Incorporação de tecnologias no Sistema Único de Saúde: as racionalidades do processo de decisão da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde

Kleize Araújo de Oliveira Souza Luis Eugênio Portela Fernandes de Souza Sobre os autores

RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo analisar o processo de decisão da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde referente às recomendações para incorporação ou não de medicamentos a este sistema. Trata-se de um estudo que teve como foco de análise as decisões tomadas no período de 2010 a 2015. Utilizaram-se como estratégias de produção de dados: análise documental, entrevistas e observação não participante das reuniões do plenário. A análise dos dados evidenciou três tipos de racionalidades presentes no processo de decisão da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde: a racionalidade técnico-sanitária, a racionalidade econômica e a racionalidade política. Na prática, a sólida legislação que orienta a avaliação das demandas de incorporação de tecnologias no Sistema Único de Saúde determinou o predomínio da racionalidade técnico-sanitária.

PALAVRAS-CHAVE
Tecnologia biomédica; Tomada de decisões; Saúde pública

Introdução

O processo decisório relativo à incorporação de tecnologias nos sistemas de saúde é permeado pela influência de diversos grupos de interesses, que incluem os profissionais médicos, as instituições provedoras de serviços de saúde, as instituições financiadoras, os formuladores de políticas e os gestores de serviços, os produtores das tecnologias, as associações de pacientes, entre outros que podem exercer papéis decisivos na tomada de decisão11 Scheffer MC. Aids, tecnologia e acesso sustentável a medicamentos: a incorporação dos anti-retrovirais no Sistema Único de Saúde [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina; 2008. 255 f..

Em tese, o processo de tomada de decisão para a incorporação de tecnologias em saúde deve estar baseado nas melhores evidências científicas produzidas por estudos de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS). Contudo, como afirmam diversos autores, nem sempre são adotadas as tecnologias que os estudos indicam como mais eficazes ou mais eficientes22 Cowan J, Berkowitz D. Technology Assessment at work: Part I - Principles and a case study. Physician Executive. 1996; 22:5-9.,33 Davison SN. Technological Cancer: It's causes and treatment. Health Care Forum J. 1995; 52-58..

De todo modo, diante dos altos custos de muitas das novas tecnologias, tornou-se imperativo para os gestores públicos e privados, com vistas a subsidiar a tomada de decisões sobre a incorporação dessas tecnologias, conhecer a dimensão dos benefícios das mesmas, assim como os impactos sobre o financiamento de serviços e ações de saúde.

Com o propósito de regular a incorporação de tecnologias no Sistema Único de Saúde (SUS), foi editada a Portaria nº 152/Gabinete do Ministro/Ministério da Saúde, de 19 de janeiro de 2006, definindo o fluxo para incorporação de tecnologias no âmbito do SUS, que passou a se organizar a partir de ações articuladas entre a Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE), a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), sendo de competência da SAS a gestão do processo de incorporação de tecnologias, e da SCTIE, a gestão da avaliação das tecnologias de interesse para o SUS44 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 152/GM/MS de 19 de janeiro de 2006. Institui o fluxo para incorporação de tecnologias no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 19 Jan 2006..

Essa mesma portaria criou a Comissão para Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde (Citec) com o propósito de conduzir o processo de incorporação de tecnologias em consonância com as necessidades sociais em saúde e de gestão do SUS.

Cinco anos mais tarde, a Citec foi substituída pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), instituída pela Lei nº 12.401 e pelo Decreto nº 7.646. Ressalte-se que o fato de ter sido criada por lei deu à Conitec um estatuto legal que a Citec não tinha. O decreto, por sua vez, dispõe sobre o caráter permanente da comissão, que tem por objetivo assessorar o Ministério da Saúde (MS) nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração, pelo SUS, de tecnologias de saúde, bem como na constituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas55 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União. 28 Abr 2011.,66 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 21 Dez 2011..

A estrutura da Conitec é composta pelo plenário e pela Secretaria-Executiva (SE). O plenário é a instância responsável pela emissão de relatórios e pareceres conclusivos destinados a subsidiar as decisões do MS. É composto por 13 membros com direito a voto, representantes de diversos órgãos e entidades, indicados pelos seus dirigentes55 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União. 28 Abr 2011.. A SE da Conitec é exercida por uma das unidades da SCTIE, a quem cabe coordenar suas atividades, a saber: o Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde (DGITS), criado pelo Decreto nº 7.797, de 30 de agosto de 201277 Brasil. Ministério da Saúde, Portaria GM/MS nº 2.009/2012 que aprova o Regimento Interno da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Diário Oficial da União. 13 Set 2012..

Em documento produzido pelo DGITS sobre o balanço de atuação da Conitec, observa-se que, no período de 2012 a 2015, a comissão recebeu 459 demandas, sendo 259 (56,4%) provenientes do MS e de secretarias estaduais e municipais de saúde; e 200 (43,6%), provenientes de empresas fabricantes, de órgãos do Poder Judiciário, de associações de pacientes e sociedades médicas88 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Portaria nº 27. Aprova o fluxo de trabalho para elaboração e atualização dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas no âmbito da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 12 Jun 2015..

Dadas as competências da Conitec, seus membros são atores importantes do processo decisório de incorporação de tecnologias no SUS, uma vez que são responsáveis por analisar informações e tomar decisões relevantes, que dizem respeito à modernização e à inovação do sistema, à melhoria da qualidade e expectativa de vida da população e ao impacto financeiro sobre os cofres públicos.

