Partir e ficar de famílias em território marcado pela mineração de urânio: estudo merleau-pontyano** Recorte da dissertação de mestrado: FERRAZ, C. E. O. O perigo mora ao lado: convivência de famílias no contexto da mineração de urânio. 2013. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Saúde. Área de Concentração: Saúde Pública. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Jequié (BA).

The departing and staying of families at a territory marked by uranium mining: a Merleau-Pontyan study

Carla Eloá de Oliveira Ferraz Samia de Carliris Barbosa Malhado Patrícia Anjos Lima de Carvalho Luma Costa Pereira Edite Lago da Silva Sena Sobre os autores

RESUMO

Estudo fenomenológico baseado no referencial merleau-pontyano, com objetivo de desvelar a percepção de famílias do entorno da Unidade de Concentrado de Urânio em Caetité, Bahia, Brasil, sobre o residir em contexto de vizinhança com a mineradora. As descrições produzidas por meio de entrevistas em grupo com 12 familiares residentes da área de influência da mineradora foram submetidas à analítica da ambiguidade e revelaram a categoria: partir e ficar como (im)possibilidade de tornar-se outro, desvelando a ambiguidade vivenciada, em que a permanência no local envolvia a manutenção de vínculos com a natureza, a vizinhança, o trabalho rural, mas implicava prejuízos à saúde, finanças e existência.

PALAVRAS-CHAVE
Acontecimentos que mudam a vida; Saúde pública; Exposição ambiental; Mineração

ABSTRACT

Phenomenological study with merleau-pontyan referential, aiming to unveil the perception of families in the surroundings of the Uranium Concentrate Unit in Caetité - Bahia - Brazil, about living in a neighborhood context with the mining company. Descriptions produced through group interviews with 12 family members living in the area of influence of the mining company were submitted to analysis of the ambiguity and revealed the category: departing and staying as (im)possibility of becoming another, revealing the ambiguity experienced, where permanence in the site involved the maintenance of ties with nature, neighborhood, rural work, but implied damages to the health, finances and existence.

KEYWORDS
Life change events; Public health; Environmental exposure; Mining

Território marcado pela mineração de urânio: fragmentos de uma problemática

O ciclo do combustível nuclear em todas as suas fases (mineração, transporte, beneficiamento, uso em usinas e descarte) implica riscos e afeta a saúde humana de maneira complexa e perigosa, estendendo-se desde a exposição aguda revelada por acidentes em usinas até as elevadas incertezas e falta de conhecimento científico relacionados com os efeitos decorrentes da exposição crônica a baixas doses de radiação sobre a saúde dos trabalhadores e da população (MENKE; GUALLAR; COWIE, 2016MENKE, A.; GUALLAR, E.; COWIE, C. C. Metals in Urine and Diabetes in U.S. Adults. Diabetes, Nova Iorque, v. 65, n. 1, p. 164-71, 2016.). Neste estudo, enfatizamos a fase da 'mineração', entendida aqui como todo o processo de extração, beneficiamento e produção de concentrado de urânio.

O urânio, quando liberado ao meio ambiente em grandes quantidades, é ingerido por meio da cadeia alimentar, inclusive pela água contaminada ou pelo leite dos animais (LOFTS ., 2015LOFTS, S. et al. Assessment of co-contaminant effects on uranium and thorium speciation in freshwater using geochemical modelling. J Environ Radioact, Barking, v. 149, p. 99-109, 2015.). A sua acumulação no organismo humano depende da via de entrada, que pode ocorrer através da inalação, ingestão ou contato com a pele; da duração da exposição; da dose do composto químico do qual faz parte; e, da sua absorção (PUNCHER; BURT, 2013PUNCHER, M.; BURT, G. The reliability of dose coefficients for inhalation and ingestion of uranium by members of the public. Radiat Prot Dosimetry, Ashford, v. 157, n. 2, p. 242-54, 2013.; VICENTE-VICENTE ., 2010VICENTE-VICENTE, L. et al. Nephrotoxicity of uranium: pathophysiological, diagnostic and therapeutic perspectives. Toxicological sciences: an official journal of the Society of Toxicology, Oxford, v. 118, n. 2, p. 324-47, 2010.).

As atividades de exploração mineral são conhecidas pelos diversos impactos produzidos, como: geração de efluentes e rejeitos tóxicos; contaminação ambiental do solo, do ar e dos recursos hídricos; exposição ocupacional a substâncias tóxicas; entre outros. Ademais, o caso específico da exploração de urânio traz um elemento complicador, a radioatividade (HILL, 2012HILL, C. K. The low-dose phenomenon: How bystander effects, genomic instability, and adaptive responses could transform cancer-risk models. Bulletin of the Atomic Scientists, Chicago, v. 68, n. 3, p. 51-58, 2012.; THOMPSON, 2012THOMPSON, G. Unmasking the truth: The science and policy of low-dose ionizing radiation. Bulletin of the Atomic Scientists, Chicago, v. 68, n. 3, p. 44-50, 2012. ).

Embora a radiação ionizante seja considerada invisível, inaudível, inodora e insípida, possui um alto potencial de nocividade à saúde humana, podendo acarretar morte. O dano provocado ao organismo humano pela radiação depende da energia das partículas, tipo de radiação, distribuição no corpo e da taxa de eliminação. A síndrome aguda da radiação surge logo após a exposição humana a altas doses; quando a exposição é baixa, os efeitos, em geral, só aparecem ao longo dos anos (RAGE ., 2015RAGE, E. et al. Mortality analyses in the updated French cohort of uranium miners (1946-2007). Int Arch Occup Environ Health, Berlim, v. 88, n. 6, p. 717-30, 2015.).

