Fontes de pagamento das internações e desempenho clínico: o caso dos hospitais do estado de São Paulo, Brasil

Juliana Pires Machado Mônica Martins Iuri da Costa Leite Sobre os autores

RESUMO

O objetivo foi analisar o desempenho clínico por meio da aplicação da Razão de Mortalidade Hospitalar Padronizada (RMHP) e sua variação segundo fonte de pagamento da internação e arranjo de financiamento do hospital. Foram utilizados dados secundários e analisadas as causas responsáveis por 80% dos óbitos hospitalares ajustadas por risco. Desempenho pior que o esperado foi observado em hospitais públicos e públicos mistos e em internações SUS (Sistema Único de Saúde). A relação entre fonte de pagamento e RMHP pode indicar diferenças de prática clínica ou de gravidade dos casos. A metodologia aplicada contribui para o acompanhamento da qualidade hospitalar no País, direcionando políticas públicas e regulamentações.

PALAVRAS-CHAVE
Avaliação de resultados (cuidados de saúde); Mortalidade hospitalar; Administração hospitalar; Sistemas de saúde; Saúde suplementar

Introdução

A avaliação do desempenho de sistemas e serviços de saúde vem sendo utilizada para orientar a tomada de decisão visando à implantação de mudanças e melhorias nas distintas dimensões que compõem esse conceito. A utilização de metodologias nessa área faz-se necessária de modo a analisar fidedignamente as informações e, assim, garantir transparência nos gastos, regular a oferta de assistência, controlar os custos assistenciais, prestar cuidados efetivos, seguros, adequados e equânimes e, ainda, reduzir variações na prática clínica (CHASSIN 2010CHASSIN, M. R. et al. Accountability measures: using measurement to promote quality improvement. N Engl. J Med., Londres, v. 363, n. 7, p. 683-688, 2010.; FUNG , 2010FUNG, V. et al. Meaningful variation in performance: a systematic review. Med. Care, Filadélfia, v. 48, n. 2, p. 140-148, 2010.; MULLEY, 2009MULLEY, A. G. Inconvenient truths about supplier induced demand and unwarranted variation in medical practice. BMJ, Londres, v. 339, n. b4073, 2009.). Essa é uma demanda na agenda de vários atores, incluindo financiadores, prestadores, profissionais e pacientes.

No âmbito da assistência hospitalar, estudos vêm demonstrando significativas variações no desempenho clínico, associadas à natureza pública ou privada e à finalidade filantrópica ou lucrativa dos hospitais, com vantagens para os últimos (BRAND ., 2012BRAND, C. A. et al. A review of hospital characteristics associated with improved performance. Int. J Qual. Health Care, Oxford, v. 24, n. 5, p. 483-494, 2012.; FUNG , 2010FUNG, V. et al. Meaningful variation in performance: a systematic review. Med. Care, Filadélfia, v. 48, n. 2, p. 140-148, 2010.; DEVEREAUX ., 2002DEVEREAUX, P. J. et al. A systematic review and metanalysis of studies comparing mortality rates of private for-profit and private not-for-profit hospitals. Can. Med. Assoc. J, Ottawa, v. 166, n. 11, p. 1399-1406, 2002.). Disparidades entre esses tipos de hospitais podem ocorrer devido a diferenças no que tange aos recursos da organização, o espectro de estratégias a que podem lançar mão e sua relação com o contexto externo, principalmente em relação à dependência de financiamento governamental ou de seguros privados (MEDICI, 2011MEDICI, A. C. Sistemas de financiamento e gestão hospitalar: uma aplicação ao caso brasileiro. In: VECINA NETO, G.; MALIK, A. M. Gestão em saúde. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011. p. 50-73.; LA FORGIA; COUTTOLENC, 2009LA FORGIA, G. M.; COUTTOLENC, B. F. Desempenho hospitalar no Brasil: em busca da excelência. São Paulo: Singular, 2009.). No Brasil, as possíveis combinações entre as fontes de pagamento de internações adotadas pelos hospitais brasileiros (Sistema Único de Saúde - SUS, planos de saúde, e/ou pagamento particular), denominadas 'arranjos de financiamento', caracterizam-nas como elemento estrutural que pode afetar os resultados do cuidado (MACHADO, 2014MACHADO, J. P.; MARTINS, M. S.; LEITE, I. C. Qualidade das bases de dados hospitalares no Brasil: alguns elementos. Rev. Bras. Epid., São Paulo, (no prelo).).

