Nasf: fragmentação ou integração do trabalho em saúde na APS?

Nasf: fragmentation or integration of health work in PHC?

Thiago Santos Souza Maria Guadalupe Medina Sobre os autores

RESUMO

Este artigo teve como objetivo analisar as relações técnicas e sociais de trabalho entre profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS), investigando, especialmente, se a inserção do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) fomenta a integração de práticas ou reforça a fragmentação do trabalho em saúde. Trata-se de um estudo de caso realizado em um município baiano considerado exitoso com respeito à implementação da APS. A análise fundamentou-se na teoria do processo de trabalho em saúde e utilizou como fontes de evidência documentos relacionados com a gestão municipal, documentos produzidos pela equipe Nasf, entrevistas semiestruturadas com gestores, profissionais do Nasf e de três equipes de saúde da família e informações do diário de campo do pesquisador. Apesar de as unidades terem ampliado seu cardápio de oferta com a equipe Nasf, os resultados desta investigação apontam para a existência de um elo tênue entre as equipes da APS. As ações ocorreram por meio do agrupamento dos agentes, com fragmentação do trabalho e justaposição de atividades com tímida construção de um projeto assistencial comum. Constataram-se relações assimétricas de poder e subordinação dos demais profissionais aos médicos, relações conflituosas e distintas regras de gestão do trabalho das equipes, contribuindo para práticas desarticuladas.

PALAVRAS-CHAVE
Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Atenção à saúde; Prática de saúde pública

ABSTRACT

This study aimed to analyze the technical and social relations of work among Primary Health Care (PHC) professionals, especially investigating whether the insertion of the Family Health Support Center (Nasf) contributes for the integration or the fragmentation of health work. This is a case study carried out in a municipality of Bahia, considered successful regarding the implementation of PHC. The study was based on the health work process theory and used as evidence documents related to the municipal management, produced by the Nasf, semistructured interviews with managers, Nasf professionals and three teams of family health as well as the information of the researcher's field journal. Although the units have expanded their offer of services with the Nasf, the results obtained from this study point to the existence of a tenuous link between the PHC teams. The actions were carried out by the grouping of agents, with fragmentation of work and juxtaposition of activities with a timid construction of a common care project. Asymmetric relationships of power and subordination of other professionals to doctors, conflicting relationships and different rules of management of team work were observed, contributing to disjointed practices.

KEYWORDS
Primary Health Care; Family Health Strategy; Health care; Public health practice

Introdução

Nas últimas duas décadas, houve expansão vertiginosa da Estratégia Saúde da Família (ESF) nos municípios brasileiros com efeitos positivos na melhoria de saúde da população e na reorientação do modelo de atenção11 Medina MG, Hartz ZMA. The role of the Family Health Program in the organization of primary care in municipal health systems. Cad Saúde Pública. 2009; 25(5):153-167.

2 Dourado I, Oliveira VB, Aquino R, et al. Trends in Primary Health Care-sensitive Conditions in Brazil: The Role of the Family Health Program (Project ICSAP-Brazil). Medical Care. 2011; 49(6):577-584.

3 Guanais FC. The Combined Effects of the Expansion of Primary Health Care and Conditional Cash Transfers on Infant Mortality in Brazil, 1998-2010. American J Public Health. 2013; 103(11):2000-2006.

4 Rasella D, Aquino R, Santos CA, et al. Effect of a conditional cash transfer programme on childhood mortality: a nationwide analysis of Brazilian municipalities. The Lancet. 2013; 382(9886):57-64.
-55 Aquino R, Medina MG, Nunes CA, et al. Estratégia Saúde da Família e reordenamento do sistema de serviços de saúde. In: Paim JS, Almeida-filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e Prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. p. 353-371..

Paralela à ampliação da cobertura assistencial, houve inserção de outras categorias profissionais no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS), além da equipe mínima, com a criação de Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), cujo objetivo seria o de apoiar as Equipes de Saúde da Família (EqSF) e ampliar o escopo das ações na atenção básica66 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF. Diário Oficial da União. 24 Jan 2008.. Em 2017, com a revisão da Política Nacional da Atenção Básica (PNAB), o Nasf teve sua nomenclatura redefinida, passando a denominar-se Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB)77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017..

Nos últimos 10 anos, o número de equipes do Nasf foi estendido de modo gradativo, sendo que, em abril de 2018, contava-se com 5.236 equipes espalhadas por todo o Brasil. Destas, 3.087 eram do tipo I; 964, do tipo II; e 1.185, do tipo III. O estado da Bahia contava com 430 equipes, sendo 316 do tipo I, 101 do tipo II e 13 do tipo III88 Brasil. Ministério da Saúde. Histórico de cobertura da saúde da família. Departamento de atenção básica. Brasília, DF: MS; 2018 [acesso em 2018 maio 19]. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/historico_cobertura_sf.php.
http://dab.saude.gov.br/portaldab/histor...
. Vale esclarecer que a diferenciação dos tipos I, II e III relaciona-se com a quantidade e tipo de profissional, carga horária e número de equipes apoiadas99 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 3.124, de 28 de dezembro de 2012. Redefine os parâmetros de vinculação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) Modalidades 1 e 2 às equipes de saúde da família e/ou Equipes de Atenção Básica para populações específicas, cria a Modalidade NASF 3, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 28 Dez 2012..