Nesse sentido, a regulação do processo de incorporação de novas tecnologias em saúde constitui elemento central nos sistemas de atenção à saúde, seja como parte da política de inovação, seja para garantir a observância dos aspectos éticos, sociais ou econômicos que envolvem a incorporação tecnológica99 Viana ALD, Silva HP, Elias PEM. Economia política da saúde: introduzindo o debate. Divulg. Saúde debate. 2007; (37):7-20.,1010 Guimarães R. Incorporação tecnológica no SUS: o problema e seus desafios. Ciênc Saúde Colet. [internet]. 2014; 19(12):4899-4908..

No contexto das decisões da Conitec, todas as demandas por incorporação de tecnologias devem apresentar evidências científicas de eficácia e segurança, além de estudos de avaliação econômica e impacto orçamentário na perspectiva do SUS1111 Laranjeira FO, Petramale CA. A avaliação econômica em saúde na tomada de decisão: a experiência da Conitec. BIS, Bol. Inst. Saúde [internet]. 2013 maio; 14(2):165-170.,1212 Evelinda T, Martins PN, Zanberlan AG et al. Experiência da Rede Paulista de ATS na parceria com a Conitec. Rev. Eletrôn. Gestão Saúde. 2015; 6(4):3297-3312..

A necessidade de orientar-se por evidências científicas e a pressão para o cumprimento dos prazos, exigidos legalmente55 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União. 28 Abr 2011.,66 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 21 Dez 2011., estimularam a busca, pela Conitec, de instituições de apoio, desenvolvendo-se a Rede de Parceiros da Conitec com uma maior disseminação dos Núcleos de Avaliação de Tecnologias em Saúde e de vários Hospitais Sentinela, especialmente no estado de São Paulo1212 Evelinda T, Martins PN, Zanberlan AG et al. Experiência da Rede Paulista de ATS na parceria com a Conitec. Rev. Eletrôn. Gestão Saúde. 2015; 6(4):3297-3312..

De uma forma geral, o desenvolvimento de um marco legal bem delineado, baseado em processos de trabalho previamente definidos, foi fundamental para que o processo decisório da Conitec, além de estar amparado legalmente, fosse conduzido de forma padronizada e transparente.

Este estudo analisou o processo de decisão da Conitec relativo à elaboração das recomendações para incorporação ou não de medicamentos ao SUS, no período de 2010 a 2015, buscando identificar os tipos de racionalidade presentes ou predominantes.

Elementos conceituais

A decisão se refere a uma escolha frente a várias alternativas da ação. Tomar decisões é identificar e selecionar um curso de ação para lidar com um problema específico1313 Chiavenato I. Administração em novos tempos. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus; 1999.

14 Chiavenato I. Introdução à Teoria Geral da Administração. 8. ed. São Paulo: Makron; 2011.
-1515 Einsenhardt KM, Zbaracki MJ. Strategic Decision Making. Strategic Management J. 1992; 13(esp):17-37..

De acordo com a teoria econômica clássica, esse processo de escolha entre diferentes alternativas de ação é orientado, fundamentalmente, por cálculos racionais. Os indivíduos entram em situações de decisão com objetivos previamente conhecidos, os quais, por sua vez, determinam o valor de cada uma das possíveis consequências da ação. A partir daí, reúnem todas as informações necessárias, definem o conjunto de alternativas e tomam a decisão 'ótima'1414 Chiavenato I. Introdução à Teoria Geral da Administração. 8. ed. São Paulo: Makron; 2011.,1515 Einsenhardt KM, Zbaracki MJ. Strategic Decision Making. Strategic Management J. 1992; 13(esp):17-37..

Simon criticou essa concepção de racionalidade, argumentando que a capacidade do ser humano para reunir, compreender e recuperar informações da memória e para fazer inferências é limitada por informações incompletas e imperfeitas, pela complexidade do problema, pela capacidade limitada de processar informação, pelo tempo disponível, pelas preferências, valores e interesses conflitantes em relação aos objetivos organizacionais e pelos ambientes extremamente dinâmicos nos quais ele se situa. Assim, destacou que a racionalidade é necessariamente limitada, e o máximo a que se pode aspirar é uma decisão 'satisfatória'1616 Simon HA. Comportamento Administrativo. Estudo dos Processos Decisórios nas Organizações Administrativas. Rio de Janeiro: FGV; 1979.,1717 Mota FCP, Vasconcelos IFG. Os processos decisórios nas organizações e o modelo Carnegie. IN: Mota FCP, Vasconcelos IFG. Teoria Geral da Administração. 3. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning; 2006. p. 95-121..

Outra crítica importante ao modelo racional da teoria econômica clássica foi feita por Lindblom1818 Lindblon CE. O Processo de Decisão Política. Brasília, DF: UNB; 1981., que chamou a atenção para a influência dos interesses políticos, relativos ao acúmulo e ao exercício de poder, dos diversos atores envolvidos no processo decisório. O modelo político de decisão enfatiza, portanto, a atuação dos diversos atores sociais, que procuram satisfazer suas necessidades pessoais e institucionais através das decisões tomadas na organização.