A mortalidade hospitalar, tradicional indicador usado para medir o resultado do cuidado, é frequentemente descrita na literatura científica e nos relatórios formulados por agências internacionais em análises de variações do desempenho (BRAND ., 2013BRAND, C. et al. Hospital Mortality Indicator (HMI) Review (2013). Melbourne: The Australian Commission on Safety and Quality in Health Care, 2013.; SHAHIAN ., 2012SHAHIAN, D. M. et al. Hospital-wide mortality as a quality metric: conceptual and methodological challenges. American J. of Medical Quality, Baltimore, v. 27, n. 2, p. 112-123, 2012.; CAMPBELL ., 2012CAMPBELL, M. J. et al. Developing a summary hospital mortality index: retrospective analysis in English hospitals over five years. BMJ, Londres, v. 344, n. e1001, 2012.). Apesar da vantagem de ser um evento único e obrigatoriamente registrado, o que agrega acurácia ao seu uso, e de idealmente captar a complexidade de todo o processo de cuidado, as relações entre mortalidade e qualidade da assistência não são completamente compreendidas, isentas de erros de mensuração e aplicáveis para muitos diagnósticos (SHAHIAN ., 2012SHAHIAN, D. M. et al. Hospital-wide mortality as a quality metric: conceptual and methodological challenges. American J. of Medical Quality, Baltimore, v. 27, n. 2, p. 112-123, 2012.; CIHI, 2007CANADIAN INSTITUTE FOR HEALTH INFORMATION (CIHI). HSMR: a new approach for measuring hospital mortality trends in Canada. Ottawa: CIHI, 2007.). Nesse contexto, destacam-se importantes questões metodológicas cuja definição é necessária para ampliar a confiabilidade das análises, como: a definição da população de interesse, dos casos a serem selecionados, dos ajustes de risco necessários para tornar a comparação dos hospitais mais justa e até mesmo das formas de interpretação das variações observadas entre eles (BRAND ., 2013BRAND, C. et al. Hospital Mortality Indicator (HMI) Review (2013). Melbourne: The Australian Commission on Safety and Quality in Health Care, 2013.).

Nesse debate, entre as metodologias propostas para a análise da mortalidade hospitalar como medida indireta da qualidade do cuidado (FUNG , 2010FUNG, V. et al. Meaningful variation in performance: a systematic review. Med. Care, Filadélfia, v. 48, n. 2, p. 140-148, 2010.), a desenvolvida por Jarman (JARMAN ., 1999JARMAN, B. et al. Explaining differences in English hospital death rates using routinely collected data. BMJ, Londres, v. 318, p. 1515-1520, 1999.; JARMAN , 2010JARMAN, B. et al. The hospital standardized mortality ratio: a powerful tool for Dutch hospitals to assess their quality of care? Qual. Saf. Health Care, Londres, v. 19, p. 9-13, 2010.), baseada na razão de mortalidade hospitalar padronizada (RMHP), ganhou destaque e vem sendo incluída em sistemas de monitoramento de diversos países (SHAHIAN ., 2012SHAHIAN, D. M. et al. Hospital-wide mortality as a quality metric: conceptual and methodological challenges. American J. of Medical Quality, Baltimore, v. 27, n. 2, p. 112-123, 2012.). A proposta de Jarman, ao analisar os diagnósticos responsáveis por 80% das mortes hospitalares, considerada uma metodologia 'global', apresenta como vantagem o uso de uma medida única e genérica, a exemplo do coeficiente de mortalidade geral padronizado. Além disso, essa abordagem permite avaliar um maior número de prestadores, abarcando hospitais com perfis de casos variados.