Ao analisar a literatura produzida sobre os Nasf, observam-se algumas mudanças de objeto e enfoque analítico dos estudos. Enquanto no período inicial de implementação as reflexões foram voltadas às características de inserção das categorias profissionais no âmbito da APS1010 Molini-Avejonas DR, Mendes VLF, Amato CBH. Fonoaudiologia e Núcleos de Apoio à Saúde da Família: conceitos e referências. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010; 15(3):465-474.

11 Lancman S, Barros JO. Estratégia Saúde da Família, Núcleo de Apoio à Saúde da Família e terapia ocupacional: problematizando as interfaces. Rev Ter Ocup Univ. 2011; 22(3):262-269.

12 Santos SFS, Benedetti TRB. Cenário de implantação do Núcleo de Apoio a Saúde da Família e a inserção do profissional de Educação Física. Rev Bras Ativ Fis Saúde. 2012; 17(3):188-194.

13 Barros CML, Junior GF. Avaliação da atuação do nutricionista nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) do município de Picos/PI. Rev Saúde Desenvol. 2012; 1(1):141-154.
-1414 Formiga NFB, Ribeiro KSQS. Inserção do Fisioterapeuta na Atenção Básica: uma Analogia entre Experiências Acadêmicas e a Proposta dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Rev Bras Ciênc Saúde. 2012; 16(2):113-122., a partir de 2013, passou-se, paulatinamente, a incorporar como objeto de análise as práticas de saúde e as relações estabelecidas entre os agentes na atenção primária1515 Anjos KF, Meira SS, Feraz CEO, et al. Perspectivas e desafios do Núcleo de Apoio à saúde da família quanto às práticas em saúde. Saúde debate. 2013; 37(99):672-680.

16 Lancman S, Goncalves RMA, Cordone NG, et al. Estudo do trabalho e do trabalhar no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Rev Saúde Publica. 2013; 47(5):968-975.

17 Araújo EMD, Galimbertti PA. A colaboração interprofissional na estratégia saúde da família. Psicol Soc. 2013; 25(2):461-468.

18 Leite DC, Andrade AB, Bosi MLM. A inserção da Psicologia nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Physis. 2013; 23(4):1167-1187.

19 Arce VAR, Teixeira CF. Práticas de saúde e modelo de atenção no âmbito do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Salvador (BA). Saúde debate. 2017; 41(esp):228-240.

20 Santos RABG, Uchôa-Figueiredo LR, Lima LC. Apoio matricial e ações na atenção primária: experiência de profissionais de ESF e Nasf. Saúde debate. 2017; 41(114):694-706.
-2121 Aciole GG, Oliveira DKS. Percepções de usuários e profissionais da saúde da família sobre o Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Saúde debate. 2017; 41(115):1090-1101..

Os estudos revelam que a efetividade do Nasf é dependente da relação de parceria estabelecida entre seus integrantes e os profissionais das EqSF e que existem certas condições que tendem a dificultar/facilitar as relações entre eles, tais como formação e experiência profissional, dinâmica de trabalho das EqSF centradas em práticas curativas e padrões de produtividade diferenciados, com maiores níveis de exigência pela gestão para ações assistenciais das EqSF1515 Anjos KF, Meira SS, Feraz CEO, et al. Perspectivas e desafios do Núcleo de Apoio à saúde da família quanto às práticas em saúde. Saúde debate. 2013; 37(99):672-680.,1616 Lancman S, Goncalves RMA, Cordone NG, et al. Estudo do trabalho e do trabalhar no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Rev Saúde Publica. 2013; 47(5):968-975..

Duas pesquisas revelam que a colaboração entre os profissionais da APS envolveu ações compartilhadas marcadas por conflitos e pelo jogo de interações e relações de poder entre o Nasf, a gestão e as EqSF. Soma-se a isso: a falta de capacitação dos profissionais, como um aspecto dificultador para promoção de estratégias conjuntas de integração1717 Araújo EMD, Galimbertti PA. A colaboração interprofissional na estratégia saúde da família. Psicol Soc. 2013; 25(2):461-468.,1818 Leite DC, Andrade AB, Bosi MLM. A inserção da Psicologia nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Physis. 2013; 23(4):1167-1187..

Apesar de existirem vários estudos sobre o Nasf, os resultados ainda são pouco conclusivos sobre a contribuição desses profissionais para a melhoria da qualidade da atenção prestada e para a consolidação de ações coerentes com um novo modelo de prestação de cuidado.

Os estudos sobre o Nasf apresentam como lacuna a análise das características dos processos de trabalho, de modo a permitir a apreensão do seu caráter histórico na sociedade vigente. Pensar no trabalho efetuado pelos sujeitos do Nasf deve remeter à compreensão do seu objeto, de seus instrumentos de trabalho, das formas de organização da produção de seus serviços e das relações que o conjunto de sua prática guarda com o conjunto das demais práticas sociais2222 Mendes-Gonçalves RB. Medicina e história: raízes sociais do trabalho médico [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1979..

