O aparente paradoxo da saúde nas eleições estadunidenses de 2016: caminhos para a luta por direitos sociais

The supposed paradox of health in the 2016 American elections: paths for fighting for social rights

André Teixeira Jacobina Sobre o autor

RESUMO

O artigo buscou analisar as razões para o aparente paradoxo nas eleições nos Estados Unidos da América (EUA), em 2016, em torno do direito à saúde. Enquanto pesquisas de opinião apontavam que a maioria dos americanos era favorável a um sistema universal financiado por um único pagador o Estado, a população americana elegeu Donald Trump, que prometeu, durante a campanha, acabar com o chamado Obamacare (Affortable Care Act). O objetivo deste trabalho foi analisar as eleições de 2016 nos EUA no que tange ao debate em torno do direito à saúde, destacando o significado das três principais candidaturas, Hillary Clinton, Bernie Sanders e Donald Trump. Utilizaram-se jornais digitais, articulando as narrativas da campanha dos candidatos com notícias relevantes em relação ao Obamacare e ao direito à saúde. Os resultados sinalizam que, apesar da popularidade de Sanders, que defende o Direito universal à saúde, o Partido Democrata e sua ala corporativa apoiaram Hillary, devido aos seus vínculos com o grande capital. Com isso, uma nova direita ultranacionalista, populista, conseguiu o poder; e ameaça trazer uma forma de protofascismo americano para o cenário político, no qual se apresenta um retrocesso na luta pelos direitos sociais, inclusive o direito à saúde.

PALAVRAS-CHAVE
Direito à saúde; Política de saúde; Reforma dos serviços de saúde

ABSTRACT

The paper seeks to analyze the reasons for the supposed paradox in the US elections in 2016 about concerning the right to health. While opinion polls pointed out that most Americans were in favor of a universal system funded by a single-payer, the state, the American population elected Donald Trump, who promised during his campaign to end the so-called Obamacare (Affortable Care Act). The aim of this paper is to analyze the 2016 US elections in relation to the debate about the right to health, highlighting the significance of the three main candidates, Hillary Clinton, Bernie Sanders and Donald Trump. We use digital newspapers, articulating the campaign narratives of the candidates with relevant news regarding Obamacare and the right to health. The results indicate that despite the popularity of Sanders, who defends the universal right to health, the Democratic Party and its corporate wing supported Hillary because of her ties to big capital. With this, a new ultranationalist, populist right has seized power, and threatens to bring a form of American protofascism to the political stage, in which there is a setback in the struggle for social rights, including the right to health.

KEYWORDS
Right to health; Health policy; Health care reform

Introdução

O presente trabalho identifica um aparente paradoxo nas eleições estadunidenses de 2016, em torno do direito à saúde e, consequentemente, sobre o papel do Estado no âmbito da Política de Saúde dos Estados Unidos da América (EUA). De fato, enquanto pesquisas de opinião apontavam que a maioria dos americanos era favorável a um sistema universal financiado por um único pagador, o Estado (single-payer=Estado) - e isso vem aumentando -, a população estadunidense elegeu, ainda que no colégio eleitoral, e não pelo voto popular, Donald Trump, que prometeu durante a campanha acabar com o chamado Obamacare, ou Affortable Care Act, iniciativa do Partido Democrata, cuja candidata Hillary Clinton derrotou nas primárias o senador Bernie Sanders, político independente que se filiou ao Partido Democrata apenas para poder concorrer nas eleições primarias e que durante a campanha assumiu claramente a defesa do direito universal à saúde. Vale destacar que embora o Obamacare seja um sistema bem distante de um sistema single-payer, ele representava uma tímida tentativa de ampliar a cobertura, o que evidencia ainda mais o paradoxo, já que o candidato cuja proposta estava mais de acordo com os anseios da população estadunidense, Bernie Sanders, não passou das primárias, e o vencedor no colégio eleitoral, Trump, não defendia nem mesmo a tímida tentativa de ampliação de cobertura, e não era claro sobre essa questão.

Por que a população estadunidense fez isso? Ou melhor dizendo, por que os resultados eleitorais foram favoráveis a um candidato cujas propostas contrariam as aspirações da maioria da população estadunidense com relação ao acesso aos serviços de saúde, sendo saúde um dos temas centrais do debate político americano? Mesmo considerando que a vitória de Trump se deu, em parte, pela forma como se constrói a vontade política coletiva nos EUA, isto é, por meio do colégio eleitoral, já que, em números absolutos, Hillary Clinton obteve mais votos, chama a atenção o descompasso entre as reivindicações populares e o apoio que o candidato vitorioso obteve de parcelas significativas da população estadunidense.

Pensamos que esse aparente paradoxo pode ser compreendido quando analisamos a campanha de Trump, e como ela significou, em diversos aspectos, uma ruptura com a ortodoxia do partido republicano. Em contraponto, consideramos importante analisar a trajetória de Bernie Sanders, o independente com maior tempo de serviço na história do Congresso americano que, durante sua carreira, recusou-se a receber dinheiro de corporações e bilionários, tendo feito, quando prefeito em Vermont, uma ampla aliança com diversos movimentos sociais.

Dessa forma, o objetivo deste trabalho, portanto, é analisar o cenário político configurado nas eleições estadunidenses de 2016, com base na análise do significado de cada uma das candidaturas que se colocaram em disputa, tanto na disputa interna que se deu no Partido Democrata, entre Hillary Clinton, representante da ala corporativa do partido, e Bernie Sanders, representante da esquerda progressista do partido, quanto no confronto entre a candidatura de Trump (republicano) e de Hillary Clinton (democrata), com relação à questão da saúde.

As perspectivas acerca da análise dos discursos que serviram de referencial a este estudo foram aquelas tratadas pelos filósofos de Oxford11 Iñiguez L, organizador. Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais. Petrópolis: Vozes; 2004., entre os quais se destacam Gilbert Ryle (1900-1976), John Austin (1911-1960), Peter Strawson (1919) e Paul Grice (1913-1988). Esses autores ampliaram o afastamento da tradição cartesiana por entender que a

linguagem faz muito mais do que representar o mundo porque é basicamente um instrumento para 'fazer coisas'. A linguagem não só 'faz pensamento' como também 'faz realidades'11 Iñiguez L, organizador. Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais. Petrópolis: Vozes; 2004.(33).

A riqueza da linguagem então vai além da sua função descritiva ou representacional. Iñiguez destaca a contribuição de John Austin para que

o conjunto das ciências sociais e humanas se conscientizasse de que a linguagem é um instrumento ativo na produção de muitos dos fenômenos que essas ciências pretendem explorar e que, portanto, seria impossível deixar de levá-la em consideração11 Iñiguez L, organizador. Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais. Petrópolis: Vozes; 2004.(34).

