Ações judiciais e incorporação de medicamentos ao SUS: a atuação da Conitec

Kleize Araújo de Oliveira Souza Luis Eugênio Portela Fernandes de Souza Erick Soares Lisboa Sobre os autores

RESUMO

Este estudo teve como objetivo analisar a influência das ações judiciais sobre o processo de avaliação de solicitações de incorporação de medicamentos biológicos ao Sistema Único de Saúde (SUS) pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), no período de 2010 a 2015. A pesquisa investigou a atuação da Conitec, tendo como foco a recomendação de incorporação ou não de medicamentos biológicos ao SUS. Foram utilizadas como estratégias de produção de dados: análise documental, entrevistas com membros da Comissão e observação não participante das reuniões do plenário. A análise dos dados revelou que, apesar de ser, muitas vezes, objeto de discussão no plenário, a existência de ações judiciais não constitui um fator decisivo para a tomada de decisão da Comissão. Não foi encontrado qualquer indício de relação direta entre as ações judiciais em saúde e a incorporação de medicamentos biológicos ao SUS, visto que os membros seguem, rigorosamente, o fluxo de incorporação de tecnologias regulamentado pela Lei nº 12.401/2011 e pelo Decreto nº 7.646/2011. No entanto, revelou-se a existência de uma influência indireta do fenômeno da judicialização da saúde sobre o processo de incorporação de tecnologias no SUS, quando se analisou a motivação para a formulação da lei e das normas que regulamentam o funcionamento da Conitec.

PALAVRAS-CHAVE
Medicamentos biológicos; Judicialização da saúde; Sistema Único de Saúde

Introdução

As tecnologias utilizadas para prover a assistência à saúde vêm passando por rápidas mudanças nos últimos anos, e, se por um lado, trazem inegáveis benefícios, relacionados ao aumento da longevidade, à prevenção, à cura de doenças, à proteção, à reabilitação da saúde, por outro, trazem desafios relativos aos riscos e aos custos dos seus usos11 Gadelha CAG, Maldonado J, Costa LS, et al. Complexo Produtivo da Saúde: inovação, desenvolvimento e Estado. In: Paim JS, Almeida-Filho N. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. p. 173-184..

Do ponto de vista da indústria, são várias as áreas de produção envolvidas para atender às necessidades de saúde. Gadelha e colaboradores22 Gadelha CAG, Barbosa PR, Maldonado J, et al. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde: conceitos e características gerais. VPPIS/Fiocruz [internet]. 2010 ago [acesso em 2018 set 26]; 1(1):1-17. Disponível em: http://www.fiocruz.br/vppis/imagens/ceis/Boletim%20Complexo%20Saude%20Vol%201%202010.pdf.
http://www.fiocruz.br/vppis/imagens/ceis...
classificam o Complexo Econômico Industrial da Saúde (Ceis) em três segmentos: o de base química e biotecnológica; o de base mecânica, eletrônica e de materiais; e o segmento que compreende os serviços de saúde.

Os altos investimentos da indústria bioquímica e biotecnológica demonstram que as biotecnologias se configuram como grande aposta de longo prazo, levando diversos países a implementarem políticas industriais ativas na busca de inovações nessa área33 Reis C, Pieroni JP, Souza JOB. Biotecnologia para saúde no Brasil. BNDES. 2010; 32:193-230.. No século XX, houve um desenvolvimento extraordinário da ciência e da tecnologia, e a convergência entre ambas produziu resultados em vários setores produtivos, incluindo o da saúde, com processos de desenvolvimento de medicamentos, vacinas, reagentes para diagnósticos e próteses, representando um importante avanço para os tratamentos de diversas doenças44 Malajovich MA. Biotecnologia 2011. Rio de Janeiro: Edições da Biblioteca Max Feffer do Instituto de Tecnologia ORT; 2012.,55 Pimenta CG. O ambiente institucional da biotecnologia voltada para a saúde humana no Brasil [dissertação]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2008. 133 p..

Os medicamentos biológicos são definidos como moléculas complexas de alto peso molecular obtidas a partir de fluidos biológicos, tecidos de origem animal ou procedimentos biotecnológicos, por meio de manipulação ou inserção de outro material genético ou alteração dos genes que ocorrem devido a: irradiação, produtos químicos ou seleção forçada66 Torres-Freire C, Golcher D, Callil V. Biotecnologia em saúde humana no Brasil: produção científica e pesquisa e desenvolvimento. Novos Estudos. 2014 mar; 98:69-93.. Atualmente, o registro de medicamentos biológicos, abrange sete categorias de produtos, quais sejam: alérgenos, anticorpos monoclonais, biomedicamentos, hemoderivados, probióticos, soros hiperimunes e vacinas77 Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução - RDC nº 55, de 16 de dezembro de 2010. Dispõe sobre o registro de produtos biológicos novos e produtos biológicos e dá outras providencias. Diário Oficial da União. 17 Dez 2010..

No Brasil, a perspectiva de aumento da demanda por serviços de saúde - aliada ao desafio de ampliar o acesso da população a tecnologias - sugere a existência de um grande potencial de ampliação do uso da biotecnologia para saúde22 Gadelha CAG, Barbosa PR, Maldonado J, et al. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde: conceitos e características gerais. VPPIS/Fiocruz [internet]. 2010 ago [acesso em 2018 set 26]; 1(1):1-17. Disponível em: http://www.fiocruz.br/vppis/imagens/ceis/Boletim%20Complexo%20Saude%20Vol%201%202010.pdf.
http://www.fiocruz.br/vppis/imagens/ceis...
. Para tanto, é importante o estabelecimento de um ambiente regulatório estável. A regulação do desenvolvimento e da incorporação de novas tecnologias em saúde e, em especial, de medicamentos biológicos é essencial para assegurar que a sua produção atenda às necessidades de saúde a custos suportáveis pela sociedade.