A literatura ainda carece de pesquisas que discutam com robustez a relação do objeto do Nasf com os modelos de atenção à saúde, apontando se esse dispositivo está direcionado ao sujeito doente ou às necessidades e problemas de saúde da população no território, à luz de um referencial teórico que sustente as apreensões de suas práticas.

Assim, o presente estudo teve como objetivo analisar as relações técnicas e sociais estabelecidas entre as equipes do Nasf e as EqSF em um município do estado da Bahia, investigando se a inserção dos profissionais do Nasf na APS reforça a fragmentação do trabalho em saúde ou fomenta a integração de práticas.

Métodos

Trata-se de um estudo de caso2323 Yin, RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman; 2005. realizado em um município baiano considerado exitoso quanto à implementação da APS. Nessa pesquisa, foram adotados como referencial teórico a teoria do processo de trabalho em saúde2222 Mendes-Gonçalves RB. Medicina e história: raízes sociais do trabalho médico [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1979.,2424 Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde e tecnologia: contribuição para a reflexão teórica. Série de desenvolvimento de serviços de saúde. Brasília, DF: OPS; 1988.,2525 Mendes-Gonçalves RB. Práticas de Saúde: processos de Trabalho e Necessidades. São Paulo: Cadernos CEFOR; 1992. e sua utilização na reflexão sobre os modelos de atenção à saúde, particularmente, os modelos hegemônicos, o modelo de vigilância da saúde2626 Paim JS. Modelos de atenção à saúde no Brasil. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al. Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 547-573.,2727 Teixeira CF, Vilasbôas ALQ. Modelos de atenção à saúde no SUS: transformação, mudança ou conservação. In: Paim JS, Almeida-filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e Prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. p. 287-301. e o modelo da clínica ampliada2828 Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2003..

A seleção do caso envolveu os seguintes critérios: (1) ser um município considerado de experiência bem-sucedida de APS; (2) possuir 100% de cobertura da ESF; (3) ter uma equipe Nasf do tipo I atuando há, pelo menos, um ano; (4) respeito à proporcionalidade da relação entre a ESF/Nasf estabelecida em Portaria99 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 3.124, de 28 de dezembro de 2012. Redefine os parâmetros de vinculação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) Modalidades 1 e 2 às equipes de saúde da família e/ou Equipes de Atenção Básica para populações específicas, cria a Modalidade NASF 3, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 28 Dez 2012..

Foram identificados 125 municípios que possuíam equipes Nasf do tipo I no estado da Bahia. Destes, 45 apresentavam 100% de cobertura da saúde da família, sendo que apenas 15 municípios eram elegíveis quando se aplicou o critério de tempo de implantação do Nasf. Dentre esses, um foi selecionado por conveniência, por razões operacionais.

No município investigado, além da equipe do Nasf, foram selecionadas três EqSF para coleta de dados respeitando os seguintes critérios: (1) tempo mínimo de um ano de acompanhamento dessas equipes pelo Nasf; (2) possuir equipe mínima completa; e (3) ser uma parceria considerada exitosa pelos profissionais do Nasf.

Foram utilizadas como fontes de evidência: (1) documento normativo da Comissão Intergestores Bipartite-BA (CIB) referentes ao município; (2) documentos da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e da equipe Nasf; (3) entrevistas semiestruturadas com gestoras da APS (coordenadora e ex-coordenadora da atenção primária e coordenadora do Nasf), profissionais do Nasf, das EqSF e com uma profissional do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) responsável por um projeto de promoção da saúde que estava sendo desenvolvido no município em parceria com o Nasf; e (4) informações registradas no diário de campo do pesquisador.

O trabalho de campo ocorreu em dezembro de 2014. Vale ressaltar que os instrumentos elaborados foram validados previamente com teste piloto realizado com profissionais da APS em um distrito sanitário de Salvador (BA), no mês de setembro de 2014.

Para análise das práticas de saúde da equipe Nasf, foi utilizada uma matriz que articulava os elementos essenciais do processo de trabalho em saúde (objetos, atividades, instrumentos e relações técnicas e sociais) com as principais características dos modelos de atenção à saúde hegemônicos, modelo de vigilância da saúde e modelo da clínica ampliada (quadro 1).

Quadro 1
Modelos de atenção segundo os elementos constitutivos do processo de trabalho em saúde.

A pesquisa buscou assegurar os preceitos éticos em conformidade com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde para pesquisa com seres humanos. Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e o projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do ISC/UFBA sob o parecer nº 962.085/2014.

Resultados

O caso selecionado foi um município baiano de pequeno porte com população de cerca de 22 mil habitantes, localizado na região sudoeste na Chapada Diamantina, apresentando como características na ocasião do trabalho de campo: baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e taxa de urbanização em torno de 50%2929 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE Cidades. Rio de Janeiro: IBGE; 2018 [acesso em 2018 maio 20]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/paramirim/panorama.
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,3030 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Ranking IDHM municípios. Brasília, DF: PNUD; 2018 [acesso em 2018 maio 20]. Disponível em: http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/idh0/rankings/idhm-municipios-2010.html.
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Na época em que a pesquisa foi realizada, o município contava com 9 EqSF, 9 equipes de saúde bucal e 52 Agentes Comunitários de Saúde (ACS) distribuídos nas 8 Unidades de Saúde da Família (USF), 6 na zona rural e 2 na área urbana, incluindo 11 postos satélites distribuídos nas comunidades mais periféricas da zona rural88 Brasil. Ministério da Saúde. Histórico de cobertura da saúde da família. Departamento de atenção básica. Brasília, DF: MS; 2018 [acesso em 2018 maio 19]. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/historico_cobertura_sf.php.
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O Nasf foi implantado em março de 2011, com a inclusão de profissionais que foram se incorporando à equipe de forma gradativa, quais sejam: uma assistente social, uma fonoaudióloga, uma nutricionista, uma psicóloga, um educador físico e um fisioterapeuta. Tais profissionais ainda permaneciam no município à época em que se realizou este estudo, apesar da existência de vínculos precários de trabalho, por meio de cooperativa, sem garantias de direitos trabalhistas, como férias e 13º salário.