Tais perspectivas são extremamente úteis quando se trata de analisar o posicionamento dos agentes políticos para os quais os discursos são parte de sua ocupação e da própria realidade e aspirações que buscam defender, construir ou legitimar.

Mesmo que brevemente, é importante discutir a concepção de Estado que utilizamos. Partimos da concepção restrita de Estado22 Buci-Gluckmann C. Gramsci e o Estado: por uma teoria materialista da filosofia. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1980., segundo a qual este é o somatório das instituições públicas e dos aparelhos de coerção, como tribunais, exército, polícia, concepção que não dá conta das lutas de classe que atravessam o conjunto da sociedade. Entretanto, essa perspectiva é insuficiente para dar conta das questões de lutas de classes, por isso adotamos a concepção de Poulantzas33 Poulantzas N. O Estado, o poder, o socialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal; 1985., considerando que o Estado é a condensação contraditória das relações de forças entre as classes sociais e, portanto, o debate em torno do seu papel com relação ao direito à saúde, objeto deste estudo, de certo modo, expressa a correlação de forças existentes na sociedade, neste caso, na sociedade estadunidense em 2016.

Os EUA têm um padrão alto de gasto em saúde e os piores resultados do mundo desenvolvido em questão de acesso, decorrentes de um sistema fortemente privado, o que vem sendo analisado por vários pesquisadores que fazem estudos comparativos entre países, como, por exemplo, Giovanella et al.44 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar ACA, et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégicas. Ciênc Saúde Colet [internet]. 2018 [acesso em 2018 set 14]; 23(6):1767-1768. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-8123-csc-23-06-1763.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-...
(1767-1768), que diz:

O sistema de saúde dos EUA exemplifica as consequências restritivas para o direito à saúde de um modelo calcado em diferentes tipos de seguros, com forte peso privado. Entre os sistemas de 11 países desenvolvidos, é avaliado como o pior, por apresentar maior gasto em saúde, reduzida eficiência administrativa e piores resultados em equidade, acesso, qualidade, expectativa de vida e mortalidade infantil. Os EUA diferenciam-se de outros países de industrialização avançada pelo caráter residual e predomínio do mercado privado no asseguramento e na prestação em saúde, com importante parcela da população descoberta. O sistema é segmentado e fragmentado em sua organização (empresas de seguro são as principais compradoras de serviços), oferta (importância dos hospitais privados com fins lucrativos), financiamento, regras de elegibilidade e cesta de serviços cobertos. Intensos debates culminaram em 2010 no Affordable Care Act, o Obamacare, que expandiu a cobertura por meio de subsídios aos seguros privados e inclusão nos esquemas segmentados públicos, porém sem alcançar a universalidade.

Metodologia

Utilizamos, como fontes, jornais digitais, mídia alternativa; e procedemos articulando as narrativas da campanha dos candidatos com notícias relevantes às suas posições, quanto ao direito à saúde e direitos sociais, e com relação ao Obamacare, denominação política do Affordable Care Act, lei federal estadunidense sancionada em 23 de março de 2010 por Barack Obama, então presidente dos EUA, considerada, por vários analistas, uma proposta que mantém as empresas de saúde no controle, favorecendo o setor corporativo da indústria de saúde.

Vale destacar alguns aspectos da seleção do material. Não predefinimos antecipadamente quantas notícias iriamos analisar, e, sim, fomos fazendo a busca, usando palavras-chave e frases dos candidatos, que havíamos separado durante a campanha, já que havíamos feito previamente o acompanhamento da campanha. Assim, buscamos notícias relativas à fala inicial de Trump ao se lançar na campanha, buscamos posicionamentos de Hillary sobre o acordo comercial trans pacific partnership, e posicionamentos de Bernie Sanders sobre direito à saúde, entre muitos outros. Separamos e organizamos as notícias do ponto de vista temático, notícias sobre acordos comerciais, sobre sistema de saúde, sobre financiamento, e incluímos todas as que contribuíam para compreender o processo, excluindo apenas as que se repetiam.

Os resultados estão apresentados da seguinte maneira: inicialmente traçamos um panorama geral do sistema político americano, com base na revisão dos trabalhos citados, e, em seguida, tratamos de caracterizar cada uma das candidaturas que se apresentaram nas eleições de 2016, analisando especificamente as concepções e propostas com relação à saúde. Assim, buscamos caracterizar o que e quem Trump representa nos EUA atualmente, apontando os motivos da sua vitória, bem como analisamos as forças que sustentaram a candidatura de Hillary Clinton. Finalmente, analisamos o significado do 'fenômeno' Bernie Sanders e do movimento que ele lidera em torno da luta pelos direitos sociais e pelo direito à saúde, em particular, apontando os possíveis rumos desse movimento no contexto atual.

A fim de compreender as eleições estadunidenses e o paradoxo com as pesquisas de opinião, recorremos ao trabalho de Martin Gilens e Benjamin Page da Universidade de Princeton, intitulado 'Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens'55 Gilens M, Page BI. Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens. Perspectives Politics. 2014; 12(3):564-581.. Para analisar a trajetória de Sanders, tomamos com referencial o trabalho de Laclau e Mouffe 'Hegemonia y estratégia socialista. Hacia uma radicalização de La democracia'66 Laclau E, Mouffe C. Hegemonia y estratégia socialista: hacia uma radicalização de La democracia. 3. ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica; 2010., já que entendemos que Sanders realizou, na prática, em boa medida, a estratégia defendida por esses autores. A análise, portanto, busca articular esses referenciais, com as evidências produzidas na pesquisa, a fim de construir uma narrativa coerente do debate ocorrido no processo da eleição estadunidense de 2016.

A democracia estadunidense seria uma oligarquia?

A conclusão central do estudo realizado na universidade de Princeton, coordenado pelos professores Martin Gilens e Benjamin Page55 Gilens M, Page BI. Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens. Perspectives Politics. 2014; 12(3):564-581., é que os EUA são dominados por uma rica e poderosa elite econômica. O estudo, por meio de uma compilação realizada ao longo de muitos anos por Gilens, comparou as posições de cidadãos com diferente participação na distribuição de riqueza. Gilens e seu pequeno exército de pesquisadores assistentes coletaram dados de um conjunto diverso de políticas de Estado e as posições do público. Do ponto de vista teórico, eles apontam para quatro tradições teóricas ao se analisar processos eleitorais: Democracia eleitoral majoritária, Dominação de Elite Econômica, Pluralismo Maioritário e Pluralismo tendencioso. Os autores defendem que estudiosos podem combinar as tradições ou trabalhar independentemente delas, entretanto, avaliamos que eles se encontram mais próximas da perspectiva de Dominação de Elite Econômica, em especial por tentar detectar se havia uma relação entre renda e poder55 Gilens M, Page BI. Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens. Perspectives Politics. 2014; 12(3):564-581..