A vivência com famílias que residem nesse contexto desvelou prejuízos associados às suas atividades, a exemplo de acidentes ocorridos em Unidades de Concentrado de Urânio (URA), confirmando a denúncia de um funcionário da bacia de finos, de que haviam sido identificados 236 furos nas mantas que deveriam impedir o contato do líquido com o solo, o que resultou em liberação de efluentes líquidos com concentração de urânio-238, tório-232 e rádio-226 no meio ambiente (GREENPEACE, 2008GREENPEACE, Ciclo do Perigo: impactos da produção de combustível nuclear no Brasil: Denúncia: contaminação da água por urânio em Caetité, BAHIA. 2008. Disponível em: <http://www.greenpeace.org/brasil/Global/brasil/report/2008/10/ciclo-do-perigo.pdf>. Acesso em: 15 set. 2016.
http://www.greenpeace.org/brasil/Global/...
).

Além da contaminação das águas, o uso intensivo dos recursos hídricos para as atividades de mineração tem drenado a água dos poços dos moradores e diminuído de forma drástica a oferta hídrica no entorno das minas (LISBOA , 2011LISBOA, M. V.; ZAGALLO, J. V. C.; MELLO C. C. A. Relatório da missão Caetité: violações de direitos humanos no ciclo do nuclear. Relatoria do direito humano ao ambiente, 2011. Disponível em: <https://br.boell.org/sites/default/files/downloads/499_Dhesca_Brasil_-_Missao_Caetite_-_Meio_Ambiente_-_2011.pdf>. Acesso em: 15 set. 2016.
https://br.boell.org/sites/default/files...
). Ademais, os impactos gerados pela mineração de urânio dizem respeito a um tipo de injustiça que torna as sociedades ainda mais desiguais, do ponto de vista econômico e social (LISBOA , 2011LISBOA, M. V.; ZAGALLO, J. V. C.; MELLO C. C. A. Relatório da missão Caetité: violações de direitos humanos no ciclo do nuclear. Relatoria do direito humano ao ambiente, 2011. Disponível em: <https://br.boell.org/sites/default/files/downloads/499_Dhesca_Brasil_-_Missao_Caetite_-_Meio_Ambiente_-_2011.pdf>. Acesso em: 15 set. 2016.
https://br.boell.org/sites/default/files...
; PORTO; PACHECO, 2009PORTO, M. M.; PACHECO T. Conflitos e injustiça ambiental em saúde no Brasil. Tempus. Actas em Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 4, n. 4, p. 26-37, 2009.; SILVA, 2015SILVA, R. F. G. Riscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para a justiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA. 2015. 208 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2015.).

Estudos com foco na interface da injustiça ambiental com as populações mais vulneráveis mostram uma significativa reflexão em torno da bioética da proteção, a qual se constitui por ferramentas teóricas e práticas que visam compreender o que pode ser útil para o enfrentamento e resolução de conflitos de interesses entre quem tem os meios que o capacitam para realizar sua vida e quem não os tem (SCHRAMM, 2008SCHRAMM, F. R. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. bioét. (Impr.), Brasília, DF, v. 16, n. 1, p. 11-23, 2008.; VIDAL ., 2014VIDAL, S. V. et al. Problemas bioéticos na Estratégia Saúde da Família: reflexões necessárias. Rev. bioét. (Impr.), Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 347-357, 2014.).

Ao priorizar os 'vulnerados' que não dispõem de tais meios, a bioética da proteção pretende respeitar concretamente o princípio de justiça, já que aplica a equidade como condição sine qua non da efetivação do próprio princípio de justiça para atingir a igualdade. Nessa perspectiva, a bioética da proteção pode ser pensada como meio prático para proteger seres vivos vulnerados contra ameaças que podem prejudicar, irreversivelmente, suas existências (SCHRAMM, 2008SCHRAMM, F. R. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. bioét. (Impr.), Brasília, DF, v. 16, n. 1, p. 11-23, 2008.; VIDAL 2014VIDAL, S. V. et al. Problemas bioéticos na Estratégia Saúde da Família: reflexões necessárias. Rev. bioét. (Impr.), Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 347-357, 2014.).

Nossa vivência durante o desenvolvimento da pesquisa intitulada: Identificação dos fatores de risco e diagnóstico de agravos ocupacionais relacionados à exposição ao urânio, realizada pelo Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) de Vitória da Conquista (BA), serviço vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS), nos fez ver inúmeros impactos direto da mineração de urânio na vida de pessoas residentes em comunidades rurais, sobretudo do ponto de vista econômico, já que, em geral, vivem da agricultura e o processo desvaloriza suas terras, tornando-as áridas e impossibilitadas para uma série de cultivos.

No entanto, percebemos que ainda são incipientes os estudos relacionados com a exposição humana à radiação de urânio no contexto brasileiro, sobretudo voltados a conhecer a percepção das populações envolvidas, haja vista a mineração ser uma atividade com poucas evidências sobre as implicações biopsicossociais para as populações humanas.

Essas reflexões nos conduziram à seguinte questão norteadora: qual a percepção de famílias sobre habitar no entorno da URA? Assim, este artigo objetiva desvelar a percepção de famílias do entorno de uma URA sobre o residir em contexto de vizinhança com a mineradora.

Estratégias utilizadas para a construção do saber

Trata-se de um estudo fenomenológico fundamentado na ontologia da experiência de Merleau-Ponty, que se configura na compreensão da experiência perceptiva como vivência essencial ambígua, que se processa na relação dialógica e na intercorporeidade (MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.). O autor discute o tema da percepção a partir da noção de 'corpo próprio'. O termo corpo refere-se à dimensão do processo perceptivo que os fenomenólogos entendem como sendo a nossa vivência do tempo - temporalidade - à retomada de um horizonte de passado que se impõe a nós, independentemente de nossa vontade. Já o termo próprio refere-se à possibilidade de 'tornar-se um outro eu mesmo', em função da dinamicidade que advém do processo perceptivo (MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.).