O processo decisório relativo à incorporação de tecnologias nos sistemas de saúde é permeado pela influência de diversos grupos de interesses, como: médicos, instituições provedoras de serviços de saúde, instituições financiadoras, gestores de políticas e serviços, produtores das tecnologias, associações de pacientes, entre outros que podem exercer papéis decisivos na tomada de decisão88 Scheffer MC. Aids, tecnologia e acesso sustentável a medicamentos: a incorporação dos anti-retrovirais no Sistema Único de Saúde [tese]. [São Paulo]: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2008. 255 p..

Um estudo realizado na Europa99 Schwarzer R, Siebert U. Methods, procedures, and contextual characteristics of health technology assessment and health policy decision making: comparison of health technology assessment agencies in Germany, United Kingdom, France, and Sweden. Int J Technol Assess Health Care. 2009; 25(3):305-314., com foco na Inglaterra, França, Alemanha e Suécia, apontou que a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) assumiu um papel crescente nos sistemas de saúde nos últimos anos, com o estabelecimento de agências ou programas para avaliação e incorporação de tecnologias de saúde. Embora os países estudados compartilhem alguns objetivos, existem diferenças na forma como as agências e os programas de ATS são organizados, operam e influenciam a tomada de decisões. Apesar dessas diferenças, todos os sistemas enfrentam oportunidades e desafios relacionados ao envolvimento e à aceitação das partes interessadas1010 Caetano R, Silva RM, Pedro EM, et al. Incorporação de novos medicamentos pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS, 2012 a junho de 2016. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2017 ago [acesso em 2018 out 01]; 22(8):2513-2525. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017002802513&script=sci_abstract&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141...
.

Com o propósito de regular a incorporação de tecnologias no Sistema Único de Saúde (SUS), em 2011, através da Lei nº 12.4011111 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde SUS. [internet]. 2011 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12401.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, foi instituída a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). O Decreto nº 7.6461212 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. [internet]. 2011 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7646.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, do mesmo ano, regulamenta a lei, dispondo sobre o caráter permanente da comissão que tem por objetivo assessorar o Ministério da Saúde (MS) nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração pelo SUS de tecnologias de saúde, bem como na constituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas1111 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde SUS. [internet]. 2011 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12401.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
,1212 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. [internet]. 2011 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7646.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
.

O aumento dos gastos públicos com medicamentos deve-se, em parte, à incorporação formal de novas tecnologias ao SUS. E esta, por sua vez, pode estar associada ao fenômeno da judicialização da saúde. Nos últimos sete anos, o MS desembolsou R$ 4,5 bilhões para a compra de medicamentos, equipamentos, suplementos alimentares e cobertura de cirurgias e internações a partir de determinações judiciais. Grande parte desse valor foi utilizada para adquirir medicamentos biológicos. Em 2016, o MS gastou R$ 654,9 milhões na compra de apenas 10 medicamentos, para atender a 1.213 pessoas1313 Pierro B. Demandas crescentes: parcerias entre instituições de pesquisa e a esfera pública procuram entender a judicialização da saúde e propor estratégias para lidar com o fenômeno. Rev. Pesquisa Fapesp. 2017; 18(252):18-25..

De acordo com dados da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do MS, o crescimento real do gasto com as ações judiciais de medicamentos foi de 547% entre 2010 e 2016, passando de R$ 199,6 milhões para R$ 1,3 bilhão em valores de 2016. No acumulado, o gasto foi de R$ 4,8 bilhões1414 Brasil, Ministério da Saúde. Relatório de gestão 2016. Brasília, DF: 2017.. Ressalta-se que, em 2015, metade das vinte tecnologias mais caras demandadas ao MS por meio do Judiciário não tinha registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), destacando-se as solicitações dos medicamentos biológicos1515 Vieira FS. Texto para discussão: Evolução do gasto com medicamentos do Sistema Único de Saúde no período de 2010 a 2016. Rio de Janeiro: Ipea; 2018..

Além das ações judiciais, envolvendo, especialmente, produtos novos e mais caros, a incorporação tecnológica pode ser fator significativo para o aumento dos gastos públicos com medicamentos. Um estudo apontou que, no período de janeiro de 2012 a junho de 2016, das 485 submissões à Conitec, 267 (55%) referiam-se a solicitações de incorporação de produtos farmacêuticos, tendo sido incorporados 93 medicamentos (54%) das 171 solicitações1515 Vieira FS. Texto para discussão: Evolução do gasto com medicamentos do Sistema Único de Saúde no período de 2010 a 2016. Rio de Janeiro: Ipea; 2018..

Uma pesquisa apontou que, no que se refere aos maiores gastos públicos com medicamentos, em 2016, foram identificados: um medicamento biológico que foi adquirido devido a ações judiciais (eculizumabe - R$ 376,6 milhões), dois produtos incorporados ao SUS (sofosbuvir1616 Chieffi AL, Barata RB. Ações judiciais: estratégica da indústria farmacêutica para introdução de novos medicamentos. Rev. Saúde Pública. 2010; 44(3):421-429. - R$ 510,5 milhões; e vacina contra papiloma vírus humano1717 Lopes LC, Barberato-Filho S, Costa AC, et al. Uso racional de medicamentos antineoplásicos e ações judiciais no Estado de São Paulo. Rev. Saúde Pública. 2010; 44(4):620-628. - R$ 288,4 milhões), três medicamentos, também biológicos, utilizados principalmente no tratamento da artrite reumatoide (adalimumabe - R$ 621,9 milhões; etanercepte - R$ 322 milhões; e infliximabe - R$ 298,5 milhões), e um hemoderivado (fator VIII18 - R$ 471,5 milhões)1010 Caetano R, Silva RM, Pedro EM, et al. Incorporação de novos medicamentos pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS, 2012 a junho de 2016. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2017 ago [acesso em 2018 out 01]; 22(8):2513-2525. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017002802513&script=sci_abstract&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141...
,1515 Vieira FS. Texto para discussão: Evolução do gasto com medicamentos do Sistema Único de Saúde no período de 2010 a 2016. Rio de Janeiro: Ipea; 2018..