Assim, dado o destaque que a abordagem de Jarman ganhou no cenário internacional, este estudo objetivou analisar o desempenho clínico por meio da aplicação da RMHP e a sua variação segundo a fonte de pagamento da internação e arranjo de financiamento do hospital.

Métodos

Delineamento do estudo

Trata-se de estudo transversal, exploratório, com base em dados administrativos secundários disponíveis nos sistemas de informação brasileiros. Considerando o conhecimento acumulado sobre a qualidade da informação, o presente estudo circunscreve-se ao estado de São Paulo, entre 2008 e 2010. Uma adaptação da metodologia proposta por Jarman (JARMAN ., 1999JARMAN, B. et al. Explaining differences in English hospital death rates using routinely collected data. BMJ, Londres, v. 318, p. 1515-1520, 1999.; JARMAN , 2010JARMAN, B. et al. The hospital standardized mortality ratio: a powerful tool for Dutch hospitals to assess their quality of care? Qual. Saf. Health Care, Londres, v. 19, p. 9-13, 2010.) foi realizada, tendo a RMHP como indicador do desempenho clínico dos hospitais.

Universo de estudo

Foram analisados 426 hospitais gerais, selecionados por apresentarem pelo menos 1.095 internações agudas, com até 30 dias de internação, em adultos com idades entre 18 e 99 anos, entre 2008 e 2010, com pelo menos uma morte no período. Foram incluídas apenas as internações cujo desfecho foi saída ou óbito hospitalar (excluídas as continuidades, transferências e altas administrativas). O critério de seleção adotado visou à exclusão dos hospitais com baixo volume de internações no período de estudo, pois, além de estudos mostrarem que hospitais com maior volume de internação tendem a apresentar melhores resultados em relação ao cuidado prestado (LUFT, 1990LUFT, H. S. Hospital volume, physician volume, and patient outcomes: assessing the evidence. Ann Arbor: Health Administration Press, 1990.), hospitais com pequeno número de internações poderiam enviesar as estimativas obtidas. Ao se restringir o tempo de internação, teve-se por objetivo excluir os casos de longa permanência, pois compromete a validade causal entre processo e resultado de cuidado (DONABEDIAN, 2002DONABEDIAN, A. An introduction to quality assurance in health care. Oxford: Oxford University Press, 2002.), quando a medida de qualidade utilizada é a mortalidade intra-hospitalar.

Do total de 5.784.280 internações, foram excluídas aquelas cujo diagnóstico principal se referia a grupos inespecíficos de causas, ou seja, aqueles cujo primeiro dígito da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) era R, T, V, X, Y ou Z. As internações pelas demais causas foram selecionadas, incluindo somente as causas responsáveis por 80% dos óbitos hospitalares, com base na CID-10 com três dígitos. As 2.001.522 internações restantes foram agrupadas em 71 códigos diagnósticos distintos, etapas desenvolvidas em conformidade com a metodologia proposta por Jarman (JARMAN ., 1999JARMAN, B. et al. Explaining differences in English hospital death rates using routinely collected data. BMJ, Londres, v. 318, p. 1515-1520, 1999.; JARMAN , 2010JARMAN, B. et al. The hospital standardized mortality ratio: a powerful tool for Dutch hospitals to assess their quality of care? Qual. Saf. Health Care, Londres, v. 19, p. 9-13, 2010.).

Fontes de dados

Foram utilizadas informações de acesso livre sobre hospitais oriundas das bases de dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). As informações sobre internações privadas provêm da Comunicação de Internação Hospitalar (CIH), e aquelas referentes às internações públicas foram extraídas do Sistema de Informações Hospitalares (SIH).