Com relação às USF investigadas, as três estavam situadas na zona rural, e todas estavam com equipe mínima completa, além de contar com equipe de saúde bucal. Destas, duas foram avaliadas pelo Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) e obtiveram desempenho satisfatório acima da média3131 Brasil. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB). Departamento de atenção básica. Brasília, DF: 2018 [acesso em 2018 maio 20]. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/cidadao_pmaq2.php.
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A maior parte dos sujeitos entrevistados era do sexo feminino, possuía como cidade natal o município onde se realizou este estudo e eram adultos jovens com idade entre 28 e 39 anos (apenas uma integrante da equipe Nasf possuía 46 anos).

A maioria dos sujeitos investigados realizou sua formação acadêmica fora do município e retornou à cidade para trabalhar mediante indicação política. Apenas dois foram graduados por universidades públicas [E4 e E10]; e os demais, em universidades e faculdades privadas. Quanto à formação especializada, apenas seis possuíam pós-graduação em saúde coletiva, sendo duas específicas em saúde da família.

Entre os profissionais entrevistados, apenas dois da EqSF haviam atuado na APS, incluindo uma médica com experiência na atenção primária em outros dois países. Com relação ao tempo atual de trabalho na APS, todos os integrantes do Nasf possuíam mais de três anos nessa equipe, assim como as enfermeiras das três USF, uma chegando a ter sete anos lotada na mesma unidade. Entretanto, as gestoras ocupavam o cargo há apenas três meses e não dominavam o processo de trabalho na atenção básica.

Nenhum dos profissionais da atenção básica foi admitido por concurso público. A forma de contratação deles era terceirizada, à exceção do vínculo de uma médica, da USF 1, por meio do Programa Mais Médicos Brasil.

O cotidiano do trabalho dos profissionais da APS

As evidências parecem indicar que o cotidiano da equipe do Nasf, em sua relação com as EqSF, desenrolava-se como desdobramento inercial de uma agenda estabelecida pelo nível federal, com quase nenhuma ou pouca interferência, seja da coordenação da APS, seja das equipes locais.

A ausência de protagonismo da gestão foi ressaltada pelos próprios entrevistados, ao relatarem que no momento de implantação do Nasf no município, em 2011, não houve qualquer processo de capacitação que os habilitasse a conhecer a realidade de saúde das populações, o modo de organização e funcionamento das EqSF, ou o seu próprio papel e atribuições na organização da atenção primária. Desconhecendo a natureza de sua própria atividade, os profissionais do Nasf se basearam nos documentos oficiais (portaria e 'Caderno da Atenção Básica nº 27') para definir o rol de atividades a serem desenvolvidas nas equipes.

Eu entrei no Nasf de paraquedas, não fui instruída, não me disseram o que era o Nasf, como funciona, quais são os profissionais. Isso eu fui aprendendo no decorrer do trabalho... na prática, na prática que a gente acha que é o correto. [E13].

[...] nunca tinha ouvido falar do Nasf, eu comecei a pesquisar um pouquinho quando eu fui convidada. Porque eu trabalhava na parte clínica e não trabalhava com a parte de saúde pública e não tinha muito conhecimento. [E5].

O trabalho dos profissionais do Nasf ocorria com base na elaboração de um cronograma semestral. Nesse, existia o rodízio semanal entre as equipes, a fim de realizar as atividades previamente agendadas e pactuadas com cada EqSF, tais como atendimentos em consultório, visitas domiciliares, palestras e grupos.

Foi unanimidade entre os trabalhadores das equipes investigadas a não utilização de informações epidemiológicas para o planejamento das atividades na elaboração de suas agendas. Nessas equipes, a análise da situação de saúde ocorreu há mais de três anos, durante a implantação do Nasf, não havendo nova atualização epidemiológica. Dessa forma, pôde-se constatar que a identificação dos problemas de saúde da população tem ocorrido, sobretudo, com base na experiência do atendimento aos usuários, ao invés da utilização de ferramentas gerenciais.

Nesse sentido, a programação das atividades das equipes considerava os agravos e problemas que acometem a população oriundos apenas da demanda do cotidiano nas unidades, a exemplo das doenças do aparelho circulatório e respiratório, problemas de saúde mental e gravidez na adolescência [E1, E2, E7 e E8].