Diversos estudos têm sido realizados para avaliar os efeitos da judicialização sobre as políticas de saúde1616 Chieffi AL, Barata RB. Ações judiciais: estratégica da indústria farmacêutica para introdução de novos medicamentos. Rev. Saúde Pública. 2010; 44(3):421-429.

17 Lopes LC, Barberato-Filho S, Costa AC, et al. Uso racional de medicamentos antineoplásicos e ações judiciais no Estado de São Paulo. Rev. Saúde Pública. 2010; 44(4):620-628.

18 Diniz D, Medeiros M, Schwartz IDD. Consequências da judicialização das políticas de saúde: custos de medicamentos para as mucopolissacaridoses. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(3):479-489.

19 Vieira FS. Ações judiciais e direito à saúde: reflexão sobre a observância aos princípios do SUS. Rev. Saúde Pública. 2008; 42(2):365-369.

20 Messeder AM, Osorio-de-Castro CGS, Luiza VL. Mandados judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2005; 21(5):525-34.

21 Torres IDC. Judicialização do acesso a medicamentos no Brasil: uma revisão sistemática [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2013. 86 p.

22 Lisboa ES, Souza LEPF. Por que as pessoas recorrem ao Judiciário para obter o acesso aos medicamentos? O caso das insulinas análogas na Bahia. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(6):1857-1864.
-2323 Guimarães R. Incorporação tecnológica no SUS: o problema e seus desafios. Ciênc. Saúde Colet. 2014; 19(12):4899-4908.. As pesquisas apontam uma tendência de deslocamento do debate sobre a incorporação de tecnologias para o mundo da litigância jurídica. De fato, em muitos países, as decisões em torno da oportunidade de incorporar uma tecnologia acontecem, cada vez mais, no campo discursivo e doutrinário do Direito2424 Machado MAA, Acurcio FA, Brandão CMR, et al. Judicialização do acesso a medicamentos no Estado de Minas Gerais, Brasil. Rev. Saúde Pública. 2011; 45(3):590-598..

Ademais, o elevado número de ações judiciais em saúde tem provocado a incorporação de algumas tecnologias, muitas vezes de alto custo, por parte especialmente de secretarias estaduais e municipais de saúde em diversas regiões do País. Saliente-se que não se trata, nesses casos, da incorporação no SUS como um todo, baseada em recomendação técnica da Conitec e em decisão do MS2121 Torres IDC. Judicialização do acesso a medicamentos no Brasil: uma revisão sistemática [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2013. 86 p.,2323 Guimarães R. Incorporação tecnológica no SUS: o problema e seus desafios. Ciênc. Saúde Colet. 2014; 19(12):4899-4908.,2424 Machado MAA, Acurcio FA, Brandão CMR, et al. Judicialização do acesso a medicamentos no Estado de Minas Gerais, Brasil. Rev. Saúde Pública. 2011; 45(3):590-598..

Este artigo tem como objetivo analisar a influência das ações judiciais sobre a recomendação de incorporação de medicamentos biológicos ao SUS pela Conitec.

Metodologia

Foi analisada a influência das decisões judiciais sobre o processo de decisão relativo à incorporação de medicamentos biológicos ao SUS no período de 2011 a 2015, utilizando o método do estudo de caso, tendo como caso a Conitec e como foco de análise a recomendação de incorporação ou não de medicamentos biológicos ao SUS.

Para a produção dos dados, foram utilizados como fontes de evidências documentos oficiais, entrevistas semiestruturadas com os membros da Conitec e observação não participante das reuniões ordinárias da Comissão. Os documentos selecionados para análise foram: a Lei nº 12.401/2011, o Decreto nº 7.508/2011, o Decreto nº 7.646/2011, o Decreto nº 8.065/2013, a Portaria GM/MS nº 152/2006, documentos oficiais produzidos pela Conitec - 44 atas de reuniões da comissão, 54 relatórios técnicos de recomendação de incorporação de medicamentos biológicos sobre a tecnologia avaliada, apresentando dados sobre a tecnologia, a análise das evidências científicas, a avaliação econômica, o impacto orçamentário da incorporação, a decisão da Conitec, a consulta pública e a deliberação final. Foi, ainda, consultado o consolidado de normas referentes ao Registro de Produtos Biológicos, que apresenta as resoluções relativas a produtos biológicos publicadas pela Anvisa.

Foram realizadas 13 entrevistas com os 13 membros da Conitec, após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Saliente-se que o plenário da Comissão é o fórum responsável pela emissão de recomendação sobre incorporação, exclusão ou alteração das tecnologias no âmbito do SUS, sobre constituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas e da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename)2525 Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais: RENAME 2017. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017.. As questões eram referentes às rotinas, atividades e organização do trabalho e sobre a relação entre a judicialização de biomedicamentos e as decisões da Conitec.

A observação não participante das reuniões ordinárias da Conitec se realizou no período de outubro de 2015 a abril de 2016, especificamente, nas 40ª, 42ª e 44ª reuniões, somando um total de 39 horas de observação. Para o processamento do material empírico proveniente dos documentos das entrevistas e da observação, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo temática2626 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011.,2727 Minayo MCS, Deslandes SF. Caminhos do pensamento - epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010..