No campo das políticas de saúde, é reconhecida a presença concomitante de distintas racionalidades, ao mesmo tempo complementares e conflitantes, influenciando o processo de tomada de decisões1919 Paim JS, Almeida Filho N. Análise da situação de saúde: o que são necessidades e problemas de saúde? In: Paim JS, Almeida Filho N. Saúde Coletiva: Teoria e Prática. 1. ed. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. p. 29-40..

Inspirado no reconhecimento dessas racionalidades e considerando as teorias da decisão, o presente estudo adota a seguinte tipologia para analisar o processo de decisão relativo à incorporação de tecnologias da saúde: racionalidade técnico-sanitária, racionalidade econômica e racionalidade política.

O primeiro tipo, a racionalidade técnico-sanitária, está próximo do conceito de razão da economia clássica, modificado pela crítica de Simon. Trata-se, portanto, de basear a decisão no melhor conhecimento técnico-científico disponível, reconhecendo-se, todavia, a impossibilidade de se chegar a uma decisão ótima.

No caso concreto da Conitec, a racionalidade técnico-sanitária diz respeito à utilização dos conhecimentos da clínica, da epidemiologia, do planejamento e da gestão em saúde e, em particular, da ATS como fio condutor do processo de decisão referente à recomendação de incorporação ou não de tecnologias em saúde ao SUS. Mais especificamente, a decisão deve se sustentar na análise das evidências científicas relativas à eficácia, acurácia, efetividade e segurança da tecnologia em avaliação.

O segundo tipo, a racionalidade econômica, também próximo ao conceito de racionalidade limitada, diz respeito à preocupação com a sustentabilidade econômico-financeira do sistema de saúde, no longo e no médio prazos, e com o impacto orçamentário, no curto prazo.

No caso em estudo, refere-se à busca, pela Conitec, das melhores informações disponíveis acerca do impacto econômico da incorporação de uma determinada tecnologia sobre o sistema público de saúde, nos diversos horizontes de tempo, para orientar a tomada de decisão.

O terceiro tipo, a racionalidade política, próximo ao modelo político de decisão, diz respeito à existência de múltiplos interesses políticos, geradores de conflitos entre os atores envolvidos no processo de tomada de decisão. Estes atores podem formar coalizões e alianças políticas, e as soluções são constantemente negociadas1717 Mota FCP, Vasconcelos IFG. Os processos decisórios nas organizações e o modelo Carnegie. IN: Mota FCP, Vasconcelos IFG. Teoria Geral da Administração. 3. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning; 2006. p. 95-121.,1818 Lindblon CE. O Processo de Decisão Política. Brasília, DF: UNB; 1981..

No caso da Conitec, a racionalidade política se refere ao reconhecimento da existência de interesses diversos e, eventualmente, conflitantes em cada processo de decisão sobre a recomendação de incorporação ou não de uma determinada tecnologia de saúde. Refere-se também às estratégias adotadas pelo plenário e pela direção da comissão para lidar com as divergências e os conflitos.

Destaca-se que o conceito de tecnologia em saúde adotado neste estudo se refere aos dispositivos, medicamentos, procedimentos médicos e cirúrgicos usados na prevenção, no diagnóstico, no tratamento e na reabilitação, incluindo os sistemas organizacionais e de suporte dentro dos quais os cuidados são oferecidos2020 Organization for Economic Co-operation and Development. Health technologies and decision making. Paris: OECD; 2005..

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo que tem como caso a Conitec e como foco de análise a tomada de decisão de recomendar a incorporação ou a não incorporação de medicamentos biológicos ao SUS. Vale salientar que se trata de um dos produtos da tese de doutorado intitulada 'A influência das ações judiciais na incorporação de medicamentos biológicos ao Sistema Único de Saúde', defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia, no ano de 2017.

Para a produção dos dados, foram utilizados como fontes documentos oficiais, entrevistas semiestruturadas com os membros da Conitec e observação não participante de reuniões ordinárias da comissão.

Os documentos analisados foram as leis, os decretos e o regimento interno que regulamentam a Conitec, além de atas de reuniões e relatórios de recomendação de incorporação de tecnologias.

Foram realizadas 13 entrevistas semiestruturadas, envolvendo todos os membros da Conitec, inclusive sua presidente e diretora do DGITS.

Os momentos de observação não participante das reuniões ordinárias da Conitec aconteceram no período de outubro de 2015 a abril de 2016. Especificamente, foram acompanhadas as 40ª, 42ª e 44ª reuniões, somando um total de 39 horas de observação. Para o processamento do material empírico proveniente dos documentos, das entrevistas e da observação, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo temática2121 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011..

Registre-se que o estudo foi previamente submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia, sob número de protocolo 022/2015, em cumprimento à Resolução nº 466/2012.

O processo de tomada de decisão da Conitec

A seguir, são descritas as etapas do processo de tomada de decisão da Conitec, com o propósito de evidenciar os tipos de racionalidade presentes ou dominantes. Note-se que essa descrição está ancorada nas definições legais e normativas que orientaram, efetivamente, a conduta da Conitec no período analisado.

IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA E OBTENÇÃO DA INFORMAÇÃO

No processo decisório da Conitec, o problema refere-se à deliberação sobre a recomendação de incorporação ou de não incorporação de determinada tecnologia ao SUS ou, ainda, a exclusão da mesma das listas oficiais de distribuição. Lembre-se que, conforme o artigo 2º do Decreto nº 7.646/201166 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 21 Dez 2011., a Conitec tem por objetivo assessorar o MS nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração, pelo SUS, de tecnologias em saúde, bem como na constituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.