Logo, a noção de corpo para Merleau-Ponty não corresponde ao corpo psicofisiológico, embora este seja indispensável à sua ocorrência. Para o autor, o 'corpo próprio' refere-se à percepção humana, que se desvela sob cinco dimensões: 'corpo habitual, corpo perceptivo, corpo sexuado, corpo falante e corpo do outro' (MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.). Dimensões estas que serviram de base à compreensão das narrativas dos participantes do estudo.

A pesquisa ocorreu na zona rural de Caetité, Bahia, Brasil - município situado ao sudoeste do estado, que possui, aproximadamente, 48 mil habitantes (IBGE, 2010INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo demográfico 2010 completo de Caetité (BA). 2010. Disponível em: <http://www.informacoesdobrasil.com.br/dados/bahia/caetite/censo-demografico-2010/>. Acesso em: 15 set. 2016.
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), onde fica localizada a URA, única mina de urânio em operação no Brasil, implantada no ano de 2000 pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) (SILVA, 2015SILVA, R. F. G. Riscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para a justiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA. 2015. 208 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2015.). O empreendimento produz o concentrado de urânio, a principal matéria-prima utilizada na fabricação do combustível para as usinas atômicas de Angra 1 e 2 que funcionam no Rio de Janeiro, Brasil. Boa parte da população habitante dessa região é constituída de pequenos agricultores que já residiam ali antes da implantação da mineradora (VITÓRIA DA CONQUISTA, 2010VITÓRIA DA CONQUISTA. Secretaria Municipal de Saúde. Centro de Referência Regional em Saúde do Trabalhador - CEREST. Relatório parcial de pesquisa: Identificação de fatores de risco e diagnóstico de agravos ocupacionais relacionados à exposição ao urânio. Vitória da Conquista: SMS, 2010.).

Nesse contexto, surgiram os 12 integrantes do estudo, três membros de cada uma das quatro famílias participantes, todos residentes em quatro comunidades da área considerada de influência direta da URA, por estarem situadas em um raio de 20 km do centro do empreendimento, cujas relações socioeconômicas e culturais encontravam-se afetadas pela implantação e pela operação da mina (INB, 1997INDÚSTRIAS NUCLEARES DO BRASIL (INB). Complexo Uranífero Minero-industrial de Lagoa Real, Caetité/BA. 1997. Disponível em: <http://www.uesb.br/eventos/ebg/anais/4b.pdf>. Acesso em: 19 out. 2017.
http://www.uesb.br/eventos/ebg/anais/4b....
).

As famílias foram selecionadas por intermediação de uma Agente Comunitária de Saúde (ACS) que trabalhava no município e de seu esposo, residentes em uma das comunidades que compuseram o cenário do estudo. Com efeito, o fato de residirem em área adjacente à mineradora mostrou-se de extrema importância para a participação da vizinhança na pesquisa, visto que eles compartilhavam diretamente a problemática com os que ali residiam.

Como critérios de inclusão, estabelecemos o desejo das famílias em participar, serem moradoras das localidades citadas e residirem na região antes da implantação da mineradora. Estabeleceram-se como critérios de exclusão a idade inferior a 13 anos e a presença de defict auditivo ou cognitivo de algum participante familiar, já que essas características poderiam dificultar a compreensão sobre a participação na pesquisa.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o protocolo de nº 206.228/2013, seguindo as recomendações da Resolução nº 466 do Conselho Nacional de Saúde. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), autorizando a gravação, a utilização das falas e a publicação dos resultados. Apenas um menor de 18 anos, participante da pesquisa, assinou um Termo de Assentimento, na medida em que seus responsáveis assinaram o TCLE. Com vistas a garantir o anonimato, os participantes foram identificados com o nome de um minério ou de uma pedra preciosa.

Os participantes possuíam idades entre 13 e 79 anos, sendo a metade deles idosos. Cinco eram do sexo feminino e sete do sexo masculino. A maioria residia na localidade havia mais de 48 anos. No que diz respeito ao nível de escolaridade, um possuía ensino fundamental completo, e os demais tinham ensino fundamental incompleto. Somente um colaborador familiar era solteiro, e todos eram da religião católica.

A técnica de coleta de informações utilizada foi a entrevista aberta em grupo que ocorreu nas residências das quatro famílias. Cada entrevista teve a duração de aproximadamente duas horas, por meio da seguinte pergunta: 'Como é para vocês viverem aqui nessa localidade?'. Essa pergunta foi importante para proporcionar a abertura ao outro e para não perder de vista o objetivo principal do estudo.

As descrições foram submetidas à analítica da ambiguidade, técnica desenvolvida para a análise de descrições empíricas em estudos com abordagem fenomenológica. Esta tem como matriz teórica a fenomenologia de Edmund Husserl e a ontologia da experiência de Merleau-Ponty e objetivou o desvelamento de ambiguidades que se mostraram por meio da intersubjetividade entre pesquisador e participantes (SENA 2010SENA, E. L. S. et al. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm., Porto Alegre, v. 31, n. 4, p. 769-75, 2010.).

A partir das descrições vivenciais, a analítica consistiu em perceber as ambiguidades e objetivá-las sob a forma de categorias. Em seguida, procedemos à análise propriamente dita: organizamos os textos referentes às transcrições das gravações na íntegra; realizamos leituras minuciosas do material, na perspectiva de fazer ver as vivências essenciais que se constituem como experiências perceptivas nas dimensões sensível e reflexiva; em seguida, permitimos que a leitura do material fluísse livremente, deixando os fenômenos se mostrarem em si mesmos, a partir de si mesmos (SENA ., 2010SENA, E. L. S. et al. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm., Porto Alegre, v. 31, n. 4, p. 769-75, 2010.).

Embora o pensamento merleau-pontyano se oponha à objetividade, a produção científica impõe-nos a estabelecê-la. Assim, a leitura minuciosa das descrições emergentes do diálogo com as famílias conduziu-nos a responder ao objetivo do estudo a partir da categoria: partir e ficar como (im)possibilidade de 'tornar-se outro': vivências de famílias no contexto da mineração de urânio.