Com relação aos aspectos éticos do estudo, o projeto foi previamente submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia, sob número de protocolo 022/2015, em cumprimento à Resolução nº 466/20122828 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília, DF; 2012..

Resultados

No período analisado (2012-2015), foram avaliados pela Conitec 168 medicamentos, sendo que, desses, 56 (33%) foram medicamentos biológicos e 112 (67%) foram outros tipos de medicamentos. Dos 56 biológicos, 22 (39%) obtiveram recomendação de incorporação, 26 (47%) obtiveram recomendação de não incorporação e 8 (14%) obtiveram recomendação de exclusão das listas oficiais de distribuição do SUS.

Os membros da Conitec entrevistados foram questionados sobre as suas percepções acerca da judicialização da saúde e da possibilidade de as demandas judiciais influenciarem a decisão final da Conitec em recomendar a incorporação ou a não incorporação de medicamentos ao SUS, inclusive de biológicos.

Verificou-se que há o reconhecimento da judicialização da saúde como uma estratégia legítima para a busca da efetivação de direitos sociais que devem ser assegurados pelo Estado, entre eles, o direito à saúde:

A judicialização tem uma razão normativa. Nós temos um arcabouço legal que dá um grau de liberdade muito grande, e as pessoas têm a liberdade de acessar o judiciário para poder buscar esses direitos. (Ent. 3).

As demandas judiciais, do ponto de vista constitucional, são legais e refletem uma necessidade social. (Ent. 6).

Para o entrevistado 8, a judicialização da saúde tem duas faces. A primeira é a da ‘boa judicialização’, representada pelas demandas judiciais de bens, ações ou serviços de saúde, cuja oferta já compete formalmente ao SUS, mas que, por algum problema, não estão sendo ofertados. Segundo ele,

este tipo de judicialização é bem-vindo, pois exige dos órgãos públicos que sejam tomadas medidas para que essas tecnologias ou serviços de saúde sejam ofertadas para a população, corrigindo falhas de acesso ao SUS.

A segunda face é representada pela ‘judicialização danosa’, quando as ações judiciais solicitam tecnologias e/ou serviços que não estão previstos no sistema e que, por vezes, não possuem registro na Anvisa, sendo danosa por gerar gastos não previstos para a União, para os estados e para os municípios.

Para o entrevistado 3, a judicialização é, muitas vezes, utilizada para fomentar um acesso desregulado ou, pelo menos, um acesso facilitado a novos medicamentos, uma estratégia adotada pela indústria farmacêutica para promover a venda de seus produtos. Para o entrevistado 1, é comum que empresas que produzem medicamentos que são muito judicializados não demandem avaliação à Conitec, pois sabem que as evidências são ruins, que os benefícios são pequenos e que o preço é muito alto. Assim, é preferível para a empresa não ter uma avaliação da Conitec do que ter uma recomendação contrária, porque o juiz pode eventualmente consultar a Conitec e constatar no relatório os motivos da não incorporação da tecnologia ao SUS.

Indo ao encontro dessa opinião, o entrevistado 8 relata que

Representantes da indústria afirmam que não irão submeter determinado medicamento à avaliação da Conitec, porque isso leva tempo, vai ter que preparar uma série de estudos e pode ter uma recomendação negativa. E, de certa forma, eles dizem que já estão incorporando pela via judicial.

Ademais, o entrevistado 3 diz:

Às vezes, não é interessante submeter à apreciação da Conitec um novo tratamento, porque a indústria entende que não oferece grandes vantagens em relação ao que já existe e, portanto, vai receber uma deliberação negativa. Muitas indústrias optam por não tentar o acesso ao SUS via Conitec, mas utilizam a judicialização.

Esses depoimentos apontam para um possível efeito das ações judiciais em saúde no Brasil: a criação de uma nova via de incorporação de tecnologias ao sistema público de saúde. Com efeito, a judicialização da saúde tem viabilizado o acesso dos demandantes a bens e a serviços de saúde, ofertados ou não pelo sistema.

Num cenário onde existem diversos elementos atuando como mecanismos de pressão sobre a Conitec, foi unânime, entre todos os entrevistados, a resposta de que as decisões judiciais em saúde não influenciam o processo de decisão da comissão. Como relatam, por exemplo, os entrevistados 2, 4 e 10, respectivamente:

O fato de uma tecnologia ser objeto frequente de judicialização não deve ser motivo para sua incorporação.

O que eu percebo é que há claramente uma conduta de não aceitar que o simples fato de ocorrer judicialização interfira na decisão de incorporar. A Conitec se baseia em dados científicos, e a judicialização é algo que nem sempre ocorre com base em evidências.

A Conitec não se pauta pela judicialização, sem dúvida alguma!

Alguns entrevistados admitem que, algumas vezes, o tema da judicialização da saúde é discutido no plenário, especialmente na avaliação de determinadas tecnologias que possuem um número elevado de demandas judiciais. Outros acham que a Conitec poderia se antecipar e avaliar tecnologias que já são objeto de ações judicias, até para que se produzam evidências a respeito delas, como coloca o entrevistado 5:

Quando há alguma tecnologia que está sendo judicializada, é sinal de que ela deve ser analisada. O papel da Conitec é exatamente analisar a propriedade do uso, a extensividade deste uso para que você possa ter um uso racional.

O caso das insulinas análogas, por exemplo, visto nas atas das reuniões, indica que não há influência da judicialização da saúde no trabalho da Conitec. Apesar das fortes discussões a respeito da judicialização dessas insulinas e da constatação dos custos da sua oferta aos estados e municípios, foi constatado que “o uso da insulina análoga é muito mais uma questão de comodidade do uso do que necessidade do paciente”2929 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Ata da 17ª Reunião da Conitec: Brasília, DF; 2013.(8).