A incorporação, a exclusão e a alteração de tecnologias em saúde e a constituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas são precedidas de processo administrativo, que deve ser protocolado pelo interessado na SE da Conitec.

A SE desempenha uma função administrativa fundamental no processo de avaliação de tecnologias em saúde e de recomendação ou não de incorporação destas ao SUS. De fato, conforme o depoimento da entrevistada 12, o trabalho que envolve a SE é receber as demandas e fazer uma análise de conformidade para verificar se o dossiê apresentado pelo demandante contém os requisitos mínimos para prosseguir com o processo, pois, caso não tenha, ele será negado e devolvido ao demandante. Se a demanda cumprir os requisitos necessários, o processo segue para um dos analistas, que fará uma observação minuciosa e crítica do processo, complementando com outras evidências, caso necessário. Deste modo, são avaliados o grau e a qualidade da evidência disponível, e o grau de confiabilidade dos estudos apresentados, incluindo os estudos econômicos.

A partir dos depoimentos colhidos nas entrevistas, nota-se que há um trabalho de sistematização das demandas recebidas no DGITS antes de apresentá-las aos membros do plenário. Desta forma, a equipe da SE prepara um relatório inicial, que é encaminhado para a apreciação dos membros do plenário, antes da reunião mensal, para conhecimento prévio da pauta e do conteúdo do relatório.

Para o entrevistado 10, há um processo de trabalho muito bem definido no âmbito da Conitec. Os membros do plenário recebem todo o material com antecedência. Assim, quem precisa e/ou quer tem oportunidade de analisar profundamente toda a demanda de incorporação em questão. Assim,

[...] o trabalho para aprovar ou não aprovar uma incorporação é feito de uma forma muito técnica, a gente percebe claramente - e eu sou muito crítico nesse aspecto - de que não há, dentro da apresentação, um viés de não aprovar ou aprovar determinada coisa. É colocada a forma técnica, sem dúvida nenhuma. (Ent. 10).

A sistematização das informações pela SE é de grande importância para o processo de decisão da Conitec, uma vez que o levantamento de dados e informações é fundamental para se reduzir a incerteza a respeito da situação ou do problema1313 Chiavenato I. Administração em novos tempos. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus; 1999.. Assim, evidencia-se a preocupação de buscar e analisar informações sobre a tecnologia pautada para avaliação.

A gente faz outra revisão para ver se tudo que ele [o demandante] colocou ali é tudo ou se ainda existem outros estudos que podem ser contrários, que podem ter resultados diferentes e, portanto, a gente complementa e diz no relatório. (Ent. 1).

Hoje não se avalia nada em termos de gestão, de incorporação de tecnologia, se você não tiver a informação sobre a evidência científica de acurácia, segurança, efetividade, e também de estudos econômicos que mostrem a relação custo-efetividade, custo-benefício da tecnologia. (Ent. 12).

Quanto mais bem informado o representante 'tiver, mais rápido as coisas funcionam. Ele não vai pedir prazo, ele vai já decidir de primeira. (Ent. 1).

A observação das reuniões da Conitec reforça o que foi ouvido nas entrevistas e lido nos documentos. Assim, os membros do plenário, por receberem antecipadamente o relatório inicial preparado pela SE, chegam à reunião munidos de informações necessárias para a tomada de decisão. Além disso, para cada ponto de pauta são apresentados estudos de avaliação das tecnologias, incluindo os estudos econômicos, assim como os resultados das consultas públicas realizadas.

A racionalidade reside, portanto, na escolha dos meios mais apropriados para o alcance de determinados fins, no sentido de obter os melhores resultados. Porém, as pessoas comportam-se racionalmente apenas em função daqueles aspectos da situação que conseguem perceber e tomar conhecimento. Os demais aspectos da situação, que não são percebidos ou não são conhecidos pelas pessoas - embora existam na realidade -, não interferem em suas decisões. Ou seja, as pessoas tomam decisões racionais apenas em relação aos aspectos da situação que conseguem perceber e interpretar1313 Chiavenato I. Administração em novos tempos. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus; 1999.,1515 Einsenhardt KM, Zbaracki MJ. Strategic Decision Making. Strategic Management J. 1992; 13(esp):17-37..

Vale salientar que, sempre que necessário, são convidados experts na temática em questão, para participarem das reuniões da Conitec, com o propósito de esclarecer dúvidas sobre as tecnologias que estão sendo avaliadas, conforme afirma um dos entrevistados:

[...] já aconteceu várias vezes aqui dentro, entenderem que faltam dados ou faltam complementar dados. Assim, são solicitados mais dados e isso volta para área técnica da Conitec, que pode trazer especialistas, inclusive, para vir falar sobre determinado produto. (Ent. 10).

Outra estratégia importante para reduzir o nível de incerteza na tomada de decisão é a capacitação constante da equipe. Assim, os membros do plenário sempre recebem treinamentos sobre ATS, até porque uma das diretrizes da comissão é justamente a incorporação de tecnologias por critérios técnicos, com base em parâmetros de eficácia, eficiência e efetividade adequados às necessidades de saúde, como evidenciado nas falas a seguir:

Houve um processo de aprendizado do plenário, processo de aprendizado da própria equipe da Conitec quando começou. (Ent. 4).