A forma de encaminhamento dos usuários pelos profissionais das EqSF para a equipe Nasf não era baseada em critérios e ocorria de maneira informal, muitas vezes sem qualquer registro de informações para o Nasf sobre o usuário. Os trabalhadores que mais encaminhavam demandas para o Nasf eram os ACS, as enfermeiras e alguns médicos. O relato a seguir indica a fragilidade no fluxo dos encaminhamentos nas unidades:

[...] hoje é de boca, informal, tudo sem ser registrado... nós [Nasf] que realizamos muito encaminhamento pra fora pra rede, mas lá deles [EqSF] pra gente é algo informal, nada registrado. [E1].

Ao serem indagados sobre a atividade 'discussão de casos' entre as EqSF e a equipe do Nasf, houve divergências de respostas dos profissionais. Enquanto as enfermeiras das EqSF relataram que havia discussão após as consultas, para obter retorno e monitoramento das ações, os profissionais do Nasf pontuaram a inexistência de espaços de troca de informações com os responsáveis pelos casos e um distanciamento entre as equipes [E1 e E9].

Em relação às atividades de promoção à saúde, entre 2013 e 2014, profissionais da educação e da saúde, particularmente, do Nasf e das EqSF, participaram de uma intervenção de iniciativa de uma Universidade pública federal, com objetivo de estimular a adoção de hábitos de vida saudáveis relacionados com padrões alimentares e atividade física de escolares do ensino médio. Para tanto, foram desenvolvidas atividades que articulavam os princípios e diretrizes da ESF e do Programa Saúde na Escola, com ações voltadas para os escolares, seus familiares, professores, funcionários das escolas, merendeiras, profissionais da ESF e vendedores ambulantes de alimentos do entorno da escola.

Na implementação do projeto, houve pouco envolvimento do conjunto de profissionais e pouco protagonismo, as ações foram pontuais e restritas ao período de execução do projeto conduzido pela Universidade. Para a pesquisadora responsável pela intervenção no município, o trabalho das equipes da APS ocorreu de modo desarticulado, sendo que a nutricionista e o educador físico desenvolveram suas ações independentes das EqSF. Somado a isso, não houve participação dos demais integrantes do Nasf nessa intervenção [E14].

O que pensam os profissionais sobre o Nasf

Para a maioria dos entrevistados das EqSF, existe um descompasso entre as necessidades das EqSF e as atividades realizadas pela equipe Nasf. Isso porque, desde a implantação, criou-se uma expectativa de que o principal trabalho do Núcleo de Apoio seria dar suporte à demanda de atendimento das equipes:

Nós tivemos muita dificuldade pra poder dar início as atividades do Nasf, pela questão de atendimento. É atendimento? Não é? Confundia muito. E é apenas um suporte, trabalho em coletivo, trabalho em grupo. A gente teve muitas dificuldades porque quando foi divulgado que viria nutricionista, assistente social, fisioterapeuta. Pronto! Ai todo mundo já fez sua listinha de demanda. [E12].

Os profissionais das EqSF expressam tal expectativa afirmando que acreditavam que com o apoio do Nasf poderiam responder à demanda reprimida local, dada a limitação de acesso aos especialistas na rede de serviços municipal. Entretanto, para os profissionais do Núcleo de Apoio, esse descompasso existia devido às resistências impostas pelos integrantes das EqSF à sua lógica de trabalho com foco na prevenção.

[...] eu acho que eles [EqSF] não acreditam na proposta do Nasf de prevenção, eles querem atendimento querem resolver o problema. Por que se vier um paciente aqui e eu encaminhar pra eles é um horror. [E5].

Pode-se identificar que existe um conflito de percepções entre as equipes: se por um lado, os profissionais das EqSF demonstram insatisfação com o trabalho desenvolvido pelo Nasf, por outro, os profissionais dessa equipe não sentem seu trabalho valorizado pelos seus pares [E5 e E13].

Segundo os entrevistados, a falta de reconhecimento do trabalho é evidente, especialmente nas duas USF da zona urbana, com consequentes entraves na comunicação e falta de interação entre as equipes.

[...] aqui na USF da zona urbana parece que os agentes ainda não absorveram o trabalho do Nasf, e pra eles não tem importância nenhuma, não acreditam no nosso trabalho. [E5].

Em contrapartida, nas unidades da zona rural, o Nasf tem conseguido desenvolver 'um trabalho de melhor qualidade'. Ao mesmo tempo que faz essa ressalva, os profissionais do Nasf afirmam que a população da zona rural supervaloriza o médico, tem o hospital como serviço de primeira escolha e, muitas vezes, contraditoriamente, é resistente às ações de prevenção propostas.

[...] as pessoas olham muito pro médico... tem a visão de remédio, de automedicação, de não se importar com a prevenção. [E1].

O Nasf e as equipes: relações técnicas e sociais

Os resultados deste estudo apontam para a existência de um elo tênue entre as EqSF e o Nasf, especialmente quando se trata das unidades da zona urbana. Nessas, segundo alguns profissionais, o estabelecimento de parcerias não ocorre devido à resistência dos trabalhadores das EqSF ao modo como o Nasf realiza seu trabalho [E1, E3, E5 e E13].

Aqui houve muita resistência, quer dizer ainda há sobre esse trabalho preventivo, o pessoal quer muito atendimento clínico [...]. [E5].