Um dos membros da Conitec, diante da falta de evidência nos estudos apresentados, sugeriu que os relatórios evidenciando a não superioridade das análogas fossem encaminhados ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para esclarecimento dos juízes3030 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Ata da 18ª Reunião da Conitec: Brasília, DF; 2013.. Na 20ª reunião, foi encaminhada a proposta à consulta pública com parecer desfavorável à incorporação das insulinas análogas para Diabetes Mellitus no SUS. E, na 24ª reunião, os membros do plenário deliberaram, por unanimidade, por não recomendar a sua incorporação3131 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Ata da 20ª Reunião da Conitec: Brasília, DF; 2013.,3232 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Ata da 24ª Reunião da Conitec: Brasília, DF; 2014..

Outra forte indicação de que não há influência das ações judiciais, referente à incorporação de medicamentos biológicos, foi a apreciação da proposta de incorporação do medicamento Infliximabe, como pode ser observado no trecho da ata de reunião destacado a seguir:

durante a apreciação da proposta de incorporação do Infliximabe para retocolite ulcerativa grave refratária a corticoides, foram apresentadas as contribuições da consulta pública que tinha parecer da Conitec desfavorável à incorporação. Uma das contribuições recebidas, vinda de uma secretaria municipal de saúde, relatou a importância do medicamento ser incorporado devido à grande demanda via judicial, sugerindo a dispensação via protocolos específicos. Os membros do plenário deliberaram, por unanimidade, por não recomendar a incorporação do Infliximabe3333 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Ata da 23ª Reunião da Conitec: Brasília, DF; 2014.(11).

Uma terceira indicação da não influência direta da judicialização nas decisões da Conitec refere-se ao caso do Trastuzumab. Conforme a entrevistada 1, no caso do anticorpo monoclonal, havia uma ação civil pública para incorporar o medicamento no Brasil inteiro, para toda população que fosse diagnosticada com câncer de mama. Assim, foi firmado um termo de ajuste de conduta com o Judiciário para que a Conitec fizesse a avaliação dessa tecnologia antes da decisão final do juiz. Nesse caso, a decisão da Conitec em recomendar a incorporação foi pautada por evidências científicas e por avaliações econômicas, como pode ser constatado no relatório de incorporação da Conitec. Por essa razão, foi possível delimitar quais grupos da população portadora do câncer de mama teriam acesso ao medicamento e quais exigências seriam solicitadas ao fabricante para que o biológico pudesse ser incorporado ao SUS.

Para alguns entrevistados, o fato da Conitec possuir uma certa heterogeneidade na sua composição - fazem parte do Plenário representantes de sete secretarias do MS, do Conselho Federal de Medicina, do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, da Agência Nacional de Saúde Suplementar e da Anvisa - torna o processo de decisão mais equilibrado.

Teoricamente, todos assinaram e têm que declarar seus conflitos de interesses, mas o plenário, pela pluralidade que tem [...] vai ter interesses de cada ator envolvido, só que tem o interesse principal, central, que é o cidadão/usuário. Então, esses interesses, essa correlação de forças, a própria pluralidade do plenário ajuda a equilibrar essas influências. (Ent. 8).

Em todas as relações humanas, você vai ter sempre algumas questões ideológicas ou pessoais que vão influenciar em determinadas situações. O importante é você ter todas as visões dentro do mesmo lugar. Se você tiver isso, você anula os conflitos de interesse, o que é o caso dessa casa aqui. (Ent. 10).

O desenho da Conitec incorporou um pouco dessa representação social. A presença dessas pessoas traz outra dimensão, e isso não se refere ao voto em si, mas se refere ao conteúdo da discussão que é realizada no plenário da Conitec. (Ent. 2).

A gente tem aqui um certo equilíbrio entre atores e pessoas preparadas para identificar eventuais vieses ou buscar informações adicionais que respaldem a sua colocação e a sua decisão. Existe um certo equilíbrio bastante importante aqui dentro. (Ent. 11).

A diversidade de sujeitos que compõem a Comissão parece atuar como um elemento facilitador do processo de tomada de decisão da Conitec. Para os entrevistados, é exatamente a diversidade que proporciona um equilíbrio e uma certa segurança aos membros do Plenário, visto que diversas questões podem ser consideradas e elucidadas a partir da colocação dos conhecimentos e das opiniões dos diversos atores envolvidos na decisão, o que pôde ser observado também nas reuniões.

Outro elemento que pode minimizar os conflitos de interesse dos possíveis stakeholders e, assim, legitimar o trabalho da Conitec é a transparência com que as ações são realizadas (exigidas pela Lei nº 12.401/2011 e pelo Decreto nº 7.646/2011)1111 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde SUS. [internet]. 2011 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12401.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
,1212 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. [internet]. 2011 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7646.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
. Assim, todo o processo de incorporação de tecnologias em saúde é de acesso público e colocado em consulta pública antes da decisão final.

Acredito que, por ser um processo transparente, garante-se de fato a legitimidade do mesmo. Eu acho que a gente tem que evoluir para que todos reconheçam a Conitec como uma entidade legítima, com todas essas características de transparência, de segurança, com interesse de fato em beneficiar os usuários do Sistema Único de Saúde. (Ent. 9).