[...] então, houve uma curva de aprendizado, sim, da própria equipe. Foram feitos vários treinamentos para equipe e para o plenário, em avaliação de estudos econômicos, inclusive, com instrumentos de avaliação. Eles [o DGITS] têm vários parceiros. (Ent. 5).

[...] a Conitec sempre trouxe pra nós uma transferência de conhecimento muito boa. (Ent. 10).

A utilização dos conhecimentos da ATS, tanto pela SE quanto pelos membros do plenário, pode ajudar a reduzir o nível de incerteza do processo decisório e é fundamental para a tomada de decisão sobre a incorporação ou não de tecnologias em saúde para o SUS. Esses conhecimentos são fortemente utilizados na fase de desenvolvimento e de avaliação das alternativas que compõem o processo de decisão.

Como se percebe pelo exposto acima, nessa primeira etapa do processo decisório, os membros da Conitec coletam e processam uma enorme variedade de informações para caracterizar o problema. A capacidade de coletar e processar tais informações para assegurar as bases para a melhor escolha é limitada, já que não se pode ter acesso a todas as informações existentes sobre a situação e/ou o problema. Assim, a Conitec não tem condição de analisar integralmente toda a situação nem de procurar todas as alternativas. Por isto, coerentemente com o que afirma Simon, os seus membros buscam as soluções mais satisfatórias conforme os seus objetivos.

Portanto, as características do processo de tomada de decisão da Conitec, até aqui apresentadas, aproximam-no bastante do modelo racional de decisão, modificado pelo conceito de racionalidade limitada.

DESENVOLVIMENTO E AVALIAÇÃO DAS ALTERNATIVAS

Uma vez analisado o problema, os tomadores de decisão passam à segunda etapa do processo decisório, começando a considerar as alternativas de ação cabíveis. No caso da Conitec, analisam-se estudos científicos que demonstrem que a tecnologia pautada é, no mínimo, tão segura, eficaz e custo-efetiva quanto aquelas disponíveis no SUS para a mesma determinada indicação. Caso necessário, são solicitados estudos e pesquisas complementares. As alternativas são assim avaliadas e comparadas, a fim de se escolher a mais adequada à solução do problema identificado, ou seja, a recomendação favorável ou não à incorporação da nova tecnologia ao SUS. A alternativa escolhida será a solução mais satisfatória, de acordo com os critérios técnico-sanitários.

Mais especificamente,

[...] a proposta de incorporação deve conter um conjunto de informações que diz respeito às características técnicas da proposta em si, seja um medicamento, seja um produto, um exame laboratorial. (Ent. 2).

Os fatores avaliados em cada situação geralmente têm a ver com a eficiência, a segurança da tecnologia. Mas não só isso: tem a questão da equidade, da capacidade de um sistema de saúde atender de maneira adequada o número de pessoas. (Ent. 3).

Então, nos baseamos em conhecimentos advindos da ATS. (Ent. 5).

As buscas são realizadas para a obtenção de todo substrato científico, ou seja, revisão extensiva da literatura, análise dos modelos econômicos, para que a decisão seja embasada em evidências científicas. Portanto, a gente não discute opiniões pessoais, a gente discute evidências científicas. (Ent. 7).

Tanto as atas de reuniões quanto os relatórios de incorporação analisados mostram os resultados dos estudos apresentados pelos demandantes, pela equipe do DGTIS ou por experts convidados para esclarecerem dúvidas sobre o medicamento em avaliação.

Assim como há, na primeira etapa, a preocupação em se obter todas as informações disponíveis para a análise da situação, na segunda fase, a busca por mais substratos científicos sobre a tecnologia pautada embasará a escolha entre as alternativas de decisão, neste caso, a recomendação da incorporação ou a não incorporação.

Vale ressaltar que, além de utilizar a busca e a avaliação de evidências científicas, para manter a transparência do processo decisório, todas as recomendações da Conitec são postas em consultas públicas, o que foi constatado nas atas de reuniões analisadas, nos relatórios de incorporação emitidos pela comissão e nos depoimentos dos entrevistados, assim como nas observações realizadas.

Ainda que as consultas também possam acontecer na primeira fase do processo de decisão, como estratégia de busca de mais informações para subsidiar a caracterização do problema, elas são mais úteis e mais utilizadas nessa segunda etapa, como estratégia de aprofundamento da avaliação das alternativas disponíveis.

A importância da consulta pública encontra-se, exatamente, na possibilidade de dar voz àqueles que não estão incluídos diretamente no processo de tomada de decisão, sejam eles usuários do sistema público de saúde e seus familiares, profissionais de saúde, instituições de saúde, instituições de ensino, empresas, sociedades médicas, além de organizações não governamentais. Com efeito, existem pontos de vistas sobre determinadas tecnologias que são inerentes aos usuários que as utilizam, aos profissionais de saúde que as prescrevem e que as administram, por exemplo, e que podem não constar nos relatórios apresentados à Conitec.

Nota-se, assim, que a Conitec, antes de tomar uma decisão, analisa com cuidado as alternativas existentes, considerando as consequências de cada uma delas. Considera, ainda, as consequências da incorporação ou não de um dado medicamento biológico para os pacientes que farão uso do mesmo, para o sistema de saúde, para o Estado e para a sociedade. Trata-se realmente de um processo complexo que envolve diversos aspectos técnicos, éticos, econômicos e sociais, e que pode ser influenciado por diversos fatores e atores, externos ou internos à organização.