Análises dos dados

Utilizou-se o volume de internações por fontes de pagamento para classificar os hospitais segundo arranjo de financiamento. Os hospitais foram categorizados conforme a combinação do volume de internações por fonte de pagamento pública (financiadas pelo SUS ou filantropia) e privada (financiadas por planos privados ou públicos de saúde ou particulares do próprio bolso) em cinco categorias: (1) público (sem internações privadas); (2) público misto (até 25% de internações privadas); (3) misto (25% a 75% de internações privadas); (4) privado misto (75% a 99% de internações privadas); (5) privado (100% de internações privadas).

Como medida do desempenho clínico, utilizou-se a RMHP, variável dependente calculada por meio da divisão entre o número de mortes observadas e esperadas (Razão O/E), sendo este resultado multiplicado por 100. O número de mortes observadas foi calculado em função dos fatores de risco dos pacientes. Nos casos em que o RMHP situou-se abaixo de 100, considerou-se o desempenho melhor que o esperado, naqueles iguais a 100, o desempenho do hospital foi igual ao esperado, e acima de 100, o desempenho hospitalar foi pior do que o esperado.

Com base na regressão logística múltipla (óbito: sim/não), vários modelos de ajuste de risco foram utilizados de modo a calcular o número de mortes esperadas, adotando-se aquele com melhor capacidade discriminatória tendo como base a estatística C (AYLIN; BOTTLE; MAJEED, 2007AYLIN, P.; BOTTLE, A.; MAJEED, A. Use of administrative data or clinical databases as predictors of risk of death in hospital: comparison of models. BMJ, Londres, v. 19, p. 334-1044, 2007.). Essa medida aponta a probabilidade do risco de morte em um paciente selecionado aleatoriamente e que morreu, comparada à probabilidade do risco de morte em um paciente selecionado aleatoriamente e que sobreviveu. Valores inferiores a 0,7 indicam discriminação pobre, entre 0,7 e 0,8, discriminação razoável, e acima de 0,8, discriminação boa.

O modelo de base, primeiro a ser testado, incluiu as variáveis sexo (masculino ou feminino) e idade (em anos), sendo esta classificada em seis categorias: 18-49, 50-59, 60-69, 70-79, 80-89, e 90-99. Então procedeu-se à inclusão passo a passo de variáveis relativas ao risco do paciente. No modelo 2, incluiu-se o diagnóstico principal com três dígitos; (códigos de 3 dígitos conforme a Classificação Internacional de Doenças - décima edição - CID-10); no modelo 3, incluiu-se o escore do índice comorbidade de Charlson (IC) (SHARABIANI; AYLIN; BOTTLE, 2012SHARABIANI, M. T. A.; AYLIN, P.; BOTTLE, A. Systematic review of comorbidity indices for administrative data. Med. Care, Filadélfia, v. 50, n. 12, p. 1109-1118, 2012.; QUAN ., 2005QUAN, H. et al. Coding algorithms for defining comorbidities in ICD-9-CM and ICD-10 administrative data. Med. Care, Filadélfia, v. 43, n. 11, p. 1130-9, 2005.), criado com base nas informações sobre o diagnóstico secundário, classificado em três categorias: 0, 1, e ≥ 2; no modelo 4, incluiu-se a presença de comorbidade não incluída no IC; e no modelo 5, incluiu-se o tempo de permanência (em dias) classificado em sete categorias: 1, 2-5, 6-10, 11-15, 16-20, 21-25, 26-30. Assim, este último, adotado como modelo final, foi composto pelas seguintes variáveis: sexo, faixa etária, diagnóstico principal, escore do IC, presença de outra comorbidade não incluída no IC e tempo de permanência. Essas variáveis foram selecionadas com base na literatura sobre o tema (CAMPBELL , 2012CAMPBELL, M. J. et al. Developing a summary hospital mortality index: retrospective analysis in English hospitals over five years. BMJ, Londres, v. 344, n. e1001, 2012.; SHARABIANI; AYLIN; BOTTLE, 2012SHARABIANI, M. T. A.; AYLIN, P.; BOTTLE, A. Systematic review of comorbidity indices for administrative data. Med. Care, Filadélfia, v. 50, n. 12, p. 1109-1118, 2012.; AYLIN; BOTTLE; MAJEED, 2007AYLIN, P.; BOTTLE, A.; MAJEED, A. Use of administrative data or clinical databases as predictors of risk of death in hospital: comparison of models. BMJ, Londres, v. 19, p. 334-1044, 2007.) e sua disponibilidade nas bases de dados utilizadas. Daquelas amplamente empregadas em estudos semelhantes, apenas o tipo de admissão (emergência/eletiva) não pôde ser utilizado devido à sua indisponibilidade na CIH.