Discussão

A análise das entrevistas, das atas de reuniões e dos relatórios, somada ao que foi observado nas reuniões da Conitec, revelou que, apesar de a existência de ações judiciais relativas à incorporação de tecnologias muitas vezes fazer parte das discussões do plenário, não é um fator decisivo para a tomada de decisão da Comissão. Ao contrário, este estudo apontou que os membros da Conitec seguem, rigorosamente, o fluxo de incorporação de tecnologias regulamentado pela Lei nº 12.401/2011, pelo Decreto nº 7.646/2011 e pelo regimento interno da Comissão.

Contudo, apesar de não ter sido encontrado qualquer indício de influência direta das ações judiciais sobre as decisões da Conitec quanto à incorporação de medicamentos biológicos ao SUS, ficou claro que o tema da judicialização da saúde está muito presente nas discussões da Comissão.

Alguns estudos apontam a existência de uma relação entre o aumento do número de ações judiciais que requisitam medicamentos e a incorporação destes no SUS, e concluem que a judicialização da saúde, por interferir demasiadamente nas políticas de saúde, transformou-se em pressão para incorporação de fármacos pelo setor público1818 Diniz D, Medeiros M, Schwartz IDD. Consequências da judicialização das políticas de saúde: custos de medicamentos para as mucopolissacaridoses. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(3):479-489.,2121 Torres IDC. Judicialização do acesso a medicamentos no Brasil: uma revisão sistemática [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2013. 86 p.,2323 Guimarães R. Incorporação tecnológica no SUS: o problema e seus desafios. Ciênc. Saúde Colet. 2014; 19(12):4899-4908..

Os achados deste estudo, que mostram a não influência direta das ações judiciais sobre as decisões de recomendação de incorporação ou não de medicamentos biológicos, podem ser vistos como uma evidência de que a robusta legislação referente à incorporação de tecnologias de saúde e sua estrita observância pelos membros da Conitec, no período analisado, decorrem de iniciativas e condutas adotadas, em certa medida, como estratégias de proteção contra influências ilegítimas, que tomam, às vezes, a forma de ações judiciais.

Assim, torna-se possível, para a Conitec, concentrar sua atenção e basear suas decisões nos resultados dos estudos de avaliação de tecnologias em saúde, de análise de custo-efetividade e de impacto orçamentário, recomendando a incorporação ao SUS apenas daquelas tecnologias seguras, eficazes e com uma melhor relação custo-efetividade do que as alternativas já ofertadas.

Nesse sentido, verifica-se a existência de uma influência indireta do fenômeno da judicialização da saúde sobre o processo de incorporação de tecnologias no SUS, quando se consideram as motivações para a formulação da lei e das normas que regulamentam o funcionamento da Conitec e quando se identifica a preocupação dos dirigentes da Conitec em respeitar escrupulosamente as normas legais e evitar as influências percebidas como ilegítimas.

A Audiência Pública da Saúde, convocada em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal, certamente, impulsionou a aprovação da Lei nº 12.401/2011, considerando que se discutiu bastante a necessidade de que o processo de incorporação de tecnologias no SUS fosse formalizado, tornando-se mais transparente, com a possibilidade de maior participação dos usuários do SUS em suas decisões3434 Terrazas FV. Novos elementos no cenário da judicialização da saúde: análise das decisões dos Tribunais Superiores. In: Santos L, Terrazas FV. Judicialização da Saúde no Brasil. Campinas: Saberes Editora; 2014. p. 307-330.,3535 Balestra Neto O. A jurisprudência dos tribunais superiores e o direito à saúde - evolução rumo à racionalidade. Rev. Direito Sanitário. 2015; 16(1):87-111.. Essa audiência teve a finalidade especial de promover a participação social por meio de depoimentos de autoridades e pessoas interessadas, contribuindo para o deslinde de questões técnicas, científicas, administrativas, políticas e econômicas envolvidas nas decisões judiciais sobre saúde3535 Balestra Neto O. A jurisprudência dos tribunais superiores e o direito à saúde - evolução rumo à racionalidade. Rev. Direito Sanitário. 2015; 16(1):87-111..

Outra evidência da influência do fenômeno da judicialização da saúde sobre a definição do processo de incorporação de tecnologias no SUS refere-se a duas iniciativas estabelecidas, em 2010, pela Instituição.

A primeira inciativa se refere à Recomendação nº 31/20103636 Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 31 de 30 de março de 2010. Recomenda aos tribunais a adoção de medidas visando melhor subsidiar os magistrados e demais operadores de direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo assistência à saúde. Brasília, DF [internet]. 2010 [acesso em 2018 nov 13]. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/recomendao-n31-30-03-2010-presidncia.pdf.
http://www.cnj.jus.br/files/atos_adminis...
, que orienta os tribunais de todo o País a adotarem uma série de medidas visando a apoiar magistrados e outros operadores do direito a fim de assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais pertinentes ao direito à saúde.

A outra inciativa do CNJ foi a criação do Fórum Nacional do Judiciário para o ‘monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde’ e para ‘criar ainda medidas concretas voltadas à otimização de rotinas processuais bem como a estruturação e organização de unidades judiciárias especializadas’, por meio da Resolução nº 1073737 Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 107, de 2010. Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde. [internet]. 2010 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n107-06-04-2010-presidncia.pdf.
http://www.cnj.jus.br/files/atos_adminis...
.

De modo geral, as recomendações do CNJ orientam a aproximação dos campos do direito e da saúde.

De fato, ao menos em parte, por conta das recomendações, a Conitec tem se aproximado do Poder Judiciário. Para isso, entre outras estratégias, tem promovido ações voltadas à instrumentalização dos magistrados para a tomada de decisão. Uma dessas ações é a parceria firmada entre a Conitec e o CNJ, que resultou na disponibilização de um canal direto (conitec@saude.gov.br) para responder a questionamentos dos magistrados sobre a incorporação de medicamentos, produtos ou procedimentos no SUS.