Na análise, 1.923 casos cumpriram quatro critérios definidos pelos pesquisadores: respostas dicotômicas a favor/contra, especificidade sobre política, relevância para as decisões do governo federal e frases categóricas e não condicionais. Dos 1.923 casos originais, 1.779 deles também atenderam aos critérios de discriminação de renda para os inquiridos, não envolvendo uma emenda constitucional ou uma decisão do Supremo Tribunal (o que poderia implicar um processo de formulação de políticas bastante diferente), e envolvendo uma solução clara, em oposição à parcial, ou ambígua, presença real ou ausência de mudança de política. Com isso, os autores55 Gilens M, Page BI. Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens. Perspectives Politics. 2014; 12(3):564-581.(576) concluem que:

Nos Estados Unidos, nossos resultados indicam, a maioria não governa, pelo menos não no sentido causal da determinação efetiva de resultados políticos. Quando a maioria dos cidadãos discorda de elites econômicas ou com interesses organizados, eles geralmente perdem. Além disso, por causa do forte posicionamento do status quo incorporado no sistema político dos EUA, mesmo quando grandes maiorias de americanos favorecem a mudança de políticas, eles geralmente não conseguem obtê-lo.

Podemos citar diversos exemplos que comprovam as conclusões dos autores. Por exemplo, o maciço apoio da população estadunidense em defender a proposta de uma lei federal que obrigue a checagem dos antecedentes criminais das pessoas antes que possam ser vendidas armas a elas. Uma pesquisa de opinião da Columbia Broadcasting System (CBS)/'New York Times', publicada em outubro de 2015, indica que 92% da população é favorável a essa medida77 Dutton S, Pinto J, Salvanto A, et al. CBS/NYT poll: GOP voters have deep concerns about government. CBS News [internet]. 2015 out 27 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://www.cbsnews.com/news/cbsnyt-poll-gop-voters-have-deep-concerns-about-government/.
http://www.cbsnews.com/news/cbsnyt-poll-...
. Já o centro de pesquisas Pew, que obteve o menor resultado, apontou que 85% da população é favorável a essa medida88 Continued Bipartisan Support for Expanded Background Checks on Gun Sales. Pew Research Center [internet]. 2015 ago 13 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://www.people-press.org/2015/08/13/continued-bipartisan-support-for-expanded-background-checks-on-gun-sales/.
http://www.people-press.org/2015/08/13/c...
, e todas as demais pesquisas feitas sobre esse tema, seja por universidades, seja por outros centros de pesquisa estatística, indicam semelhantes maiorias99 Carroll L. Laura Ingraham wrongly says claim that 90% support for gun background checks has been debunked. Politifact [internet]. 2016 jan 5 [acesso em 2018 jul 11/]. Disponível em: http://www.politifact.com/punditfact/statements/2016/jan/05/laura-ingraham/laura-ingraham-say-claim-90-support-gun-background/.
http://www.politifact.com/punditfact/sta...
.

Uma pergunta relevante surge automaticamente: como é que a maioria da população pode ter essa opinião, de forma tão inequívoca, e isso ainda não ter se tornado uma lei? A resposta se encontra nas conclusões do estudo de Gilens e Page55 Gilens M, Page BI. Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens. Perspectives Politics. 2014; 12(3):564-581., ou seja, indivíduos ricos, corporações ricas, grupos de influência como o NRA (Nacional Rifle Association) têm muito mais poder real do que os cidadãos 'comuns', ou o conjunto da população que não faz parte da 'classe dos bilionários' como chama Bernie Sanders, ou a 'classe dos doadores de campanha política' (donor class). Independentemente do nome, fica evidente que uma minoria decide sobre a maioria, característica de um regime oligárquico, e mais, dirige beneficiando os interesses dos mais ricos, o que é característica de um regime plutocrático.

No que tange à saúde, podemos destacar que 58% dos adultos dos EUA são favoráveis à ideia de substituir a lei por um sistema de saúde financiado pelo governo federal que ofereça seguro para todos os americanos, o chamado single-payer (único pagador-Estado), entretanto, lá, a chamada 'opção pública', que seria uma solução intermediária, for descartada mesmo pela administração democrata de Obama, quando este presidente tinha maioria no Congresso e no Senado, no início do seu primeiro mandato. O Obamacare1010 Jones DK, Bradley KWV, Oberlander J. Pascal's Wager: Health Insurance Exchanges, Obamacare, and the Republican Dilemma. J Health Polit Policy Law [internet]. 2014 [acesso em 2018 jul 11]; 39(1):97-137. Disponível em: https://read.dukeupress.edu/jhppl/article/39/1/97/13645/Pascal-s-Wager-Health-Insurance-Exchanges.
https://read.dukeupress.edu/jhppl/articl...

11 Oberlander J. The future of Obamacare. N Engl J Med [internet]. 2012 dez [acesso em 2018 jul 11]; 367(23):2165-2167. Disponível em: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1213674.
https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NE...
-1212 Beland D, Rocco P, Waddan A. Obamacare Wars: Federalism, State Politics, and the Affordable Care Act. Lawrence: University Press of Kansas; 2016 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://muse.jhu.edu/book/43112.
https://muse.jhu.edu/book/43112...
, como é conhecido, é um plano simpático às empresas de seguro de saúde, que não os retira do poder, e é muito semelhante ao plano realizado por Mitt Romney em Massachusetts, um plano dos republicanos.

Saber isso sobre a conjuntura política estadunidense é central para analisar as eleições, mesmo quando no processo eleitoral surgem forças que questionam esse Status quo. Suspeitamos que isso faz parte da crise política das democracias ocidentais, sendo que o caso americano, longe de ser uma peculiaridade, provavelmente é exemplar do que acontece quando o sistema político é tão influenciado pelo financiamento privado de campanhas política. Algo que é realidade em muitos países, inclusive no Brasil. Aliás, nossas reflexões sobre as eleições estadunidenses permitem muitos paralelos com a nossa realidade, e a realidade política de outros países, mesmo que esses precisem ser vistos com cautela, já que existem muitos fatores específicos de cada realidade política.