No município, inexistem espaços compartilhados de decisão envolvendo a equipe Nasf e a maioria das EqSF; e, mesmo com as reuniões semestrais, faltava cooperação e inclusão da equipe Nasf no planejamento de atividades das EqSF. Ademais, apenas nos dois encontros anuais existia avaliação informal das atividades (sem a construção de critérios de acompanhamento, identificando pontos positivos e negativos), não havendo monitoramento das ações nem estabelecimento de metas [E1, E2 e E6].

Foi unânime entre os profissionais do Nasf a ressalva do papel assumido pelas enfermeiras na circulação da informação nas unidades. Todavia, algumas enfermeiras não assumiam tal papel, e o elo com o Nasf apresentava-se enfraquecido. Consequentemente, não havia envolvimento dos ACS na agenda de atividades, comprometendo a divulgação destas.

A dificuldade de comunicação foi destacada como um aspecto limitante na relação entre as equipes, e a maioria dos profissionais reconhecia que tais dificuldades eram responsáveis pela produção de conflitos nos processos de negociação das agendas. Por exemplo, a composição das atividades do cronograma semestral envolvia apenas parte dos integrantes das EqSF, comprometendo a construção e o sucesso das ações. Ademais, a organização das agendas apenas duas vezes ao ano era insuficiente, tornando as pactuações do planejamento secundárias às demandas do cotidiano:

Tem USF que chegamos e falamos 'marcamos uma ação aqui' e o pessoal diz 'hãn? Marcou foi? Deixa eu ver', aí pega o cronograma na gaveta e tá lá a ação. [E3].

Nas USF, observou-se que enquanto as enfermeiras são as principais responsáveis pelas atividades gerenciais e de supervisão dos ACS e técnicos de enfermagem, os médicos, seguidos dos odontólogos, aparecem como trabalhadores que detêm maior influência perante os usuários. Dessa forma, esses profissionais exercem significativo papel no encaminhamento desses utentes para as atividades do Nasf.

O médico tem um peso muito grande na USF, a palavra dele tem poder. Se ele chega para um paciente e fala para ele não ir pro Nasf, o paciente não vai. Se a dentista falar que não dá valor ao trabalho do Nasf, eles vão dar valor ao que a dentista fala. Porque eles vão dar valor a quem está aqui há mais tempo. [E3].

O vínculo entre a equipe Nasf e as EqSF era frágil, pois médicos e odontólogos não se envolviam com os trabalhadores do Nasf e eram alheios às suas atividades.

[...] quase a gente não tem contato com o médico. Porque é aquela coisa, o médico e o dentista entram na sala deles e vão fazer atendimento e pronto, sempre que marcamos alguma coisa eles não participam. [E3].

Soma-se a isso o fato de que, nas USF, existia alta rotatividade de médicos, limitando a continuidade do trabalho e o desenvolvimento das práticas sanitárias.

Apenas dois médicos já participaram da nossa reunião semestral que foi o da USF 2 e 3, só que na USF 3 houve muita mudança de médico a gente conversava com um e quando pensava que não, já era outro, acho que já teve uns 5 ou 6 médicos ali, é a USF que mais troca [...]. [E5].

No que diz respeito à gestão da APS, a coordenadora da atenção básica e do Nasf exerciam suas funções sem haver muita interação entre ambas. Da mesma forma, a coordenadora da atenção básica não possuía vínculo com os membros da equipe Nasf e mantinha-se alheia às suas práticas. Soma-se a isso o fato de nunca ter havido, desde a implantação do Nasf, acompanhamento formal das atividades pelos gestores. Tais evidências atestam as dificuldades da gestão em conceber a equipe Nasf como parte integrante da APS; fato ilustrado na fala da então coordenadora da APS:

A gente nunca teve reunião com o Nasf, porque ela é que coordena o Nasf, porque o Nasf é uma coisa e a atenção básica já é outra coisa. [E11].

Discussão

Os resultados deste estudo apontam para a existência de um processo de trabalho desarticulado entre as equipes Nasf e EqSF da APS. Soma-se a isso o fato de o Nasf enfrentar desafios de diversas ordens, que limitavam a realização das atividades tornando o processo de trabalho fragmentado.

No que diz respeito à concepção de prevenção das doenças e promoção à saúde, as equipes da APS investigadas apresentavam uma visão limitada; e, consequentemente, a execução das atividades foi restrita a uma perspectiva direcionada à mudança de comportamento dos indivíduos nos territórios onde viviam, principalmente, por meio de ações educativas. Esta visão denota um reducionismo da promoção à saúde e do amplo conjunto de elementos que constituem os determinantes sociais que interferem na qualidade de vida dos usuários3232 Pelegrini Filho A, Buss PM, Esperidião MA. Promoção da saúde e seus fundamentos: determinantes sociais de saúde, ação intersetorial e políticas públicas saudáveis. In: Paim JS, Almeida-filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e Prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. p. 305-326..

Se por um lado os profissionais do Nasf queixavam-se da falta de educação permanente, por outro, eles não aproveitaram o potencial da capacitação que tiveram sobre promoção à saúde vinculada a um projeto de intervenção em parceria com uma Universidade. É notório o número reduzido de atividades que as equipes da APS estudadas realizavam sobre os determinantes sociais da saúde, sendo que apenas duas EqSF empreenderam ações pontuais direcionadas às questões de vulnerabilidade social.