O Balanço Conitec 2012-20143838 Brasil. Balanço Conitec 2012-2014. Ministério da Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. [internet] 2014 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://conitec.gov.br/images/Artigos_Publicacoes/BalancoCONITEC.pdf.
http://conitec.gov.br/images/Artigos_Pub...
informa que a emissão de respostas aos questionamentos oriundos do Ministério Público e de órgãos do Poder Judiciário, quanto à incorporação de tecnologias no SUS, é um trabalho diário realizado pela sua Secretaria Executiva. De janeiro de 2012 a agosto de 2014, foram respondidos 701 questionamentos.

Outra estratégia de aproximação com o Poder Judiciário é a disponibilização de fichas técnicas sobre tecnologias de saúde no site da Conitec, com o propósito de subsidiar as decisões dos magistrados. Atualmente, estão disponibilizadas no sítio eletrônico da Conitec (www.conitev.gov.br) 77 fichas técnicas de diversas tecnologias em saúde, sendo 23 sobre medicamentos biológicos. Essas fichas técnicas possuem informações sobre medicamentos e produtos para a saúde, no que se refere à disponibilidade ou não da tecnologia no SUS, à recomendação ou não de sua incorporação, ao custo de tratamento, à existência de alternativas no sistema público de saúde e à disponibilidade ou não de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas para a situação clínica relacionada.

Um terceiro movimento da Conitec de aproximação com o Judiciário tem sido a participação de seus membros em eventos promovidos pelos Comitês Executivos de Saúde, criados por recomendação do CNJ. Além disso, a Conitec tem participado regularmente, juntamente com a Consultoria Jurídica do MS, de várias audiências no Ministério Público e no Poder Judiciário para tratar de temas acerca da incorporação de tecnologias em saúde.

Diante da complexidade do objeto de investigação deste estudo, não foi possível esgotar todas as facetas relacionadas à influência das ações judiciais relativas a medicamentos biológicos na recomendação de incorporação destes no SUS pela Conitec. Desse modo, levanta-se a necessidade da realização de novos estudos no que diz respeito ao preenchimento das seguintes lacunas: acompanhamento da incorporação e disponibilização dos medicamentos biológicos aos usuários do SUS, avaliando as alterações nos Protocolos Clínicos e nas Diretrizes Terapêuticas, atualização da Rename e avaliação dos prazos para a disponibilização do medicamento no SUS. Uma outra possibilidade de estudo se refere à comparação do quantitativo de ações judiciais em saúde para requisição de medicamentos biológicos ao SUS, antes e após terem sido incorporados ao sistema.

Conclusões

Diante da magnitude do fenômeno da judicialização e de suas diversas facetas políticas, econômicas, éticas, técnicas, sanitárias; diante, também, da falta de consenso tanto entre gestores, operadores de direito, médicos quanto dos próprios estudiosos do tema sobre os efeitos das ações judiciais sobre o sistema público de saúde e sobre os modos de enfrentamento do fenômeno; diante, ainda, dos interesses mercadológicos imbuídos nas ações judiciais que solicitam bens e serviços de saúde, constata-se que o funcionamento da Conitec é regulado por leis e decretos que visam à proteção do processo de incorporação de tecnologias de influências ilegítimas para a incorporação de tecnologias ao SUS, inclusive quando tomam a forma de demandas judiciais. É notória, ademais, a preocupação dos membros da Conitec em seguir a letra da lei.

Deste modo, pode-se concluir que o fenômeno da judicialização da saúde não influencia diretamente o processo de decisão da Conitec com vistas à incorporação de tecnologias no SUS, inclusive de medicamentos biológicos. Contudo, tal fenômeno tem influenciado indiretamente o processo de incorporação de tecnologias, no plano da regulamentação do processo de incorporação de tecnologias em saúde no âmbito do SUS, através da elaboração de um sólido arcabouço legal pelos gestores, constituído por leis, decretos e normas, como uma forma de proteção contra a pressão que pode ser exercida por interesses diversos, inclusive por meio de ações judiciais.

  • Suporte financeiro: pesquisa do projeto ‘Análise de Políticas de Saúde no Brasil (2003-2017)’ apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e Ministério da Saúde (Chamada MCTI/CNPq/CT-Saúde/MS/SCTIE/Decit nº 41/2013)