Partir e ficar como (im)possibilidade de 'tornar-se outro': vivências de famílias no contexto da mineração de urânio

As descrições das vivências dos participantes da pesquisa desvelaram que a instalação da mineradora na região implicou tanto benefícios à vida dos moradores, caracterizados por acesso à energia elétrica, abertura de mercado de trabalho, facilidade de transporte para a cidade, atendimentos básicos de saúde, quanto prejuízos, como a contaminação radioativa socioambiental e o aumento de morbimortalidade, entre outros. Cientes dessa realidade, as famílias vivenciaram uma ambiguidade entre partir e ficar.

Tal ambiguidade se desvelou quando os participantes refletiram sobre o fato de residirem em contexto de vizinhança com uma mineradora e fez ver que, independentemente da vivência, seja ela positiva ou negativa, sempre há possibilidade de 'tornar-se outro', exceto na morte, que consiste na experiência mais radical dos seres humanos, uma vez que não há mais diálogo nem intersubjetividade (MERLEAU-PONTY, 2002MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.).

A intersubjetividade é marcada por uma 'condição corpórea' que se dá entre ações individuais e coletivas, uma vez que o corpo não só expressa a presença do outro como nos torna conscientes da nossa presença (MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.). Assim, como os prejuízos só passaram a ser vistos após o contato dos participantes com os benefícios de residirem próximo a uma mineradora, confirmam a ideia de que a consciência de nós mesmos se dá após termos 'frequentado' o outro (DAOLIO; RIGONI; ROBLE, 2012DAOLIO, J.; RIGONI, A. C. C.; ROBLE, O. J. Corporeidade: o legado de Marcel Mauss e Maurice Merleau-Ponty. Pro-Posições, Campinas, v. 23, n. 3 (69), p. 179-193, set./dez. 2012.; MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.).

Essa percepção encontra eco na fala dos participantes ao destacarem a importância das amizades construídas ao longo dos anos e a dificuldade em separarem-se; outros disseram que preferiam continuar naquela comunidade, em função da história de suas famílias e das lembranças do passado, reforçando a noção de intersubjetividade como uma trama comum que faz ver que eu só posso existir com o outro (SANTOS, 2015SANTOS, R. A ressignificação da percepção e a intersubjetividade em Merleau-Ponty. Griot: Revista de Filosofia, Amargosa, v. 12, n. 2, p. 196-212, 2015.). Ademais, um tema em comum apareceu em todas as falas: o fato de ter nascido e crescido naquele lugar, ou seja, o enraizamento daqueles que vivem no contexto da mineração.

Reflexões sobre o lugar do nascimento, da profissão, do ambiente, conferem ao ser humano um sentido de raiz, por sua participação na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro (FARIAS; PINHEIRO, 2013FARIAS, T. M.; PINHEIRO, J. Q. Vivendo a vizinhança: interfaces pessoa-ambiente na produção de vizinhanças "Vivas". Psicol. estud., Maringá, v. 18, n. 1, p. 27-36, 2013.; WEIL, 2008WEIL, S. O enraizamento: prelúdio para uma declaração dos deveres para com o ser humano. Bauru: EDUSC, 2008.). Assim, o enraizamento, embora seja de difícil definição, pode se configurar como uma necessidade importante da natureza humana.

O abandono do lugar de origem, acompanhado da renúncia de tudo o que foi construído durante anos e por várias gerações, não era uma questão de simples decisão entre partir ou ficar, pois determinava às pessoas sensações de perdas irreparáveis. Deixar para trás o lugar em que nasceu, viveu, atuou, bem como as relações que se estabeleceram ali, poderiam constituir-se uma vivência de desenraizamento (FARIAS; PINHEIRO, 2013FARIAS, T. M.; PINHEIRO, J. Q. Vivendo a vizinhança: interfaces pessoa-ambiente na produção de vizinhanças "Vivas". Psicol. estud., Maringá, v. 18, n. 1, p. 27-36, 2013.; WEIL, 2008WEIL, S. O enraizamento: prelúdio para uma declaração dos deveres para com o ser humano. Bauru: EDUSC, 2008.).

Na perspectiva merleau-pontyana, essa vivência poderia constituir-se como uma redução da possibilidade do tornar-se 'outro eu mesmo'. Assim, afastar-se de suas raízes podia implicar perda de si, como percebemos nas seguintes falas:

[...] estamos aqui há mais de 48 anos, aqui é bom porque foi onde nós nascemos e nos criamos [...]. (Alexandrita).

[...] A roça foi onde nasci, e já estou acostumado. (Rubi).

[...] Eu nasci, cresci, e estou aqui até hoje! (Esmeralda).

[...] Nós nascemos e criamos aqui. Eu sempre falo que tem um pouquinho de tempo que eu moro aqui, só 58 anos de nascido. (Diamante).

[...] Todos nós temos amor por onde nós nascemos e fomos criados [...] Eu nasci aqui, fui para São Paulo, morei no Juazeiro, daí tornei voltar pra terra onde meu umbigo foi enterrado. (Cristal).

A fala de Cristal fez menção ao fato de que, em determinadas regiões do Brasil, é comum a prática de enterrar o coto umbilical de recém-nascidos, acreditando-se que o lugar onde o coto foi enterrado pode influenciar no destino da criança. Contudo, sob lentes merleau-pontyanas, percebemos que há no rito muito mais do que uma prospecção de futuro, há também um senso de pertença, pois simboliza uma parte do ser que foi plantada naquele território, o que implica o enraizamento de muitos participantes com aquele lugar.