A baixa institucionalização das ações de promoção à saúde e prevenção de doenças no âmbito da ESF não é uma particularidade do município investigado. Em uma pesquisa que utilizou dados secundários do módulo II do PMAQ em todo o Brasil, foi caracterizada a insuficiência de práticas voltadas a idosos e escolares, e mesmo com a identificação de que 70% das EqSF relataram executar ações de promoção à saúde, houve pouca comprovação destas3333 Medina MG, Rosana A, Vilasbôas ALQ et al. Promoção da saúde e prevenção de doenças crônicas: o que fazem as equipes de Saúde da Família. Saúde debate. 2014; 38(esp):69-82..

Alguns autores consideram que, apesar dos esforços na busca pela reorientação dos modelos de atenção à saúde, os modelos hegemônicos continuam desempenhando grande influência nas práticas das equipes da APS, bem como na organização da rede de atenção11 Medina MG, Hartz ZMA. The role of the Family Health Program in the organization of primary care in municipal health systems. Cad Saúde Pública. 2009; 25(5):153-167.,1919 Arce VAR, Teixeira CF. Práticas de saúde e modelo de atenção no âmbito do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Salvador (BA). Saúde debate. 2017; 41(esp):228-240.,2727 Teixeira CF, Vilasbôas ALQ. Modelos de atenção à saúde no SUS: transformação, mudança ou conservação. In: Paim JS, Almeida-filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e Prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. p. 287-301.,3434 Silva LA, Cosotti CA, Chaves SCL. A produção científica brasileira sobre a Estratégia Saúde da Família e a mudança no modelo de atenção. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(1):221-232..

Assim como nos achados das referidas pesquisas, pôde-se constatar que as práticas desenvolvidas no município apresentam fortes características dos modelos médico-assistencial e sanitarista. Apesar de a ESF ter como base a perspectiva da vigilância da saúde e de a proposta política do Nasf ter na clínica ampliada seu referencial, os resultados deste estudo revelam a constante tensão entre estas propostas alternativas, apontando que as equipes da APS têm enfrentado dificuldades na organização das suas práticas e acabam por reproduzir a manutenção das ações hegemônicas em seu cotidiano.

No estudo em questão, a relação entre o Nasf e as EqSF aproxima-se da chamada 'equipe agrupamento', isto é, uma relação caracterizada pelo mero agrupamento dos agentes, com fragmentação do trabalho e justaposição de ações3535 Peduzzi M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Rev Saúde Pública. 2001; 35(1):103-109.. Isso porque a comunicação aparece limitada à técnica e ao caráter pessoal, com tímida construção de um projeto assistencial comum. Existem relações assimétricas de poder e subordinação dos profissionais aos médicos, além de relativa independência técnica individual na execução das atividades de cada agente.

Ademais, pode-se elencar, a partir dos achados da pesquisa, que as diferenças entre as equipes da APS contribuem para o desenvolvimento de práticas desarticuladas, o que, consequentemente, interfere na efetividade das atividades do Nasf. Nesse particular, pode-se destacar graus de exigência distintos pela gestão impostos às equipes, com maior racionalidade burocrática e menor autonomia profissional às EqSF em relação aos Nasf, além da manutenção de relações de poder que privilegiam o médico na implementação de práticas no âmbito das USF.

No município estudado, existiam disparidades salariais e diferenças no cumprimento de carga horária entre profissionais das EqSF e do Nasf, além de exigências distintas de produtividade entre as equipes. Isso acentua a disputa entre os profissionais dessas equipes, como tem sido assinalado em outros estudos3636 Shimizu HE, Alvão DCJR. O processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família e suas repercussões no processo saúde-doença. Ciênc Saúde Colet. 2012; 17(9):2405-2414.,3737 Kell MCG, Shimizu HE. Existe trabalho em equipe no Programa Saúde da Família? Ciênc Saúde Colet. 2010; 15(supl.1):1533-1541..

A tensão que se estabelece entre os trabalhadores da APS é influenciada pela forma como as secretarias de saúde conduzem os processos de trabalho. A vontade política e a gestão do trabalho cumprem um papel fundamental na organização das práticas. A adoção e a garantia de educação permanente, planejamento, monitoramento e avaliação, condições de trabalho, política de inserção, remuneração e valorização do trabalhador ampliam as chances de consolidação da ESF e reorientação dos modelos de atenção3838 Magnago C, Pierantoni CR. Dificuldades e estratégias de enfrentamento referentes à gestão do trabalho na Estratégia Saúde da Família, na perspectiva dos gestores locais: a experiência dos municípios do Rio de Janeiro (RJ) e Duque de Caxias (RJ). Saúde debate. 2015; 39(104):9-17.,3939 Mendonca MHM, Martins MIC, Giovanella L, et al. Desafios para gestão do trabalho a partir de experiências exitosas de expansão da Estratégia de Saúde da Família. Ciênc Saúde Colet. 2010; 15(5):2355-2365..