Referências

  • 1
    Gadelha CAG, Maldonado J, Costa LS, et al. Complexo Produtivo da Saúde: inovação, desenvolvimento e Estado. In: Paim JS, Almeida-Filho N. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014. p. 173-184.
  • 2
    Gadelha CAG, Barbosa PR, Maldonado J, et al. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde: conceitos e características gerais. VPPIS/Fiocruz [internet]. 2010 ago [acesso em 2018 set 26]; 1(1):1-17. Disponível em: http://www.fiocruz.br/vppis/imagens/ceis/Boletim%20Complexo%20Saude%20Vol%201%202010.pdf
    » http://www.fiocruz.br/vppis/imagens/ceis/Boletim%20Complexo%20Saude%20Vol%201%202010.pdf
  • 3
    Reis C, Pieroni JP, Souza JOB. Biotecnologia para saúde no Brasil. BNDES. 2010; 32:193-230.
  • 4
    Malajovich MA. Biotecnologia 2011. Rio de Janeiro: Edições da Biblioteca Max Feffer do Instituto de Tecnologia ORT; 2012.
  • 5
    Pimenta CG. O ambiente institucional da biotecnologia voltada para a saúde humana no Brasil [dissertação]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2008. 133 p.
  • 6
    Torres-Freire C, Golcher D, Callil V. Biotecnologia em saúde humana no Brasil: produção científica e pesquisa e desenvolvimento. Novos Estudos. 2014 mar; 98:69-93.
  • 7
    Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução - RDC nº 55, de 16 de dezembro de 2010. Dispõe sobre o registro de produtos biológicos novos e produtos biológicos e dá outras providencias. Diário Oficial da União. 17 Dez 2010.
  • 8
    Scheffer MC. Aids, tecnologia e acesso sustentável a medicamentos: a incorporação dos anti-retrovirais no Sistema Único de Saúde [tese]. [São Paulo]: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2008. 255 p.
  • 9
    Schwarzer R, Siebert U. Methods, procedures, and contextual characteristics of health technology assessment and health policy decision making: comparison of health technology assessment agencies in Germany, United Kingdom, France, and Sweden. Int J Technol Assess Health Care. 2009; 25(3):305-314.
  • 10
    Caetano R, Silva RM, Pedro EM, et al. Incorporação de novos medicamentos pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS, 2012 a junho de 2016. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2017 ago [acesso em 2018 out 01]; 22(8):2513-2525. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017002802513&script=sci_abstract&tlng=pt
    » http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017002802513&script=sci_abstract&tlng=pt
  • 11
    Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde SUS. [internet]. 2011 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12401.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12401.htm
  • 12
    Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. [internet]. 2011 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7646.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7646.htm
  • 13
    Pierro B. Demandas crescentes: parcerias entre instituições de pesquisa e a esfera pública procuram entender a judicialização da saúde e propor estratégias para lidar com o fenômeno. Rev. Pesquisa Fapesp. 2017; 18(252):18-25.
  • 14
    Brasil, Ministério da Saúde. Relatório de gestão 2016. Brasília, DF: 2017.
  • 15
    Vieira FS. Texto para discussão: Evolução do gasto com medicamentos do Sistema Único de Saúde no período de 2010 a 2016. Rio de Janeiro: Ipea; 2018.
  • 16
    Chieffi AL, Barata RB. Ações judiciais: estratégica da indústria farmacêutica para introdução de novos medicamentos. Rev. Saúde Pública. 2010; 44(3):421-429.
  • 17
    Lopes LC, Barberato-Filho S, Costa AC, et al. Uso racional de medicamentos antineoplásicos e ações judiciais no Estado de São Paulo. Rev. Saúde Pública. 2010; 44(4):620-628.
  • 18
    Diniz D, Medeiros M, Schwartz IDD. Consequências da judicialização das políticas de saúde: custos de medicamentos para as mucopolissacaridoses. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(3):479-489.
  • 19
    Vieira FS. Ações judiciais e direito à saúde: reflexão sobre a observância aos princípios do SUS. Rev. Saúde Pública. 2008; 42(2):365-369.
  • 20
    Messeder AM, Osorio-de-Castro CGS, Luiza VL. Mandados judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2005; 21(5):525-34.
  • 21
    Torres IDC. Judicialização do acesso a medicamentos no Brasil: uma revisão sistemática [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2013. 86 p.
  • 22
    Lisboa ES, Souza LEPF. Por que as pessoas recorrem ao Judiciário para obter o acesso aos medicamentos? O caso das insulinas análogas na Bahia. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(6):1857-1864.
  • 23
    Guimarães R. Incorporação tecnológica no SUS: o problema e seus desafios. Ciênc. Saúde Colet. 2014; 19(12):4899-4908.
  • 24
    Machado MAA, Acurcio FA, Brandão CMR, et al. Judicialização do acesso a medicamentos no Estado de Minas Gerais, Brasil. Rev. Saúde Pública. 2011; 45(3):590-598.
  • 25
    Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais: RENAME 2017. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017.
  • 26
    Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011.
  • 27
    Minayo MCS, Deslandes SF. Caminhos do pensamento - epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010.
  • 28
    Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília, DF; 2012.
  • 29
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Ata da 17ª Reunião da Conitec: Brasília, DF; 2013.
  • 30
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Ata da 18ª Reunião da Conitec: Brasília, DF; 2013.
  • 31
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Ata da 20ª Reunião da Conitec: Brasília, DF; 2013.
  • 32
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Ata da 24ª Reunião da Conitec: Brasília, DF; 2014.
  • 33
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Ata da 23ª Reunião da Conitec: Brasília, DF; 2014.
  • 34
    Terrazas FV. Novos elementos no cenário da judicialização da saúde: análise das decisões dos Tribunais Superiores. In: Santos L, Terrazas FV. Judicialização da Saúde no Brasil. Campinas: Saberes Editora; 2014. p. 307-330.
  • 35
    Balestra Neto O. A jurisprudência dos tribunais superiores e o direito à saúde - evolução rumo à racionalidade. Rev. Direito Sanitário. 2015; 16(1):87-111.
  • 36
    Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 31 de 30 de março de 2010. Recomenda aos tribunais a adoção de medidas visando melhor subsidiar os magistrados e demais operadores de direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo assistência à saúde. Brasília, DF [internet]. 2010 [acesso em 2018 nov 13]. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/recomendao-n31-30-03-2010-presidncia.pdf
    » http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/recomendao-n31-30-03-2010-presidncia.pdf
  • 37
    Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 107, de 2010. Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde. [internet]. 2010 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n107-06-04-2010-presidncia.pdf
    » http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n107-06-04-2010-presidncia.pdf
  • 38
    Brasil. Balanço Conitec 2012-2014. Ministério da Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. [internet] 2014 [acesso em 2018 jun 29]. Disponível em: http://conitec.gov.br/images/Artigos_Publicacoes/BalancoCONITEC.pdf
    » http://conitec.gov.br/images/Artigos_Publicacoes/BalancoCONITEC.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2018
  • Aceito
    22 Out 2018
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br