Ademais, é importante ressaltarmos não apenas a existência de vínculos afetivos com o ambiente, mas também a relevância desses vínculos para a qualificação da existência humana. O lugar em que se vive vai além de um espaço físico, ele corresponde ao território das relações que se estabelecem com a rede de afinidades e diferenças, que servem como base para a construção da identidade sociocultural, como nos mostraram os relatos:

[...] não queria sair [...] mas se está dando na cabeça dos filhos, o que eu posso fazer? Eu mais o velho vamos ficar aqui sozinhos? (Cristal).

Se a gente receber a indenização, ir embora e olhar para trás e ver que deixou uns, a gente já sente [...] sair e deixar o vizinho, isso é muito chocante! (Diamante).

Essas falas retomaram a perspectiva dos vínculos sociais, remetendo-nos às reflexões de Merleau-Ponty acerca do 'corpo habitual', que corresponde à noção de fenômeno como uma totalidade que se impõe a nós, independentemente de nossa vontade (MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.). O cotidiano das famílias do entorno da mineração se mostrou marcado pela presentificação do 'corpo habitual', cujo desdobramento engendrou a vivência ambígua entre partir e ficar, ou seja, essas dimensões apareceram de forma fenomênica à percepção dos participantes do estudo, desvelando a retomada de perfis ambíguos que envolviam, simultaneamente, a retomada de possíveis perdas em vários domínios e a de possíveis ganhos também.

Em ambas as possiblidades, ocorreu o fenômeno, descrito por Merleau-Ponty, da experiência do 'outro eu mesmo', enquanto movimento de transcendência da percepção das famílias ao estabelecerem contato com o contexto da mineração e desvelarem dois perfis de um mesmo fenômeno (MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.). Esse movimento trouxe à luz a noção de que o corpo sempre ultrapassa o imediato, em busca do sentido, da natureza do ser que apesar de sempre nova a cada percepção, nunca aparece sem um passado, sem realçar a experiência do corpo no mundo, nas relações, na historicidade, na cultura (NÓBREGA, 2014NÓBREGA, T. P. Corpo e natureza em Merleau-Ponty. Revista Movimento, Porto Alegre, v. 20, n. 3, p. 1175-1196, 2014.).

Ademais, ressaltamos que a experiência, associada à possibilidade de emigração do território de origem, ocorreu, principalmente, pelo viés da intersubjetividade, mediante o encontro entre pessoas e culturas, tradições e perspectivas, advindos com a inserção da URA naquela zona rural. Nessa perspectiva, a intersubjetividade vivenciada por essas famílias possibilitou não somente a construção de vínculos com a comunidade, mas também promoveu processos de autoidentidade e de identificação com o outro e com o mundo, bem como a projeção de um vir a ser distante dessas referências de origem (MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.).

Assim, a interrupção da experiência do 'outro', pela possibilidade de saída do território, parecia sinalizar um desenraizamento àquelas famílias - distanciamento das raízes, da casa em que nasceu e cresceu, do contato com a natureza, do exercício da função de lavrador, dos vínculos afetivos estabelecidos com a vizinhança que, há décadas, serviu como fonte de compartilhamento de saberes e valores.

Desse modo, a vivência do 'corpo do outro' ocorre não apenas pela presentificação criativa do 'corpo habitual', mas também pelo agir espontâneo do 'corpo perceptivo', dimensão que se pode compreender no contexto vivencial dos participantes do estudo nas seguintes circunstâncias: quando movidos pelo sentimento de enraizamento, vivenciavam um sentido de permanência no território de origem; quando mobilizados pelos sentimentos de incerteza, medo e preocupação devido aos efeitos radioativos da mina e do longo período de estiagem, vivenciavam um sentido de deixar a região de origem. Assim, o 'corpo perceptivo' se referiu à ação imediata do 'corpo próprio' impulsionado por sentimentos.

Estar enraizado é habitar um espaço próprio, é sentir-se em casa. Vários são os elementos que compõem uma morada em que se pode considerar como própria, entre eles, a história, as memórias, as pessoas e os vínculos que se estabelecem, logo, não pode haver morada sem um território com a sua totalidade (FARIAS; PINHEIRO, 2013FARIAS, T. M.; PINHEIRO, J. Q. Vivendo a vizinhança: interfaces pessoa-ambiente na produção de vizinhanças "Vivas". Psicol. estud., Maringá, v. 18, n. 1, p. 27-36, 2013.; WEIL, 2008WEIL, S. O enraizamento: prelúdio para uma declaração dos deveres para com o ser humano. Bauru: EDUSC, 2008.). De outro modo, a saída do território significa desenraizar-se, afastar-se das pessoas que fazem parte de suas tradições e histórias, nesse contexto da pesquisa, em função da dominação e espoliação econômica, processo que privilegia o acúmulo do capital em detrimento da cultura e tradição desses povos da zona rural (WEIL, 2008WEIL, S. O enraizamento: prelúdio para uma declaração dos deveres para com o ser humano. Bauru: EDUSC, 2008.).

O desenraizamento ainda pode se constituir como um assassinato do passado, que é construído pelo homem a partir de todo o patrimônio herdado em sua existência; aniquilá-lo significa, potencialmente, desferir a capacidade das pessoas de construírem seu futuro, pois este depende da existência do passado. Em convergência, esse pensamento faz eco à noção merleau-pontyana de 'corpo falante', que consiste no potencial de nossas expressões, sejam elas artísticas ou não, de produzirem outras falas.

Os grupos familiares podem ser configurados como 'corpo falante', na medida em que se mostraram como espaços de produção de falas, de relação dialógica, de intersubjetividade. Nessa direção, a perspectiva do 'corpo falante' pressupõe que a fala não constitui o código e a expressão do pensamento, ao contrário, o pensamento articula-se à medida que as falas vão sendo desveladas (MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.). Portanto, aprender a ver as coisas que se processam a partir do 'corpo falante' é adquirir um novo uso do 'corpo próprio', é enriquecer e reorganizar o esquema corporal - uso do 'corpo habitual' (MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.).