Vê-se, assim, que, também nessa fase, o processo de tomada de decisão no âmbito da Conitec pode ser equiparado ao modelo racional de decisão, na versão da racionalidade limitada, pois os membros da Conitec têm consciência dos limites das evidências científicas.

[...] do ponto de vista científico, é feita uma busca exaustiva, mas às vezes emergem questões que podem não ter sido contempladas nos estudos avaliados. Acredito que nem sempre a informação que temos sobre a tecnologia é completa... (Ent. 3).

É óbvio que há situações que envolvem conflitos de interesses, das mais variadas ordens. Os conflitos econômicos, representados por aqueles que produzem a tecnologia, disputam o mercado de tecnologias equiparáveis. Portanto, os membros da Conitec devem ter a maturidade suficiente para sempre ter o interesse da população acima dos interesses pessoais. E quando eu digo pessoal, não é pessoal dos membros da Conitec, mas dos sujeitos, dos interesses conflituosos. (Ent. 7).

IMPLEMENTAÇÃO E MONITORAMENTO DA DECISÃO

A terceira etapa do processo de decisão da Conitec se refere à implementação e ao monitoramento da decisão, que começam com a apresentação de relatório da recomendação de incorporação ou não da tecnologia em pauta. Neste relatório constam dados sobre a doença, a tecnologia, a análise da evidência apresentada pelo demandante, a discussão das evidências científicas encontradas pela comissão, a análise de impacto orçamentário, os dados da consulta pública e a deliberação final da Conitec.

Concluído o relatório da Conitec, o processo é encaminhado, pela SE, à SCTIE para decisão final. Esta pode solicitar a realização de audiência pública antes de sua decisão, conforme a relevância da matéria.

Na hipótese de realização de audiência pública, pode o secretário requerer a manifestação, em regime de prioridade, do plenário da Conitec sobre as sugestões e contribuições apresentadas. Caso se trate de requerimento de constituição ou de alteração de protocolo clínico ou diretriz terapêutica, o secretário deve submetê-lo à manifestação do titular da secretaria responsável pelo programa ou ação, conforme a matéria66 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 21 Dez 2011..

Por fim, o ato decisório do secretário da SCTIE sobre o pedido formulado no requerimento administrativo é publicado no Diário Oficial da União, sendo que o Ministro de Estado da Saúde pode confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida em até 30 dias, prazo prorrogável mediante justificativa expressa, por igual período de tempo.

O Decreto nº 7.646/201166 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 21 Dez 2011. traz, ainda, que, a partir da publicação da decisão de incorporar a tecnologia em saúde, ou protocolo clínico e diretriz terapêutica, as áreas técnicas terão prazo máximo de 180 dias para efetivar a oferta da tecnologia pelo SUS.

Com relação ao monitoramento da decisão, conforme o Balanço Conitec 2012-20142222 Brasil. Ministério da Saúde. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Balanço Conitec 2012-2014. Brasília, DF: MS; 2014., em 2013, foi iniciada a atividade de monitoramento das tecnologias incorporadas no SUS, que compreendeu a construção de um banco de dados com informações relevantes para o acompanhamento dessas tecnologias, a seleção de indicadores para avaliar o processo de oferta e a produção de relatórios específicos, que devem abranger as informações sobre: a tecnologia, a decisão, os prazos para a oferta, a logística, o financiamento, a aquisição, o impacto orçamentário e o consumo.

Enfim, o banco de dados, os relatórios e os indicadores que permitem monitorar e avaliar o processo de incorporação de tecnologias no SUS e propiciar a produção de informações estratégicas para subsidiar a Conitec em futuras avaliações e recomendações de incorporação2222 Brasil. Ministério da Saúde. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Balanço Conitec 2012-2014. Brasília, DF: MS; 2014. são indicações claras de que o processo de decisão da Conitec, também nessa terceira etapa, está pautado na racionalidade técnico-sanitária que tem a forma do modelo racional de decisão.

Sem dúvida, é importante que a decisão de recomendar a incorporação ou a não incorporação de uma tecnologia em saúde esteja baseada na racionalidade técnico-sanitária, dado que a Conitec tem como principal objetivo, em última instância, contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas que dependem do sistema de saúde. Deste modo, é preciso, acima de tudo, pensar em incorporar tecnologias que levem em conta o perfil epidemiológico da população e que sejam realmente seguras e eficazes para os indivíduos que delas farão uso.

Além disso, a tomada de decisão é necessariamente influenciada pela racionalidade econômica, visto que a decisão deve levar em consideração a sustentabilidade do sistema público de saúde. Assim, além de seguras e eficazes, as tecnologias em saúde precisam ter uma relação custo-efetividade superior às alternativas já disponibilizas pelo SUS.

Vale mencionar, contudo, que os aspectos econômicos são considerados menos importantes do que os aspectos técnico-sanitários, como pode ser verificado nas falas a seguir:

Sem dúvida alguma, a questão do impacto orçamentário e a possibilidade de financiamento pelo SUS têm que ser levadas em consideração, mas isso não é decisivo para uma recomendação. A gente nunca deixou de incorporar alguma coisa pensando que seria só uma questão de orçamento, o limite nunca foi esse. (Ent. 13).

A análise da Conitec não é a análise do orçamento disponível. Em princípio, não cabe à Conitec, em sua análise, incorporar ou deixar de incorporar pela existência ou não de disponibilidade orçamentária. Isso caberia ao gestor federal do SUS. (Ent. 2).