Donald Trump: nacionalismo, xenofobia e 'populismo' de direita

A fim de compreender a candidatura de Trump, analisamos três momentos de sua campanha. O primeiro momento quando ele lançou a candidatura, e aquilo que contribuiu para que ele tivesse muita atenção da mídia, embora não exclusivamente, a televisiva. O segundo momento, durante os debates das primárias republicanas, quando ele se diferenciou de maneira marcante dos demais candidatos republicanos. Finalmente, o terceiro momento, quando enfrentou Hillary Clinton, tratando de identificar qual foi a estratégia definida por seu comitê eleitoral, especialmente nos estados conhecidos como swing states, isto é, estados cujos votos tanto poderiam ir para republicanos quanto para democratas, estados indecisos, sendo que muitos deles tinham um passado industrial, algo que, como veremos adiante, foi central para a vitória de Trump.

Ao realizar essa análise, é bom destacar que não tomamos a palavra de Trump como verdadeira, nem no sentido empírico, nem considerando que ele acredita necessariamente no que está dizendo. Trump mente, o que não é novidade, visto que políticos não são conhecidos, em geral, pela sinceridade ou honestidade com relação aos eleitores. Trump não era um político, nunca havia assumido cargo público. Contudo, apenas 16 de suas falas são verdadeiras, e mais de 64 são mentiras claras, segundo o politicfact1313 Comparing Hillary Clinton, Donald Trump on the Truth-O-Meter. Plitifact [internet]. c2018 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://www.politifact.com/truth-o-meter/lists/people/comparing-hillary-clinton-donald-trump-truth-o-met/.
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em falas analisadas. Em uma comparação com Hillary, vemos que, das falas analisadas dela, 72 são verdadeiras; e apenas 7 são claramente mentiras. Hillary Clinton mentiu para o congresso no caso dos e-mails, e muitas de suas mentiras foram descobertas, mas, mesmo assim, passa longe da frequência com a qual Trump mente.

No primeiro momento da candidatura dele, as bases do lançamento da sua campanha foram o nativismo, isto é, a defesa dos nativos americanos, correlata à crítica aos imigrantes mexicanos e aos oriundos de países islâmicos, bem como o ultranacionalismo. A chamada 'direita alternativa', que inclui diversos grupos racistas e de supremacia branca, interessaram-se por sua candidatura, pois ele reproduzia seu discurso especialmente sobre imigrantes.

Primeiro vejamos o que ele disse do 'sonho americano': "Infelizmente, o sonho americano está morto, mas se eu for eleito presidente, trarei de volta, maior, melhor e mais forte do que nunca"1414 Neate R. Donald Trump announces US presidential run with eccentric speech. The guardian [internet]. 2015 jun 16 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2015/jun/16/donald-trump-announces-run-president. Não paginado.
https://www.theguardian.com/us-news/2015...
. Vejamos o que ele disse em seu primeiro discurso sobre imigrantes, especialmente mexicanos que vão viver nos EUA:

Eles não estão nos enviando as pessoas certas. Os EUA se tornaram um campo de despejo para os problemas de todos. Eles estão enviando pessoas que têm muitos problemas e estão trazendo seus problemas. Eles estão trazendo drogas, estão trazendo crime, são estupradores, e alguns eu suponho que são pessoas boas, mas eu falo com guardas de fronteira e eles nos dizem o que estamos recebendo1414 Neate R. Donald Trump announces US presidential run with eccentric speech. The guardian [internet]. 2015 jun 16 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2015/jun/16/donald-trump-announces-run-president. Não paginado.
https://www.theguardian.com/us-news/2015...
.

Trump em nenhum momento abandonou o nacionalismo, a xenofobia e o nativismo. Sua campanha teve como lema 'Make America Great Again', ou seja, 'Fazer os EUA ótimo novamente'. Demonizar a América que integra o outro também favoreceu que todos aqueles que são críticos do 'politicamente correto' nutrissem algum grau de simpatia pela sua campanha, pois Trump disse muito daquilo que se presume que os republicanos pensam, mas não dizem. Ao dizer, cria-se uma percepção que ele seria honesto, quando sabemos que essa percepção não poderia estar mais afastada da realidade. Os eventuais excessos do politicamente correto1515 Soave R. Trump Won Because Leftist Political Correctness Inspired a Terrifying Backlash. Reason [internet]. 2016 nov 9 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://reason.com/blog/2016/11/09/trump-won-because-leftist-political-corr.
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, embora, em nossa perspectiva, não sejam o fator central, foram capitalizados pela campanha. Assim, xenofobia e racismo, posições que seriam mortais para outros candidatos, acabaram sendo combustíveis para Trump e seus aliados, inclusive na mídia alternativa de direita nacionalista, como 'Breibard News', publicação que a 'Newsweek' chegou a chamar o 'Pravda' de Donald Trump1616 Nazaryan A. Breitbart News, Donald Trump's Pravda, Is in Crisis. Newsweek [internet]. 2017 jun 15 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://www.newsweek.com/2017/06/23/breitbart-trump-bannon-fake-news-624726.html.
http://www.newsweek.com/2017/06/23/breit...
.

Vale destacar também que Trump teve, segundo estimativa feita pelo 'New York Times'1717 Confessore N, Yourish K. $2 Billion Worth of Free Media for Donald Trump. New York Times [internet]. 2016 mar 15 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.nytimes.com/2016/03/16/upshot/measuring-donald-trumps-mammoth-advantage-in-free-media.html.
https://www.nytimes.com/2016/03/16/upsho...
, 2 bilhões de dólares de 'mídia gratuita', ou seja, cobertura na mídia pela qual ele não pagou, uma cobertura que não é necessariamente positiva, mas que manteve seu nome em evidência nas notícias e nos programas sobre política. Isso ocorreu, em parte, por ele ser uma personalidade muito conhecida, inclusive na televisão, com o programa The Apprentice (O Aprendiz), reality show exibido pelo canal National Broadcasting Company (NBC), que mostrava 16 a 18 executivos competindo por uma posição em uma das empresas do apresentador e produtor do programa, o próprio Donald Trump. Além disso, ele comparecia frequentemente na mídia por conta de diversas declarações polêmicas, como a que construiria um muro entre os EUA e o México, e que os imigrantes seriam, como citamos anteriormente, criminosos.