O relato seguinte revelou a ambiguidade do 'corpo próprio' ao se referir ao sentido de 'tranquilidade' (sossego) das famílias que residiam no entorno da mineradora:

Hoje se a gente olhar pelo outro lado não é nem vontade, é uma necessidade de sair por outras preocupações. [...] aqui é um sossego, uma tranquilidade, à noite não tem barulho nenhum, mas tem outras preocupações que nos leva a repensar se vale a pena continuar aqui nesse sossego que a gente acha que tem, porque na verdade é um sossego que a gente não tem. (Esmeralda).

Assim, a perspectiva da intersubjetividade humana, proposta pelo filósofo, nos faz ver, por outro lado, que, em algum nível, o encontro autêntico e dialógico desses familiares com um novo território existencial pode impulsionar-lhes a retomada de vivências e novos sentidos do existir no mundo, de modo que o 'tornar-se outro', inesperadamente, pode lhes ocorrer. O aprendizado pelo 'corpo falante' contribui para vivências humanas de possibilidades de inserção no mundo e de ressignificações de trajetórias de vida, que desvela um 'outro' que é, ao mesmo tempo, enraizamento e transcendência, igualdade e diferença.

As raízes, traduzidas como a nossa participação natural na existência coletiva, o que envolve tudo aquilo que produzimos em nossas histórias de vida, constituem 'falas faladas', que sempre abrem possibilidades a outras 'falas' (MERLEAU-PONTY, 2015______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015.). Logo, sob o olhar de Merleau-Ponty, percebemos que o desenraizamento das famílias, por conta da saída do território de origem, pode promover uma descontinuidade do 'corpo falante' para muitos familiares, e, por conseguinte, do 'corpo do outro', implicando a redução da possibilidade de 'tornar-se outro', por meio das relações vivenciadas com antigos contextos existenciais.

Assim, ao nos referirmos a contextos existenciais, a maior parte dos participantes nasceram, cresceram, casaram, tiveram os seus filhos e os criaram na região. São homens e mulheres que tinham uma relação de vizinhança e que se uniram com o objetivo de constituir uma família, de construir vínculos socioafetivos, conforme apareceu no relato a seguir:

A gente se conheceu aqui nas festinhas. Eu morava com meu pai e ele tinha um irmão que morava lá pertinho da gente, ele casou com uma prima minha que morava lá também, eu sempre ia na casa dela e a gente se conheceu. Criei meus filhos aqui. (Águas Marinhas).

As famílias entrevistadas eram, em sua maioria, patriarcais, sendo possível perceber o patriarca como o responsável pelas questões financeiras e a função feminina centrada nos cuidados domésticos e da família. Nesse modelo, as mulheres apareceram como as grandes responsáveis pela organização da vida privada; e o homem, pela vida pública familiar. Os participantes, porém, não descartaram a possibilidade de mulheres assumirem o sustento da casa, plantando e cuidando dos animais, enquanto os homens, eventualmente, assumiam o cuidado das crianças. Ademais, os filhos casados, quando não encontravam oportunidades de trabalho fora de casa, construíam suas casas próximas as dos pais, sogros e sogras, o que permitia às famílias se encontrarem com maior frequência.

Nesse contexto, o estudo fez ver que, atualmente, a permanência no território não garante mais às famílias a manutenção dos vínculos afetivos estabelecidos com a vizinhança, uma vez que, há algum tempo, boa parte dos vizinhos vinha abandonando suas terras, conforme vemos na fala seguinte:

[...] eu tenho muita vontade de sair daqui porque eles tiraram todo mundo (a empresa idenizava as famílias pela entrega das terras), todos os vizinhos nossos. Indenizou o pessoal e eles foram embora. (Ortoclásio).

O relato de Ortoclásio nos convoca a refletir sobre a noção merleau-pontyana de 'corpo sexuado', que se refere à experiência gozosa do diálogo, intersubjetividade e entrelaçamento proporcionados pelas relações socioafetivas com as pessoas e com o 'habitat', o que também nos permite vivenciar o 'corpo do outro', isto é, a experiência de um 'outro eu mesmo'. Logo, tanto partir como ficar no território afetaria a sexualidade dos participantes da pesquisa em seu sentido existencial:

Aqui é um sossego, chega à noite não tem barulho. (Esmeralda).

[...] se fosse para sair eu sentia mais falta da roça e das criações (animais). (Ortoclásio).

[...] quando ele tá doente, ele gosta de sentir o cheiro do gadinho dele, parece até que ele sara. (Cristal).

[...] aqui, quando amanhece o dia nós já estamos caminhando para aqui e para acolá, mexendo com gado, com uma coisa e outra. (Topázio).

As falas mostraram como a dimensão social da vida comunitária e do enraizamento presentificaram um passado e um futuro que se entrelaçavam, corroborando o movimento ambíguo do 'corpo próprio': em nosso 'corpo atual' (presente), nós nos comportamos de maneira a procurar algo desde um passado, e se não temos formulado aquilo que procuramos, vamos buscá-lo onde não estamos, à nossa frente.

Assim, a noção de 'corpo perceptivo', em Merleau-Ponty (2015)______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2015., remete-se a uma matéria atual que se abre para aquilo que ela não é, para a alteridade, enfim, para aquilo que está disposto em nossa vida como uma iminência. Nessa perspectiva, a permanência na região poderia também sugerir a manutenção do vínculo com a natureza, contudo, a terra, as vegetações e os animais já não eram mais os mesmos, como mostram as descrições:

[...] antes a produção estava boa, só não estava comendo porque a água estava ficando estranha, os peixes e os sapos que caiam dentro, morriam [...] Nós estamos muito bem 'beneficiados', nossa casa toda rachada recebendo essa poluição todo dia; um pé de planta leva anos para pôr uma fruta, mudou até o sistema das plantas produzirem. (Quartzo).

