. 279-290, 2011.). Testa (1992) aborda a necessidade de autocrítica do método e que este deve seguir a teoria do problema a ser resolvido. Nos municípios estudados, a coordenadora do município A utilizava instrumentos de gestão preconizados pelo MS, bem como existiam protocolos assistenciais que norteavam as práticas dos Cirurgiões Dentistas (CDs). No município B, o discurso contemplava, enquanto teoria, as diretrizes preconizadas pelo MS, entretanto não se constatou a utilização de instrumentos de operacionalização.

Esses achados corroboram um estudo que analisou as características do gestor municipal na implantação do SUS (CECILIO et al., 2007). O trabalho evidenciou uma baixa capacidade para formular, implementar e avaliar políticas municipais de saúde. A grande rotatividade de gestores municipais, composição limitada da equipe de governo, sobrecarga de atividades e contexto político local com baixa governabilidade foram aspectos críticos para a implementação de uma política de saúde (CECILIO et al., 2007).

A construção do processo decisório, como ocorrido no município A, esteve relacionada ao êxito na implementação do serviço. No município B, as decisões tomavam o caminho clássico, no qual a hierarquia maior decidia e a hierarquia menor executava ou mandava executar (COELHO; PAIM, 2005). Outros autores corroboram as evidências do presente estudo ao apontarem que a existência de um projeto de reorganização das práticas de saúde, de capacidade de governo e governabilidade para sua implementação constituíram-se aspectos favoráveis que podem ter influenciado no melhor desempenho de ações específicas de SB (CHAVES; VIEIRA-DA-SILVA, 2007).

A debilidade da organização no município B, a precariedade do método e um propósito de governo de conservação, aliados às ausências de articulação das variáveis que compõem o triângulo de governo, parecem ter influenciado o insucesso na implementação. O método mantinha coerência com o propósito de conservação, e a organização dos serviços de saúde mostrou-se um reflexo da estrutura organizacional maior.

A governabilidade do sistema não é indiferente à capacidade de governo nem às profundidades das mudanças pretendidas pelo projeto de governo (MATUS, 1996). Nesse estudo, os dois atores apresentaram governabilidade restrita mesmo com desfechos distintos quanto à implementação do CEO. Pode-se afirmar que a governabilidade foi ainda menor quando o ator possuía baixa capacidade de governo, sofrendo influências pela fragilidade no projeto de governo que expressava 'conservação' ou legitimação (TESTA, 1992). Em uma outra perspectiva, em situações nas quais o propósito de governo visou crescimento, exigiu-se do ator maior capacidade de governo onde a governabilidade esteve reduzida, como no município A.

O propósito/projeto de governo e a capacidade de governo parecem ter sido as categorias mais relevantes que explicaram as principais diferenças no momento da implementação da política nacional no nível local.

Por fim, a presente investigação ratifica o protagonismo do governo local para o êxito da implementação de políticas com formulação e indução do nível federal, como a PNSB. Aponta-se que, para o êxito das políticas públicas de saúde e o bom desempenho dos serviços de saúde, a gestão exerce um papel central. Nesse sentido, corrobora-se Paim et al. (2011) quando afirmam que o maior desafio para o Sistema Único de Saúde é político.

Referências

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  • Suporte financeiro: não houve

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    Abr 2015
  • Aceito
    Set 2015
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