As análises foram desenvolvidas utilizando-se o pacote estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS).

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 02234312.3.0000.5240; parecer número 78617, de 23 de agosto de 2012).

Resultados

Os 426 hospitais do estado de São Paulo avaliados quanto ao seu desempenho registraram 2.001.522 internações pelas causas selecionadas no período de estudo. Eram, na maioria, de menor porte, localizados no interior do estado e de natureza jurídica privada sem fins lucrativos. Cerca de 25% deles apresentavam arranjo de financiamento público, 22% privado, 26% públicos mistos, 23% mistos, e 3% privados mistos (tabela 1). Cerca de 29% das internações foram de pacientes mais jovens, com até 49 anos, sendo o segmento populacional menos expressivo o composto por idosos com 90 anos ou mais. Apenas 4% possuíam comorbidades classificadas pelo IC, mas 18% possuíam outra comorbidade não utilizada na composição deste índice. Quase 50% deles apresentaram tempo de permanência entre 2 e 5 dias. Os três principais motivos de internação se concentraram nos seguintes diagnósticos principais: pneumonia - J18 (10%), insuficiência cardíaca - I50 (8%) e Colelitíase - K80 (7%). A maioria das internações foi para tratamento clínico (77%), e o uso de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) foi de apenas 8%. Em relação ao pagamento da internação, 69% corresponderam ao SUS, 28% aos planos de saúde e somente 3% particular (tabela 1).

Tabela 1
Características dos hospitais e internações – São Paulo, 2008 a 2010

A capacidade preditiva do modelo final, a melhor entre os cinco modelos testados, foi igual a 0,815 (IC 95%: 0,814-0,816), agregando poder de discriminação, comparativamente ao modelo de base composto apenas pelas variáveis idade e sexo, cuja estatística C foi 0,651 (IC 95%: 0,650-0,652). O gráfico 1 exibe a evolução da estatística C em função da entrada de cada uma das variáveis de risco nos modelos testados.

Gráfico 1
Evolução da estatística C dos modelos de ajuste de risco avaliados – São Paulo, 2008 a 2010

O modelo de regressão logística final, utilizado para predição das mortes esperadas, (disponível com os autores), indicou maior chance de óbito para internações de pacientes do sexo masculino, com faixas etárias mais avançadas, com IC maior que zero, com outra comorbidade e que permaneceram por um dia no hospital (resultados não apresentados). Cabe ressaltar que a chance de óbito apresentou importante variação, segundo o diagnóstico principal.

A taxa de mortalidade hospitalar bruta correspondeu a 11,5%, variando entre 0,3 e 26,9% nos 426 hospitais incluídos; a taxa de mortalidade padronizada foi 11,5%, mas variou entre 2,7 e 20,0% (tabela 2). No total, 179 hospitais tiveram desempenho pior que o esperado, com RMHP maior que 100, e 243 melhor que o esperado, com RMHP menor que 100. A RMHP variou entre 5,6 e 204%, sendo o desempenho pior que o esperado no conjunto dos hospitais de arranjo de financiamento público; igual ao esperado nos hospitais públicos mistos e mistos; e melhor que o esperado nos privados mistos e privados. Os resultados indicam diferenças significativas entre esses grupos (tabela 2).