Apesar dos aspectos técnico-sanitários e econômicos serem determinantes para as decisões da Conitec, eles não são os únicos elementos levados em consideração no momento de definição quanto a uma recomendação sobre incorporação ou não de uma dada tecnologia.

Com efeito, ao serem questionados sobre outros aspectos que poderiam influenciar o processo de decisão da Conitec, alguns entrevistados admitiram que existem conflitos de interesse e que os membros do plenário devem saber lidar com estes para que não exerçam algum tipo de pressão indevida nas tomadas de decisão.

Todos têm influência, e todos têm os seus conflitos de interesse, então, isso tudo tem que ser dosado na hora de tomar decisão. É como eu disse: a evidência científica, a relevância clínica que é o principal, porque os interesses pessoais, os interesses de cada ator... Isso é legítimo, cada um tem o seu e a gente, aqui no plenário, tem que tentar dosar isso e contrapor com a evidência que está disponível. (Ent. 6).

O que fica evidente nesse depoimento é que os membros da Conitec têm consciência de que o processo decisório pode sofrer influências de interesses particulares.

Esse tipo de influência está presente no processo decisório e, de certo modo, interesses diferentes daqueles voltados ao bem comum podem, em tese, afetar as escolhas da Conitec.

Vale destacar que, dos atores interessados na incorporação de novas tecnologias, as empresas fabricantes, importadoras ou distribuidoras mantêm estratégias agressivas de marketing/lobbies junto aos médicos e/ou ao público para a promoção do uso e a disseminação de novas tecnologias.

Na percepção do entrevistado 3, o processo de incorporação de tecnologia, sem desconsiderar o aspecto técnico-assistencial, envolve um jogo de venda de serviços e de produtos para o MS. Então, toda empresa que tem um produto que pode ser interessante para o SUS, vai, de algum modo, tentar influenciar o processo decisório. Assim, utiliza-se do convencimento acadêmico, das publicações científicas, dos grupos de pacientes e de todos os canais possíveis para sensibilizar em relação àquela necessidade do uso da nova tecnologia. Neste jogo de poder, a empresa pode até criar uma nova necessidade em saúde.

Então, é basicamente um jogo de duas pontas: uma que está vendendo e outra que está comprando um serviço, um produto, uma tecnologia. (Ent. 3).

A criação de novas necessidades em saúde é discutida, por exemplo, no campo da saúde coletiva, no qual alguns autores enfatizam a existência de uma abordagem predominante de necessidades de saúde como se fossem sinônimos de necessidades de tecnologias ou de serviços de saúde1717 Mota FCP, Vasconcelos IFG. Os processos decisórios nas organizações e o modelo Carnegie. IN: Mota FCP, Vasconcelos IFG. Teoria Geral da Administração. 3. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning; 2006. p. 95-121.. Outros ainda afirmam que essa confusão traz implícita a compreensão de que as necessidades de saúde são supridas, necessariamente, pelos serviços de saúde, reforçando a expansão do consumo de produtos, serviços e procedimentos2323 Campos CMS, Bataiero MO. Necessidade de saúde: uma análise da produção científica brasileira de 1990 a 2004. Interface. 2007; 11(23):605-618..

Na opinião do entrevistado 7, a indústria de tecnologias de saúde é uma das maiores e das mais lucrativas, portanto, os conflitos são muito grandes. Assim, para participar de uma comissão que toma decisões relativas à incorporação tecnológica, os membros devem conhecer os limites entre o bom e o mau uso, o desperdício e o valor real de uma tecnologia.

Para outros entrevistados, o fato da Conitec possuir uma certa heterogeneidade na sua composição torna o processo de decisão mais equilibrado.

Então, esses interesses, essa correlação de forças, a própria pluralidade do plenário ajuda a equilibrar essas influências. (Ent. 8).

Em todas as relações humanas, você vai ter sempre algumas questões ideológicas ou pessoais que vão influenciar em determinadas situações. O importante é você ter todas as visões dentro do mesmo lugar. Se você tiver isso, você anula os conflitos de interesse, o que é o caso dessa casa aqui. (Ent. 10).

O desenho da Conitec incorporou um pouco dessa representação social. A presença dessas pessoas traz outra dimensão e isso não se refere ao voto em si, mas se refere ao conteúdo da discussão que é realizada no plenário da Conitec. (Ent. 2).

A gente tem aqui um certo equilíbrio entre atores e pessoas preparadas para identificar eventuais vieses ou buscar informações adicionais que respaldem a sua colocação e a sua decisão. Existe um certo equilíbrio bastante importante aqui dentro. (Ent. 11).

A diversidade de sujeitos que compõem a comissão parece atuar como um elemento facilitador do processo de tomada de decisão da Conitec. Para os entrevistados, é exatamente a diversidade que proporciona um equilíbrio e uma certa segurança aos membros do plenário, visto que diversas questões podem ser consideradas a partir da colocação dos conhecimentos e das opiniões dos diversos atores envolvidos na decisão, o que pode ser observado também nas reuniões.