No segundo momento, durante os debates, Donald Trump quebrou com a ortodoxia neoliberal e conservadora dizendo que não iria realizar cortes no Medicare e Medicaid, programas de seguro de saúde geridos pelo Estado americano, assim como em relação ao Social Security, o programa de aposentadorias. Vale destacar que boa parte do eleitorado americano tem parentes, ou eles próprios, que usam esses programas, que são muito bem avaliados. Logo, Trump, ao dizer algo popular entre o eleitorado, mas extremamente impopular entre a elite do partido republicano, imediatamente se diferenciou nos debates. Colocou os demais oponentes na posição de ter que defender cortes nesses programas, pois são financiados por empresas de seguro de saúde, e Trump, por ser desacreditado e naquele momento não contar com financiamento dessas empresas, pôde dizer algo que, para aquele eleitorado, foi surpreendente e positivo.

Essa parcela do eleitorado ansiava por um político que fosse nacionalista, mas que parecesse, ao menos, ser contra o interesse das grandes corporações, ou não fosse comprado por elas. Vale destacar que Trump buscou financiamento de corporações, e foi apenas quando não conseguiu que usou a ideia de que financiava sua própria campanha1818 Gold M. No, Donald Trump has not given his campaign $100 million, and other answers to your money questions. Washington Post [internet]. 2016 out 31 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/post-politics/wp/2016/10/31/no-donald-trump-has-not-given-his-campaign-100-million-and-other-answers-to-your-money-questions/?utm_term=.a4248a7ec81c.
https://www.washingtonpost.com/news/post...
. Novamente, a realidade desse fato pouco importou, a percepção é que Trump defendia o trabalhador americano e que os demais republicanos defendiam a elite econômica; assim, um bilionário foi capaz de ser mais 'popular' do que políticos muito menos ricos que ele, e que exatamente por isso pareciam depender mais de doações, sendo, com isso, controlados. O fato de que Trump disse aquilo apenas para ser eleito e que suas propostas contemplam cortes naquilo que ele disse que não iria cortar apenas cimenta a posição que suas falas têm efeito eleitoral, e que não podem ser indicativos de políticas1919 Davis JH. Trump's Budget Cuts Deeply Into Medicaid and Anti-Poverty Efforts. New York Times [internet]. 2017 maio 22 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.nytimes.com/2017/05/22/us/politics/trump-budget-cuts.html.
https://www.nytimes.com/2017/05/22/us/po...
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Um elemento central para ascensão de sua candidatura foi sua oposição ao Acordo de Associação Transpacífico nos EUA, conhecido por TPP (Trans Pacific Partnership)2020 Petroff A. Donald Trump slams Pacific free trade deal. CNN Money [internet]. 2015 abr 23 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://money.cnn.com/2015/04/23/news/economy/trump-trade-deal/index.html.
http://money.cnn.com/2015/04/23/news/eco...
. O partido republicano e, em verdade, os democratas corporativos, como Hillary Clinton, sempre foram favoráveis a esses acordos comerciais, que, em geral, beneficiam as grandes corporações internacionais, que são as que mais defendem esses acordos. Trump se diferenciou dos republicanos e de Hillary Clinton, que chegou a chamar o TPP de padrão ouro de acordos comerciais2121 Carroll L. What Hillary Clinton really said about TPP and the 'gold standard'. Politifact [internet]. 2015 out 13 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://www.politifact.com/truth-o-meter/statements/2015/oct/13/hillary-clinton/what-hillary-clinton-really-said-about-tpp-and-gol/.
http://www.politifact.com/truth-o-meter/...
quando era Secretária de Estado da administração Obama. Ela passou a ser contra o acordo devido à sua gigantesca impopularidade, já que tanto Trump quanto Bernie Sanders se posicionaram contra o acordo, e isso gerou massivo apoio a suas candidaturas entre os trabalhadores industriais do Meio-Oeste americano.

De fato, essa questão foi central, pois os trabalhadores, em especial os brancos, que perderam empregos na indústria nos anos 1990 eram totalmente hostis a acordos de livre comercio, que beneficiam grandes empresas. O Nafta, sigla em inglês de North American Free Trade Agreement (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio), bloco econômico formado pelos EUA, Canadá e México, promovido por Bill Clinton e apoiado por Hillary Clinton, havia deixado cicatrizes dolorosas, e a fala de Hillary que o TPP era padrão ouro de acordos comerciais trouxe lembranças terríveis nos Estados do Meio-Oeste2222 Chambers F, Summers C. What happened to the firewall? How the Midwest crumbled - just like Michael Moore predicted. Dailmail [internet]. 2016 nov 9 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em http://www.dailymail.co.uk/news/article-3919280/What-happened-firewall-mid-west-crumbled-like-Michael-Moore-said-would.html.
http://www.dailymail.co.uk/news/article-...
, o que terminou por levar Trump à Casa Branca, no terceiro momento quando enfrentou Hillary Clinton. Obviamente que os escândalos em que Hillary se envolveu também foram fatores importantes, mas como Trump ganhou em Michigan, Pensilvânia e Ohio, podemos dizer, com certa segurança, que a questão que se colocou como central foi a dos acordos comerciais, que fez a classe trabalhadora decidir qual político parecia estar mais do seu lado. Levando-se em conta a enorme rejeição a Trump, por conta do seu envolvimento em escândalos sexuais, pela xenofobia e pelas mentiras, o fracasso do Partido Democrata e de Hillary é ainda maior, pois conseguiram a proeza de parecer defender menos a classe trabalhadora, como veremos no próximo item deste trabalho.

Grande parte da população estadunidense viu no populismo de direita de Trump uma alternativa à crise econômica que o país enfrenta, especialmente o aumento das taxas de desemprego da população branca. Esse segmento populacional foi majoritariamente contrário aos acordos comerciais apoiados tanto pelos democratas quanto pelos republicanos. Vejamos dados sobre isso:

Trump ganhou 65 por cento dos eleitores que disseram que o comércio internacional custa empregos, de acordo com as pesquisas sondagens realizadas quando as pessoas lançam suas cédulas na terça-feira. No geral, 42 por cento dos eleitores disseram aos entrevistadores sondagens que concordaram com o sentimento, enquanto 38 por cento disseram que acordos comerciais internacionais criam empregos e 11 por cento não tinham opinião. Nos estados de Rust Belt, como Ohio e Wisconsin, uma proporção ainda maior de eleitores disse que os acordos comerciais custam empregos2323 Delaney A. Donald Trump Won Voters Who Said Trade Costs Jobs. Huffpost [internet]. 2016 nov 9 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/entry/donald-trump-trade_us_582350ade4b0aac62488a5f2. Não paginado.
http://www.huffingtonpost.com/entry/dona...
.

Em uma eleição tão apertada, fica evidente que essa questão foi decisiva.