Em um estudo sobre a colaboração interprofissional na ESF, envolvendo EqSF e equipes do Nasf no município de São Paulo, foi observada a existência de tensões entre a lógica profissional tradicional e o apoio matricial. Elementos como a divisão de responsabilidades, encaminhamentos e a insuficiência de dispositivos organizacionais para apoiar o trabalho compartilhado na ESF foram pontuados como barreiras na concretização de práticas articuladas4040 Matuda CG, Pinto NRS, Martins CL, et al. Colaboração interprofissional na Estratégia Saúde da Família: implicações para a produção do cuidado e a gestão do trabalho. Ciênc Saúde Colet. 2015; 20(8):2511-2521..

Em contraponto às dificuldades apresentadas, alguns estudos preconizam que, para atingir a horizontalização das relações, é preciso que haja práticas interdisciplinares constituídas pelo debate democrático promovido pelas equipes1717 Araújo EMD, Galimbertti PA. A colaboração interprofissional na estratégia saúde da família. Psicol Soc. 2013; 25(2):461-468.,4141 Ellery AEL, Pontes RJS, Loiola FA. Campo comum de atuação dos profissionais da Estratégia Saúde da Família no Brasil: um cenário em construção. Physis. 2013; 23(2):415-437.. Todavia, na pesquisa empreendida, os espaços de discussão coletiva acabavam respondendo, principalmente, a demandas administrativas.

A comunicação no trabalho em equipe tem sido apontada como um dos elementos que merecem maior investimento pelos profissionais, pois o enfrentamento dialogado dos conflitos pode ser capaz de promover a negociação, pactuação, compartilhamento de responsabilidades e decisões entre os trabalhadores da saúde4242 Peduzzi M. Mudanças tecnológicas e seu impacto no processo de trabalho em saúde. Trab Educ Saúde. 2003; 1(1):75-91.. Na pesquisa, observou-se, como em outros estudos, que a fragilidade na comunicação representa um nó crítico na relação entre as equipes, e os próprios trabalhadores reconhecem que a existência de mecanismos de comunicação é uma potente ferramenta para o enfrentamento dos conflitos interpessoais3636 Shimizu HE, Alvão DCJR. O processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família e suas repercussões no processo saúde-doença. Ciênc Saúde Colet. 2012; 17(9):2405-2414.,4141 Ellery AEL, Pontes RJS, Loiola FA. Campo comum de atuação dos profissionais da Estratégia Saúde da Família no Brasil: um cenário em construção. Physis. 2013; 23(2):415-437..

Com a atualização da PNAB77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017., o termo Nasf foi modificado para Nasf-AB, mas esta mudança parece ir além de uma questão de nomenclatura. As recentes publicações sobre a PNAB evidenciam retrocessos no âmbito da APS, tais como: relativização da cobertura universal, não obrigatoriedade dos ACS na composição das equipes, fragmentação do processo de trabalho, com a possibilidade de contratação de médicos com uma menor carga horária, e possibilidade de padrões distintos de atenção básica. Tais mudanças estão em estreita relação com o projeto neoliberal privatista em curso no País, o qual impacta diretamente no trabalho das equipes da APS, colocando em questão direitos, continuidade do cuidado e a qualidade dos serviços prestados à população4343 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate. 2018; 42(116):11-24.,4444 Cecilio LCO, Reis AAC. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cad Saúde Pública. 2018; 34(8):1-14..

Considerações finais

Os resultados deste estudo demonstraram desarticulação entre os processos de trabalho do Nasf e das EqSF com fragmentação do trabalho. As relações técnicas e sociais são conflituosas e marcadas pela ausência de diálogo e pactuação entre os trabalhadores, além de desafios de diversas ordens que limitam a realização das atividades.

Nesse particular, as EqSF possuem papel fundamental na aproximação do Nasf com os usuários, na identificação e manejo dos problemas de saúde do território, assim como no compartilhamento de práticas entre as equipes. Da mesma forma, os profissionais do Nasf e os gestores possuem papel crucial nesse processo, não podendo delegar apenas às EqSF a responsabilidade pela integração.

Por meio dos achados da pesquisa, pôde-se constatar que o trabalho em equipe está situado em um contexto de racionalidade médica, que prioriza a atenção individual centrada na clínica, com ênfase nos aspectos biológicos e na medicalização das doenças, secundarizando a promoção da saúde. Ademais, identificou-se que, em suas práticas, a equipe estudada aproximou-se mais das características dos modelos hegemônicos do que dos modelos da clínica ampliada e vigilância da saúde.

Apesar de os dados terem sido coletados em 2014, muito provavelmente as equipes investigadas revelam um caso típico do que ocorre em muitos municípios brasileiros, pois, na medida em que as EqSF tiveram desempenho acima do satisfatório no PMAQ, a análise do processo de trabalho das equipes da APS revelou fragilidades e desafios postos ao conjunto dos seus atores.

Pode-se concluir que a proposta do Nasf necessita de uma requalificação de modo a tornar o processo de trabalho mais integrado e pautado em uma lógica que fortaleça a reorientação de práticas. Algumas iniciativas, como a redução do número de EqSF apoiadas, ampliação da educação permanente para os profissionais da APS, melhor organização e gestão do trabalho, entre outras, podem contribuir para essa direção.

  • Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Ministério da Saúde

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2018

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2018
  • Aceito
    18 Set 2018
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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