Outro elemento que pode minimizar os conflitos de interesse dos diversos stakeholders e, assim, legitimar o trabalho da Conitec é a transparência com que as ações são realizadas (exigidas pela Lei nº 12.401/2011 e pelo Decreto nº 7.646/2011)66 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 21 Dez 2011.,77 Brasil. Ministério da Saúde, Portaria GM/MS nº 2.009/2012 que aprova o Regimento Interno da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Diário Oficial da União. 13 Set 2012.. Assim, todo o processo de incorporação de tecnologias em saúde é de acesso público e colocado em consulta pública antes da decisão final.

De fato, a racionalidade política, como pode ser observado, é um elemento importante no âmbito do processo de decisão da Conitec, considerando que, apesar de seus membros adotarem um modelo de decisão de racionalidade limitada, embasado nas racionalidades técnico-sanitária e econômica, deparam-se com determinadas correlações de forças emanadas, muitas vezes, dos distintos interesses que permeiam o processo de incorporação de tecnologias ao Sistema Único de Saúde.

Conclusões

A análise do processo de decisão desenvolvido pela Conitec permitiu identificar a coexistência de três tipos de racionalidades acionadas pelos seus membros: a racionalidade técnico-sanitária e a racionalidade econômica, respaldadas nos instrumentos normativos que regulamentam o processo de incorporação de tecnologias em saúde no SUS, e a racionalidade política, que foi evidenciada nas falas dos participantes entrevistados.

Enfim, a análise da legislação específica, das atas de reuniões, dos documentos produzidos pela Conitec, das entrevistas e dos registros de observação permitiu que se concluísse que o processo de tomada de decisão da Conitec pode ser visto como coerente com o modelo de decisão racional, modificado pela racionalidade limitada e pelo modelo político de decisão.

Na prática, a sólida legislação que orienta a avaliação das demandas de incorporação no SUS - e sua estrita observância pela Conitec no período analisado - é o que determinou o predomínio da racionalidade técnico-sanitária do processo de decisão da Conitec.

  • Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Ministério da Saúde (Chamada MCTI / CNPq / CT-Saúde / MS / SCTIE / Decit N º 41/2013)

Referências

  • 1
    Scheffer MC. Aids, tecnologia e acesso sustentável a medicamentos: a incorporação dos anti-retrovirais no Sistema Único de Saúde [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina; 2008. 255 f.
  • 2
    Cowan J, Berkowitz D. Technology Assessment at work: Part I - Principles and a case study. Physician Executive. 1996; 22:5-9.
  • 3
    Davison SN. Technological Cancer: It's causes and treatment. Health Care Forum J. 1995; 52-58.
  • 4
    Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 152/GM/MS de 19 de janeiro de 2006. Institui o fluxo para incorporação de tecnologias no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 19 Jan 2006.
  • 5
    Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União. 28 Abr 2011.
  • 6
    Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 21 Dez 2011.
  • 7
    Brasil. Ministério da Saúde, Portaria GM/MS nº 2.009/2012 que aprova o Regimento Interno da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Diário Oficial da União. 13 Set 2012.
  • 8
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Portaria nº 27. Aprova o fluxo de trabalho para elaboração e atualização dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas no âmbito da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 12 Jun 2015.
  • 9
    Viana ALD, Silva HP, Elias PEM. Economia política da saúde: introduzindo o debate. Divulg. Saúde debate. 2007; (37):7-20.
  • 10
    Guimarães R. Incorporação tecnológica no SUS: o problema e seus desafios. Ciênc Saúde Colet. [internet]. 2014; 19(12):4899-4908.
  • 11
    Laranjeira FO, Petramale CA. A avaliação econômica em saúde na tomada de decisão: a experiência da Conitec. BIS, Bol. Inst. Saúde [internet]. 2013 maio; 14(2):165-170.
  • 12
    Evelinda T, Martins PN, Zanberlan AG et al. Experiência da Rede Paulista de ATS na parceria com a Conitec. Rev. Eletrôn. Gestão Saúde. 2015; 6(4):3297-3312.
  • 13
    Chiavenato I. Administração em novos tempos. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus; 1999.
  • 14
    Chiavenato I. Introdução à Teoria Geral da Administração. 8. ed. São Paulo: Makron; 2011.
  • 15
    Einsenhardt KM, Zbaracki MJ. Strategic Decision Making. Strategic Management J. 1992; 13(esp):17-37.
  • 16
    Simon HA. Comportamento Administrativo. Estudo dos Processos Decisórios nas Organizações Administrativas. Rio de Janeiro: FGV; 1979.
  • 17
    Mota FCP, Vasconcelos IFG. Os processos decisórios nas organizações e o modelo Carnegie. IN: Mota FCP, Vasconcelos IFG. Teoria Geral da Administração. 3. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning; 2006. p. 95-121.
  • 18
    Lindblon CE. O Processo de Decisão Política. Brasília, DF: UNB; 1981.
  • 19
    Paim JS, Almeida Filho N. Análise da situação de saúde: o que são necessidades e problemas de saúde? In: Paim JS, Almeida Filho N. Saúde Coletiva: Teoria e Prática. 1. ed. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. p. 29-40.
  • 20
    Organization for Economic Co-operation and Development. Health technologies and decision making. Paris: OECD; 2005.
  • 21
    Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011.
  • 22
    Brasil. Ministério da Saúde. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Balanço Conitec 2012-2014. Brasília, DF: MS; 2014.
  • 23
    Campos CMS, Bataiero MO. Necessidade de saúde: uma análise da produção científica brasileira de 1990 a 2004. Interface. 2007; 11(23):605-618.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2018
  • Aceito
    18 Set 2018
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br