Hillary Clinton: a candidata das grandes corporações

Para entender a candidatura de Hillary Clinton, é necessário entender sua trajetória na vida pública, na qual alguns momentos e acontecimentos são centrais para traçar um perfil dessa figura política. Em 1990, quando primeira-dama, ela defendia a universalização da atenção à saúde. Nesse momento, foi vítima de uma campanha poderosa de difamação pelas empresas de seguros de saúde, e decidiu recuar, assumindo um papel menor no Governo Clinton, preparando-se, posteriormente, para se candidatar ao senado. Quando em campanha para reeleição, vemos o seguinte:

Ela se prepara para concorrer à reeleição para o Senado de Nova York este ano e prepara as bases para uma possível candidatura presidencial em 2008, a Sra. Clinton está recebendo centenas de milhares de dólares em contribuições de campanha de médicos, hospitais, fabricantes de medicamentos e seguradoras. Em todo o país, ela é a receptora nº 2 de doações da indústria, atrás apenas do senador Rick Santorum da Pensilvânia, um membro da liderança republicana. 'Raymond Hernandez e Robert Pear'. Uma vez sua inimiga, a indústria da saúde se aproxima de Clinton2424 Hernandez R, Pear R. Once an Enemy, Health Industry Warms to Clinton. New York Times [internet]. 2006 jul 12 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.nytimes.com/2006/07/12/nyregion/12donate.html. Não paginado.
https://www.nytimes.com/2006/07/12/nyreg...
.

Como se pode perceber, a posição política de Hillary Clinton mudou em função das doações milionárias que começou a receber das corporações da área de saúde, fato que foi explorado, inclusive, em um documentário de Michael Moore, Sicko, no qual uma sequência denuncia a mudança no discurso de Hillary com relação à saúde.

Outro episódio ilustrativo do mesmo comportamento envolve Elizabeth Warren e Hillary Clinton. Warren, que hoje é uma das mais conhecidas senadoras democratas, e uma das lideranças progressistas, nos anos 1990, era professora universitária. Em uma entrevista ao jornalista Bill Moyers, ela narra que, nesse período, foi convidada pela então primeira-dama dos EUA para uma conversa sobre um projeto de lei que tratava de falência familiar, o qual foi proposto pelo lobby das empresas de cartão de crédito. Ela explica os problemas do projeto de lei, apontando que sua aprovação prejudicaria os mais pobres e protegeria as empresas de cartão de crédito, pois se tornaria mais difícil que uma pessoa comum pudesse abrir falência. Segundo Warren, Hillary Clinton compreendeu as implicações dessa proposta e convenceu Bill Clinton a vetar o projeto de lei, fato que a própria Hillary destaca em seu livro autobiográfico, e Warren lhe dá todo o crédito por isso. Todavia, em 2001, a então 'senadora Clinton', como chama Warren, teve diante de si a mesma lei de falência familiar como um dos primeiros projetos de lei a serem votados; dessa vez, sendo favorável à sua aprovação. Quando Bill Moyers pediu a Warren para explicar essa enorme mudança, ela disse que a indústria que mais deu dinheiro para 'Washington', ou seja, para os políticos profissionais, foi a indústria 'Consumer credit produtcs' ou de Produtos de crédito ao consumidor, isto é, as empresas de cartões de crédito. Warren finaliza comentando que Hillary aceitou dinheiro desses grupos, e mais que isso, ela se preocupava com eles enquanto 'eleitorado'2525 Elizabeth Warren vs. Hillary Clinton [internet]. 2004 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=12mJ-U76nfg.
https://www.youtube.com/watch?v=12mJ-U76...
.

Falando em dinheiro, eles (Bill e Hillary Clinton) se tornaram os mestres em arrecadar dinheiro. Arrecadaram mais de US$ 3 bilhões2626 Gold M, Hamburger T, Narayanswamy A. Inside the Clinton Donor Network. Washington Post [internet]. 2015 nov 19 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/graphics/politics/clinton-money/.
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com o intuito de financiar suas carreiras políticas. Nesse particular, é fundamental lembrar o estudo de Gilens e Page44 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar ACA, et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégicas. Ciênc Saúde Colet [internet]. 2018 [acesso em 2018 set 14]; 23(6):1767-1768. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-8123-csc-23-06-1763.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-...
, que aponta o quanto todo esse dinheiro compra enorme influência. Um dos escândalos explorados por Trump durante a campanha eleitoral para a presidência foi, justamente, o pagamento recebido pelos Clinton por discursos, palestras e conferências que realizaram para diversas instituições financeiras, pelas quais Hillary e Bill Clinton receberam, em média, US$ 210 mil por discurso, arrecadando mais de US$ 153 milhões2727 Yoon R. $153 million in Bill and Hillary Clinton speaking fees, documented. CNN Politics [internet]. 2016 fev 6 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://edition.cnn.com/2016/02/05/politics/hillary-clinton-bill-clinton-paid-speeches/index.html.
http://edition.cnn.com/2016/02/05/politi...
. Cabe registrar que tais discursos eram secretos e que, incialmente, ninguém tinha acesso ao que Hillary Clinton dizia para as instituições financeiras. Contudo, eles acabaram vazando durante o processo eleitoral, mostrando uma candidata absolutamente amigável aos interesses de Wall Street e das grandes instituições financeiras, algo completamente diferente de como ela se apresentava nos discursos públicos que proferiu durante a campanha presidencial2828 Chozick A, Confessore N, Barbaro M. Leaked Speech Excerpts Show a Hillary Clinton at Ease With Wall Street. New York Times [internet]. 2016 out 7 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.nytimes.com/2016/10/08/us/politics/hillary-clinton-speeches-wikileaks.html.
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.