Tabela 2
Classificação do desempenho dos hospitais, segundo a razão de mortalidade hospitalar padronizada (RMHP) – São Paulo, 2008 a 2010

O gráfico 2 exibe a variação da RMHP segundo categorias de arranjos de financiamento. A distribuição dos hospitais apresentou importante heterogeneidade, indicando que mesmo no grupo de hospitais de arranjo público, onde o desempenho foi pior que o esperado, existem hospitais cujo resultado foi melhor que o esperado; assim como nos hospitais de arranjo privado, onde o desempenho foi melhor, existem hospitais cujo resultado foi pior do que o esperado.

Gráfico 2
Boxplot da variação da razão de mortalidade hospitalar padronizada (RMHP), segundo arranjos de financiamento dos hospitais – São Paulo, 2008-2010

Se analisados os casos por fontes de pagamento da internação, observa-se maior RMHP nos casos SUS, em todos os arranjos de financiamento. No entanto, para o grupo de hospitais classificados como privados mistos ou privados, o desempenho foi melhor que o esperado (RMHP < 100) independentemente da fonte de pagamento. Já nos hospitais de arranjo público, público misto ou misto, a RMHP indica desempenho pior que o esperado apenas para os pacientes SUS, ficando os demais casos classificados como desempenho melhor que o esperado (gráfico 3).

Gráfico 3
Razão de mortalidade hospitalar padronizada (RMHP) por fontes de pagamento das internações, segundo arranjos

Nota: o valor SUS em hospitais de arranjo privado refere-se à filantropia, não há AIH para esses hospitais.

Discussão

Os resultados apresentados indicaram que a metodologia proposta por Jarman (JARMAN , 1999JARMAN, B. et al. Explaining differences in English hospital death rates using routinely collected data. BMJ, Londres, v. 318, p. 1515-1520, 1999.; JARMAN , 2010JARMAN, B. et al. The hospital standardized mortality ratio: a powerful tool for Dutch hospitals to assess their quality of care? Qual. Saf. Health Care, Londres, v. 19, p. 9-13, 2010.) é aplicável às bases de dados brasileiras, tendo como importante benefício a possibilidade de avaliar um maior número de prestadores já que, diferentemente das análises por causas específicas, essa abordagem permite a inclusão de hospitais com perfis de casos variados. A especificidade das bases de dados brasileiras e a necessidade de realização de adaptações na metodologia aplicada dificultam a comparação dos resultados com aqueles de outros países (JARMAN , 2010JARMAN, B. et al. The hospital standardized mortality ratio: a powerful tool for Dutch hospitals to assess their quality of care? Qual. Saf. Health Care, Londres, v. 19, p. 9-13, 2010.; CIHI, 2007CANADIAN INSTITUTE FOR HEALTH INFORMATION (CIHI). HSMR: a new approach for measuring hospital mortality trends in Canada. Ottawa: CIHI, 2007.; IHI, 2003INSTITUTE FOR HEALTHCARE IMPROVEMENT (IHI). Move your dot: measuring, evaluating, and reducing hospital mortality rates (Part 1). Cambridge: IHI, 2003.). No entanto, são etapas comuns a diversos estudos a adaptação dos conceitos intrínsecos dessa metodologia aos dados disponíveis em cada local (BURNETT , 2013BURNETT, S. et al. Prospects for comparing European hospitals in terms of quality and safety: lessons from a comparative study in five countries. Int. J Qual. Health Care, Oxford, n. 1, p. 1-7, 2013.). Neste estudo, o modelo de risco adotado utilizando as informações registradas na base de dados do estado de São Paulo apresentou boa capacidade discriminativa (C= 0,815) (AYLIN; BOTTLE; MAJEED, 2007AYLIN, P.; BOTTLE, A.; MAJEED, A. Use of administrative data or clinical databases as predictors of risk of death in hospital: comparison of models. BMJ, Londres, v. 19, p. 334-1044, 2007.), resultado superior a outros estudos em que se analisou condições específicas em dados administrativos brasileiros (MARTINS, 2010MARTINS, M. Uso de medidas de comorbidades para predição de risco de óbito em pacientes brasileiros hospitalizados. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 3, p. 448-456, 2010.). Se por um lado a boa capacidade preditiva e a inclusão de diversos prestadores nas análises se constituem em vantagem da metodologia utilizada, por outro, deve-se destacar que esta também pode ser considerada mais imprecisa, justamente por incluir casos de natureza variada com risco heterogêneo, possibilitando questionamentos acerca da validade causal e atribuível (VAN GESTEL , 2012VAN GESTEL, Y. R. B. M. et al. The hospital standardized mortality ratio fallacy: a narrative review. Med. Care, Filadélfia, v. 50, n. 8, p. 662-667, 2012.; DONABEDIAN, 2002DONABEDIAN, A. An introduction to quality assurance in health care. Oxford: Oxford University Press, 2002.).