[...] tem os estrondos na base do meio-dia pra poder quebrar as pedras, dizem eles que não tem perigo, mas tem hora que chega passar aquela catinga de enxofre. Quando vejo que vem a poeira eu fecho a janela, mas não adianta. (Alexandrita).

Ao refletir sobre a possibilidade de contaminação por meio do gás radônio, os participantes desvelaram a vivência do 'corpo habitual e falante'. Segundo os familiares, o deficit hídrico decorrente da seca, exacerbado pelo desvio das águas dos poços e nascentes pela mineradora; os vazamentos de material radioativo no lençol freático e a poluição do ar em função da emissão do radônio eram repercussões importantes decorrentes das atividades uraníficas, responsáveis por boa parte da degradação ambiental que atingia a região.

Outro elemento importante presente nos relatos dos participantes foi a expressão do 'corpo sexuado' associado ao prazer do exercício da profissão de lavrador. A identidade laboral dessas pessoas encontrava-se entrelaçada ao trabalho na terra, ao trato dos animais (criações) e ao cuidado com as plantações, o que foi percebido nas seguintes falas:

Eu gosto do cheirinho da roça, agora mesmo minha terra está lá toda aradinha. Com minha idade eu não vou para a cidade [...] chega lá eu não posso trabalhar e ficar parado não dá certo! (Ortoclásio).

[...] se ele for para a cidade, chega lá ele fica só dormindo e aqui não. Eu gosto daqui moça, porque aqui você cria uma galinha. (Cristal).

[...] Quando eu era novo eu podia sair, comprar um lugar fora e trabalhar, hoje se eu for para a cidade, eu acho que eu morro mais ligeiro. (Topázio).

[...] uma pessoa igual a ele não arranja trabalho nenhum, quem é que vai empregar gente velho? Se for, só vai ficar dentro de casa, [...] e com isso, vai embora mais ligeiro. (Alexandrita).

Para aqueles que dependiam da terra, cujos projetos de vida vinculavam-se diretamente a ela, a ideia de partir trazia insegurança, aniquilamento de sonhos e incerteza de subsistência. Retirar essas pessoas do contexto em que elas viviam, além de gerar insegurança quanto à manutenção do sustento, constituía-se em perda existencial, uma vez que colocava em risco o lugar ocupado por elas como mantenedoras de suas famílias. O trabalho rural oferecia a essas pessoas a possibilidade constante de 'tornar-se outro'. Por meio dele, elas não eram apenas homens e mulheres, mas 'homens e mulheres do campo', que possuíam seu 'lugar no mundo', o lugar da profissão, do trabalho, parte de si mesmo.

Adicionalmente, a falta de perspectivas de trabalho para pessoas idosas nas grandes cidades apareceu de forma recorrente nos relatos dos mais velhos. Não obstante as atividades rurais pareçam exigir maior vigor físico dos trabalhadores, o que nos remete a pensar que não sejam mais adequadas as capacidades funcionais das pessoas idosas, essas atividades forneciam-lhes um espaço de valorização pessoal e sociocultural, pois mesmo com as limitações físicas, foram estimadas pelo saber rural que construíram ao longo dos anos na lida com a terra. Assim, o trabalho rural permitiu que essas pessoas idosas tivessem a perspectiva de continuarem ativas e valorizadas, diferentemente do que ocorre comumente no contexto urbano, o qual costuma segregar, excluir e produzir isolamento dessa faixa etária.

No que se referiu às indenizações das famílias por parte da mineradora, um dos participantes do estudo relatou que muitos dos beneficiados não souberam administrar o montante que receberam:

[...] na época teve indenização caríssima! [...] das quarenta e três famílias que receberam, três vivem bem, as quarenta restante vive em situação de miséria. A gente aqui da roça, tem experiência com o produzir, colher, armazenar e deixar um pouco para comer. Alguns mudaram para a cidade, tentaram comércio, mas não se adaptaram, pois eles não sabiam lidar com dinheiro, esbanjaram, compraram casas boas na cidade, daí foi reduzindo para comprar uma menor para ir comendo [...] até que acabaram sem nada. Hoje, as pessoas da família tem que fazer cesta básica para levar pra eles. (Quartzo).

Apesar de a empresa ter indenizado boa parte das famílias de sua área de influência direta, a perspectiva de abandono do lugar gerou sérias repercussões à vida de alguns:

[...] seu João, por exemplo, enfartou na época que estava sendo indenizado, ele não queria sair da casa dele, falou que só saía morto e saiu morto mesmo. Faltavam poucos meses para receber, já tinha negociado, aí enfartou. No início ele chorava, ficava muito estressado porque tinha muitas reuniões aqui na comunidade, ele dizia que não ia sair, ele só vendeu a propriedade porque foi obrigado, porque todas as pessoas já tinham vendido, ele teve que vender a dele também. (Esmeralda).

Apenas o adolescente entrevistado revelou expectativa positiva referente à trajetória iminente de retirada do seu local de origem, estando associada às novas oportunidades em outro território: "Aqui não tem futuro não. Quero ir para a cidade, para eu me formar, pois quero trabalhar como eletricista" (Coridon).

Nesse sentido, a falta de perspectivas de emprego que assola regiões pobres, como essa, é um problema que impulsiona grande quantidade de pessoas a buscarem perspectivas de trabalho em grandes centros, situação que exacerba o fenômeno do êxodo rural. A abertura de um mercado laboral proveniente da implantação de grandes empresas em regiões onde a oferta trabalhista é menor que a demanda de trabalhadores consiste, em sua maioria, em cargos terceirizados. Esse fato decorre, entre outros fatores, da falta de qualificação da população local, problemática que estimula a precarização do trabalho, processo caracterizado pela submissão a condições laborais insalubres e pela não garantia dos direitos trabalhistas.