Hillary Clinton e sua equipe ainda se envolveram em diversos outros escândalos. Um dos mais divulgados se refere ao fato de ela ter utilizado um servidor privado quando foi Secretária de Estado, na gestão de Obama, para enviar e-mails que não estavam protegidos, o que gerou uma exaustiva investigação do Federal Bureau of Investigation (FBI)2929 7 perguntas para entender o escândalo dos emails de Hillary. BBC News [internet]. 2016 nov 1 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37836864.
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o Departamento Federal de Investigação estado-unidense. Ela acabou escapando de ser indiciada, mas sua reputação ficou manchada, e muitos analistas entendem que se fosse uma pessoa com menos poder, teria sido indiciada por (ir)responsabilidade no exercício de suas funções públicas. Sobre este escândalo, inclusive, ela foi pega mentindo para o congresso3030 Dinan S. GOP pushes Clinton perjury charges. Washington Times [internet]. 2016 ago 15 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://www.washingtontimes.com/news/2016/aug/15/house-gop-lays-out-perjury-case-hillary-clinton/.
http://www.washingtontimes.com/news/2016...
, conforme sinalizou a investigação conduzida pelo FBI3131 Did Hillary Clinton Lie to Congress about her emails?. CNN Politics. c2018. [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://edition.cnn.com/videos/politics/2016/07/14/hillary-clinton-emails-congress-fact-check-jake-tapper-origwx-fy.cnn.
https://edition.cnn.com/videos/politics/...
. Aliás, vale a pena lembrar que, até hoje, a Fundação Clinton continua sendo investigada. Debbie Wasserman Schultz foi obrigada a demitir-se da presidência do DNC (Democratic National Committee) depois que Wikileaks mostra que ela favoreceu a candidatura de Hillary. Donna Brazile, jornalista da Cable News Network (CNN), enviava questões do debate da CNN para a equipe de Clinton. Existem outros escândalos, mas a análise dos que revelaram a face oculta das ações políticas dos Clinton, e especialmente de Hillary, para alcançar e manter posições de poder no Estado americano, de forma articulada aos interesses das grandes corporações, produziria outro artigo.

Bernie Sanders: o candidato dos progressistas

Bernie Sanders era, diferentemente de Trump e Clinton, pouco conhecido nacionalmente. Logo, é necessário destacar, ainda que brevemente, sua trajetória profissional e, principalmente, sua trajetória política. Graduando-se com um Bacharelado em artes em ciência política em 1964, Sanders, ainda estudante, participou da Marcha de 1963 em Washington por Jobs (empregos) e Liberdade, ocasião na qual Martin Luther King Jr. pronunciou o seu célebre discurso 'Eu tenho um sonho'. Ainda no verão daquele ano, Sanders foi condenado por resistir à prisão durante uma manifestação contra a segregação nas escolas públicas de Chicago. Sanders atuou também em vários movimentos pacifistas e antiguerra, contra a participação dos EUA na guerra do Vietnã, tendo sido membro do Student Nonviolent Coordinating Committee e da Student Peace Union, esta última uma das principais organizações do movimento dos direitos civis da década de 1960, enquanto frequentava a Universidade de Chicago.

Entrando na política profissional, Sanders foi eleito (por uma diferença de 10 votos), em 1991, para o primeiro de quatro mandatos que exerceu como prefeito de Burlington (maior cidade do Estado de Vermont). Nas sucessivas reeleições, Sanders derrotou candidatos democratas e republicanos. Recebeu 53% dos votos em 1983 e 55% em 1985. Em sua corrida final para prefeito, em 1987, Sanders derrotou Paul Lafayette, um democrata endossado por ambos os partidos principais, e venceu como independente. Desde então, candidatou-se ao Congresso, tendo atuado durante 16 anos como deputado; e, posteriormente, elegeu-se ao Senado americano, construindo uma carreira como parlamentar que fez dele o membro independente mais antigo do Congresso em toda a história estadunidense.

Ao longo de sua carreira política, Bernie Sanders realizou o que Laclau e Mouffe defenderam no texto 'Hegemonia y estratégia socialista. Hacia uma radicalização de La democracia'66 Laclau E, Mouffe C. Hegemonia y estratégia socialista: hacia uma radicalização de La democracia. 3. ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica; 2010.. Uma das contribuições relevantes dos autores é observar que não existem nexos essenciais que unam diferentes lutas sociais, o anticapitalismo, o antissexismo, o antirracismo. Assim sendo, eles precisam ser construídos por meio de uma articulação de equivalências que é justamente o papel da esquerda. Foi isso que Sanders realizou nos movimentos sociais; e hoje, o chamado movimento progressista3232 Sachs J. The New Progressive Movement. New York Times [internet]. 2011 nov 12 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.nytimes.com/2011/11/13/opinion/sunday/the-new-progressive-movement.html.
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é a articulação de feministas, movimento negro, movimento ambientalista, não de suas totalidades, mas das frações que resolveram aderir a uma proposta que tem o papel do Estado na Saúde, como um dos aspectos centrais, assim como a defesa de uma política externa que visa à diplomacia e à construção da paz. Essas duas ideias são essenciais ao movimento progressista.

Analisando a trajetória política de Sanders e sua atuação nos movimentos sociais, pode-se perceber que ele entendeu que determinadas causas, como a luta pelo aumento do salário mínimo para US$ 15, a defesa de um sistema universal de saúde financiado pelo Estado, a expansão das universidades públicas3333 Sanders B. On the Issues [internet]. 2018 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://berniesanders.com/issues/.
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, e outras lutas que conformam uma agenda socialdemocrata e mesmo 'socialista', como ele se apresenta em alguns dos seus discursos e entrevistas, eram todas políticas que tinham o poder de unificar os movimentos, de criar os nexos das diferentes lutas sociais. Foi isso que permitiu que ele começasse sua campanha pela candidatura presidencial com uma diferença de 60 pontos percentuais em relação a Hillary Clinton3434 Queally J. Once Ahead by 60 Points, Clinton National Lead over Sanders Has Dwindled to Zero. Common Dreams [internet]. 2016 abr 18 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: https://www.commondreams.org/news/2016/04/18/once-ahead-60-points-clinton-national-lead-over-sanders-has-dwindled-zero#.
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, percentual que se reduziu dramaticamente durante a campanha, chegando ao final das contas com apenas 12 pontos percentuais3535 Silver N. Was The Democratic Primary A Close Call Or A Landslide? Five Thrty Eight [internet]. 2016 jul 27 [acesso em 2018 jul 11]. Disponível em: http://fivethirtyeight.com/features/was-the-democratic-primary-a-close-call-or-a-landslide/.
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.

Compreender o que se passou durante a campanha exige que se analise um elemento central da candidatura de Sanders, que foi o seu financiamento. Como já apontamos, o financiamento privado por grandes corporações é o calcanhar de Aquiles da Democracia estadunidense, e suspeitamos de todas as democracias que permitem influência dos bilionários e das grandes corporações em seus processos eleitorais. A candidatura de Clinton é o exemplo claro dessa influência. Então, como Sanders, uma figura relativamente pouco conhecida nacionalmente, até as eleições de 2016, conseguiu ser competitivo? A resposta é: por conta de pequenas contribuições de milhões de pessoas. Quase três quartos das doações à campanha de Sanders foram de menos de US$ 200, e a doação média, US$ 27; em contraste, apenas 17% das doações a Clinton são de menos de US$ 200. Mesmo assim, Sanders conseguiu levantar mais de US$ 96 milhões, sendo que destes, US$ 14 milhões provieram de pessoas sem empregos3636 Thomas Z. US election 2016: Who's funding Trump, Sanders and the rest. BBC News [internet]. 2016 mar 17 [acesso em 2018 jul 12]. Disponível em: http://www.bbc.com/news/election-us-2016-35713168.
http://www.bbc.com/news/election-us-2016...
.