No caso específico deste estudo, vale destacar que o recorte utilizado para inclusão de hospitais, segundo o volume de internações e mortes observadas, foi inferior ao adotado na abordagem de Jarman . (1999)JARMAN, B. et al. Explaining differences in English hospital death rates using routinely collected data. BMJ, Londres, v. 318, p. 1515-1520, 1999., possibilitando, assim, a inclusão de estabelecimentos de menor porte, importantes na composição da rede hospitalar brasileira (MACHADO; MARTINS; LEITE, NO PRELOMACHADO, J. P.; MARTINS, M. S.; LEITE, I. C. Qualidade das bases de dados hospitalares no Brasil: alguns elementos. Rev. Bras. Epid., São Paulo, (no prelo).). Pelo mesmo motivo, não se restringiu o universo aos hospitais com serviço de emergência, como proposto originalmente.

O ajuste de risco realizado para o cálculo do número de mortes esperadas utilizou variáveis similares àquelas incluídas em outros estudos (CAMPBELL , 2012CAMPBELL, M. J. et al. Developing a summary hospital mortality index: retrospective analysis in English hospitals over five years. BMJ, Londres, v. 344, n. e1001, 2012.; SHARABIANI; AYLIN; BOTTLE, 2012SHARABIANI, M. T. A.; AYLIN, P.; BOTTLE, A. Systematic review of comorbidity indices for administrative data. Med. Care, Filadélfia, v. 50, n. 12, p. 1109-1118, 2012.). Contudo, a informação sobre comorbidade e índices compostos são menos utilizadas em estudos brasileiros devido ao sub-registro e incompletude dos dados, prejudicando o ajuste e limitando a precisão dos resultados (MARTINS, 2010MARTINS, M. Uso de medidas de comorbidades para predição de risco de óbito em pacientes brasileiros hospitalizados. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 3, p. 448-456, 2010.). Diante dessa realidade, o uso do diagnóstico principal no modelo de ajuste de risco refinou a mensuração da gravidade do caso.

Estudos sobre a análise das relações entre o desempenho clínico e fontes de pagamento das internações realizados com informações de outros países, especialmente nos EUA, apontam variações vantajosas para pacientes cobertos por seguros privados ou com pagamento do próprio bolso, quando comparados aos cobertos por seguros públicos (WEISSMAN; VOGELI; LEVY, 2013WEISSMAN, J. S.; VOGELI, C.; LEVY, D. E. The quality of hospital care for Medicaid and private pay patients. Med. Care, Filadélfia, v. 51, n. 5, p. 389-395, 2013.; SPENCER; GASKIN; ROBERTS, 2013SPENCER, C. S.; GASKIN, D. J.; ROBERTS, E. T. The quality of care delivered to patients within the same hospital varies by insurance type. Health Affairs, Millwood, v. 32, n. 10, p. 1731-1739, 2013.). Neste estudo, destacaram-se as diferenças na RMHP em hospitais privados e públicos, com vantagens para os primeiros. A categorização em arranjos de financiamentos que discriminam os hospitais mistos segundo o volume de casos com pagamento pelo SUS ou por planos e particulares indicou maior similaridade entre os privados mistos e privados do que entre públicos mistos e públicos. A análise da RMHP segundo fontes de pagamento aponta melhores resultados para pacientes com pagamento privado (planos ou particular) em todos os arranjos de financiamento, o que pode indicar que o desempenho é dependente da principal fonte de pagamento, independentemente do arranjo de financiamento do hospital. Tal resultado é preocupante, pois pode indicar a ocorrência de diferenças de práticas clínicas relacionadas com a fonte de pagamento da internação (SPENCER; GASKIN; ROBERTS, 2013SPENCER, C. S.; GASKIN, D. J.; ROBERTS, E. T. The quality of care delivered to patients within the same hospital varies by insurance type. Health Affairs, Millwood, v. 32, n. 10, p. 1731-1739, 2013.), ainda que dentro dos mesmos hospitais, onde as mesmas estruturas físicas se apresentam. Outra possibilidade seria uma heterogeneidade no grau de gravidade à admissão apresentado pelos pacientes do SUS e de planos de saúde ou particulares, fator de difícil mensuração com as variáveis disponíveis nos bancos de dados brasileiros e o desenho do presente estudo.