Assim, um aspecto central dos conflitos ambientais é a sua relação com empreendimentos econômicos e produtivos que marcam o modelo de desenvolvimento em várias regiões, como a expansão das monoculturas, da mineração e da siderurgia (PORTO; PACHECO, 2009PORTO, M. M.; PACHECO T. Conflitos e injustiça ambiental em saúde no Brasil. Tempus. Actas em Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 4, n. 4, p. 26-37, 2009.; SILVA, 2015SILVA, R. F. G. Riscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para a justiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA. 2015. 208 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2015.). Tais investimentos disputam recursos naturais e uso dos territórios com populações indígenas, quilombolas e agricultores familiares, além de explorar a força de trabalho local, submetendo as pessoas a condições de trabalho perigosas e com elevada carga de atividades. Nesse sentido, a saúde das populações deveria estar diretamente associada a uma visão mais ampla de saúde dos territórios, por meio de modelos de desenvolvimento que respeitasse a integridade das populações e dos ecossistemas (FREITAS; PORTO, 2006FREITAS, C. M.; PORTO, M. F. S. Saúde, ambiente e sustentabilidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.; SILVA, 2015SILVA, R. F. G. Riscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para a justiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA. 2015. 208 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2015.).

Em países em desenvolvimento, como o Brasil, a possibilidade de consumo das pessoas varia consideravelmente, de acordo com o nível de renda e em função da sua localização, o que, por sua vez, determina a situação de cada um como produtor e como consumidor. Com isso, as circunstâncias que levam um indivíduo residente da zona rural de um município pobre, assolado pelo longo período de estiagem, para o trabalho terceirizado é, além de sua necessidade de se tornar consumidor, a sua localização territorial.

As expectativas de algumas pessoas em torno de possíveis benefícios provenientes da implantação de grandes empresas em suas regiões, perspectivas estas que são incitadas pelos próprios empreendimentos, podem servir como ferramenta de manipulação dessas instituições em seu próprio benefício, na tentativa de silenciar a população no que concerne às insatisfações relacionadas às atividades dessas empresas.

Nesse sentido, muitas pessoas podem associar o risco a um benefício, e, portanto, aceitarem enfrentá-lo. Sob a lógica do capitalismo, os moradores das áreas rurais são considerados culpados, por se encontrarem nessas áreas e não se desenvolverem como aqueles dos grandes centros urbanos e econômicos. Nessa perspectiva, essas pessoas não são vistas como vítimas do sistema econômico que negou a elas o acesso integral e de qualidade aos direitos básicos de vida, mas são culpabilizadas pela situação em que vivem, além de, muitas vezes, serem vistas como aquelas pessoas que impedem o desenvolvimento do País.

Impossibilidade de desvelar o fenômeno por inteiro

Os resultados do estudo revelaram, à luz do pensamento de Merleau-Ponty, que as famílias residentes no contexto de vizinhança da mineradora de urânio em Caetité, Bahia, Brasil, vivenciam a ambiguidade entre partir e ficar no território, em função dos impactos socioambientais das atividades uraníficas. A emigração, por um lado, pode favorecer a prevenção de agravos à saúde e a melhoria da qualidade de vida, uma vez que as famílias se distanciariam dos riscos provenientes da contaminação ambiental; por outro, também envolve perdas de vínculos afetivos e socioambientais no contexto do território.

A permanência no local, portanto, envolve a manutenção dos vínculos com a natureza, a vizinhança, o trabalho rural, ao mesmo tempo que implica prejuízos à saúde, às finanças e à existência. Desse modo, não obstante o forte senso de enraizamento, a maioria dos familiares demonstrou não o desejo, mas a consciência de que deve partir do lugar onde nascera e fora criada, em função dos danos emergentes e daqueles que ainda poderão ocorrer.

A condição de vulnerabilidade à qual as famílias estão expostas, como em tantos outros casos de injustiça ambiental, decorre dos projetos de 'desenvolvimento', empreendimentos econômicos e ação de políticas públicas insuficientes para garantir o direito à cidadania, à saúde e a um meio ambiente saudável. Tornar públicas essas questões produz visibilidade às disputas entre as populações vulneradas, as empresas, as instituições regulatórias e o Estado, o que pode fortalecer estratégias locais, globais e propiciar um debate amplo sobre o real sentido da democracia, sustentabilidade e justiça.

Os relatos desvelaram que, diante do outro, cada familiar presentificava em seu corpo uma estrutura de horizontes: o 'corpo habitual', horizonte de passado que é retomado e o 'corpo perceptivo', que se lança em direção ao futuro em busca da possibilidade de reconstituir relações. Essa vivência do 'corpo próprio' é o que potencializa a configuração de nova perspectiva de vida aos familiares, pois, por meio da contração de um passado sombrio, poderão visualizar horizontes de um futuro promissor.

Com este estudo, entendemos que muitas pessoas apresentavam um forte sentido de fluxo com a natureza e, nesse processo, eram mais impelidas às relações de proximidade com a terra, bem como com as atividades de agricultura. Assim, a vida comunitária encontrou seu lugar na vida no campo, o que consistiu em um emaranhado com elementos indissociáveis para as famílias participantes do estudo, mesmo diante das fortes implicações ao sofrimento que a mineradora podia proporcionar às suas comunidades adjacentes.

Finalmente, a compreensão da dinâmica que envolveu a experiência do 'corpo próprio' das famílias no que refere ao partir e ao ficar no território de abrangência da mina mostrou-se como uma construção inacabada, uma vez que é impossível alcançarmos todas as suas perspectivas e desvelarmos o fenômeno por inteiro.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Recorte da dissertação de mestrado: FERRAZ, C. E. O. O perigo mora ao lado: convivência de famílias no contexto da mineração de urânio. 2013. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Saúde. Área de Concentração: Saúde Pública. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Jequié (BA).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    Maio 2017
  • Aceito
    Set 2017
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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