A mensagem de Sanders ressoou forte no seio da classe trabalhadora, na comunidade acadêmica e de universitários, e entre os mais pobres. Com isso, sua campanha fez o que nenhuma outra campanha na História estadunidense jamais fez: um candidato que historicamente não é filiado a nenhum dos dois partidos principais (apenas se filiou aos democratas nas primárias para concorrer), sem apoio das corporações, ignorado por muito tempo pela mídia, ou, pior, ridicularizado, alguém que se autointitula um socialista democrático, teria vencido as primárias, segundo Noam Chomsky, se não fosse pelos episódios de corrupção envolvendo a direção do Partido Democrata, que fizeram de tudo para evitar isso3737 Wolf ZB. Could Bernie Sanders have won a primary that wasn't 'rigged'. CNN Politics [internet]. 2017 nov 4 [acesso em 2018 jul 12]. Disponível em: https://edition.cnn.com/2017/11/04/politics/bernie-sanders-2016-election-donna-brazile/index.html.
https://edition.cnn.com/2017/11/04/polit...
. Para Chomsky, foi Sanders, e não Trump, a grande novidade das eleições de 2016.

Como explicar isso? As posições que Sanders defende, como aumento do salário mínimo3838 Elis N. Poll: Bipartisan majority supports raising minimum wage. The Hill [internet]. 2017 jun 1 [acesso em 2018 jul 12]. Disponível em: http://thehill.com/homenews/335837-poll-bipartisan-majority-supports-raising-minimum-wage.
http://thehill.com/homenews/335837-poll-...
, redução do intervencionismo militar dos EUA no mundo e, especialmente, a sua defesa de um sistema universal de saúde financiado pelo Estado3939 Kiley J. Public support for 'single payer' health coverage grows, driven by Democrats. Research Center [internet]. 2017 jun 23 [acesso em 2018 jul 12]. Disponível em: http://www.pewresearch.org/fact-tank/2017/06/23/public-support-for-single-payer-health-coverage-grows-driven-by-democrats/.
http://www.pewresearch.org/fact-tank/201...
, em que saúde seja um direito, são todas posições massivamente populares. A maioria da população concorda com Sanders, e em uma democracia, o esperado é que políticos com as posições de Sanders conquistassem maioria. Entretanto, a pesquisa de Gilens e Page, citada no início deste artigo, explica porque as coisas não são assim. A maioria dos políticos é financiada pelas corporações e grupos de interesse, os quais definem as políticas adotadas. Para as grandes corporações, aumentar o salário mínimo não está na agenda; e, especialmente, para as empresas de planos de saúde e para a indústria farmacêutica, um sistema universal de saúde é o extremo oposto do que eles querem, a fim de ampliar seus lucros. Essa contradição entre o interesse popular e o interesse dos que administram as grandes corporações, e o que Sanders chama de 'classe de bilionários', é a grande contradição entre democracia e capitalismo, contradição que se apresenta claramente e de forma dramática no cenário político dos EUA atualmente.

Sanders, ao mesmo tempo que se beneficiou do movimento Occupy Wall Street, está contribuindo para fortalecer o movimento por meio da organização Our Revolution4040 Our revolution. Our Mission [internet]. 2018 [acesso em 2018 jul 12]. Disponível em: https://ourrevolution.com/about/.
https://ourrevolution.com/about/...
, que busca dar apoio a novas lideranças progressistas e, com isso, busca tirar do poder no Partido Democrata a chamada ala corporativa, da qual Hillary Clinton era, e talvez ainda seja, a principal liderança. O Justice Democrats possui um objetivo muito semelhante, mas tem a diferença de ser organizado e criado por membros da mídia alternativa estadunidense, como, por exemplo, Kyle Kulinski, que mantém um show do YouTube 'Secular Talk'4141 Secular Talk [internet]. [acesso em 2018 jul 12]. Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCldfgbzNILYZA4dmDt4Cd6A.
https://www.youtube.com/channel/UCldfgbz...
, e Cenk Uygur do 'The Young Turks'4242 The Young Turks [internet]. [acesso em 2018 jul 12]. Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UC1yBKRuGpC1tSM73A0ZjYjQ.
https://www.youtube.com/channel/UC1yBKRu...
, um dos maiores canais de notícias on-line do mundo, sedo que ambos os jornalistas estão entre os criadores do 'Justice Democrats'4343 Justice Democrats [internet]. Knocville; 2018 [acesso em 2018 jul 12]. Disponível em: https://www.justicedemocrats.com.
https://www.justicedemocrats.com...
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Considerações finais

A vitória de Donald Trump é um alerta para o avanço de uma direita populista, que combina xenofobia, nacionalismo, com eventuais medidas altamente populares, como investimento em infraestrutura, rompendo com a ortodoxia liberal no que tange aos acordos comerciais de livre comercio, combinação que deu viabilidade eleitoral a Trump. Existem na Europa, em diversos países, demonstrações que esses riscos, de um novo fascismo, ou protofascismo, estão presentes.

No caso específico dos EUA, porém, a candidatura de Sanders, e a colaboração entre sua equipe e a mídia alternativa progressista, mostra a possibilidade de uma articulação progressista assumir o controle do Partido Democrata, com uma agenda muito mais aceita pela maioria da população estadunidense, algo sinalizado pelas pesquisas aqui citadas. Todavia, os democratas corporativos, que levaram à vitória de Hillary nas primárias, vão lutar intensamente para evitar a ascensão dessa ala progressista.

Muitos paralelos podem ser traçados com a realidade brasileira, e eles são centrais para entender o fracasso recente de partidos identificados historicamente com causas da esquerda e como essas causas podem se renovar, a fim de enfrentar os entraves que o capitalismo contemporâneo impõe à formação de uma democracia que faça jus ao seu nome, e não seja apenas a cobertura para um sistema oligárquico. A campanha de Sanders mostra não o único, mas um possível caminho diante de um cenário tão adverso; e, até por isso, um exemplo, com muitos ensinamentos, que vem desde a eleição se fortalecendo e que merece atenção de todos que defendem uma democracia mais substantiva e o avanço dos direitos sociais universais, como uma bandeira central.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2018

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2018
  • Aceito
    18 Set 2018
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