Os limites deste estudo recaem principalmente sobre a baixa qualidade e completitude dos dados utilizados para as análises, sobre a abordagem limitada da gravidade dos casos e sobre o uso da mortalidade global como medida de desempenho clínico. Essas questões se entrelaçam limitando a análise dos resultados, já que a validade da mortalidade hospitalar se associa à adequação do ajuste de risco e este depende da qualidade e abrangência das informações que compõem a gravidade do paciente e podem auxiliar na identificação de seu prognóstico. Justamente devido a problemas na qualidade e suficiência das informações sobre produção hospitalar, este estudo se circunscreveu unicamente ao estado de São Paulo.

Ao considerar as mudanças no perfil demográfico e epidemiológico que resultam no envelhecimento populacional e no consequente aumento de pacientes com prevalência de múltiplas morbidades crônicas, é de suma importância a ampliação dessas informações. Nesse sentido, em dezembro de 2015, foram abertos novos campos no Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do SUS para preenchimento de múltiplas comorbidades. Contudo, não parecem ter ocorrido ações de estímulo ao preenchimento. Além disso, cabe qualificar o sistema da Comunicação de Informação Hospitalar e Ambulatorial (CIHA), utilizado para reportar internações privadas, de forma a ampliar sua completitude e fidedignidade.

Conclusão

Ao comparar os hospitais analisados, destaca-se grande variação na RMHP, com desvantagens para hospitais públicos e públicos mistos, bem como para pacientes cuja fonte de pagamento da internação é o SUS, independentemente do arranjo de financiamento do hospital. As discrepâncias observadas segundo fontes de pagamento da internação em hospitais nos cinco tipos de arranjos de financiamento ilustram o risco de agravamento das iniquidades sociais e ainda retratam o mix público-privado com sobreposição da rede hospitalar brasileira. Nesse sentido, para subsidiar estratégias de melhoria da qualidade e gestão do sistema brasileiro de saúde, a avaliação de desempenho realizada neste estudo, com base no uso da metodologia da RMHP, mostrou-se viável. Contudo, dever-se-ão somar análises dos fatores organizacionais envolvidos nas diferenças de prática clínica, bem como aprofundar o conhecimento a respeito do grau de gravidade dos pacientes na admissão, ambos não captados ante as variáveis disponíveis nas bases de dados brasileiras. Embora haja espaço para refinamento da metodologia e apesar das limitações discutidas, a aplicação dessa metodologia para avaliação do desempenho clínico de hospitais pode contribuir para o acompanhamento da rede instalada no Brasil, constituindo-se em instrumento fundamental para o apoio e direcionamento de políticas públicas e regulamentações no País.

  • Suporte financeiro: não houve
  • Colaboradores
    Juliana Pires Machado e Mônica Martins participaram de todas as etapas de desenvolvimento do estudo e elaboração deste artigo; Iuri da Costa Leite participou da análise dos dados e revisão crítica do documento.

Agradecimentos

Agradecemos à Agencia Nacional de Saúde Suplementar e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    Abr 2016
  • Aceito
    Nov 2016
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