Desenvolvimento de tecnologia dura para tratamento do pé diabético: um estudo de caso na perspectiva da saúde coletiva

Mário Fabrício Fleury Rosa Sílvia Maria Ferreira Guimarães Aldira Guimarães Duarte Dominguez Rebeca Soares Assis Cecília Balbino Reis Suélia de Siqueira Rodrigues Fleury Rosa Sobre os autores

RESUMO

Este é um estudo de caso que objetivou analisar, na perspectiva da saúde coletiva, o processo de desenvolvimento do equipamento médico para o tratamento do pé diabético realizado pela parceria entre o Ministério da Saúde (MS) e a Universidade de Brasília (UnB) no período de dezembro de 2016 a janeiro de 2019. A análise observou o comportamento do grupo de pesquisa responsável pela produção da tecnologia dura mediante as dificuldades em transformar a pesquisa em um produto com viés mercadológico capaz de ser assimilado na cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS), concomitantemente à participação da saúde coletiva na superação de alguns entraves. Utilizou-se como estudo de caso a parceria entre o MS e a UnB apoiado no modelo de investigação qualitativa com ênfase em processos metodológicos de tipologia mista, mas com prioridade aos métodos de observação participante cuja unidade de análise está vinculada à saúde coletiva. Os resultados observados evidenciaram que a contribuição da saúde coletiva na produção da tecnologia dura minimizou lacunas para a provável transformação da ideia em produto assimilável pelo SUS. A participação da saúde coletiva diminuiu os espaços entre as áreas do conhecimento envolvidas, aproximando a universidade da iniciativa privada e dos órgãos reguladores.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde coletiva; Pé diabético; Tecnologia em saúde; Políticas públicas de saúde

Introdução

Na atualidade, experiências de diversos governos traduzidas por políticas públicas sugerem que a ideia de maturidade de processos de desenvolvimento e produção de novas tecnologias em saúde, mais especificamente tecnologias duras11 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2014., possa atender a expectativas em redução de iniquidades em saúde. Esforços governamentais apoiados na hélice tríplice - segundo Etzkowitz, “interações entre universidade-indústria-governo são a chave para a inovação em sociedades cada vez mais baseadas no conhecimento”22 Etzkowitz H. Hélice Tríplice: universidade-indústria-governo - inovação em ação. Porto Alegre: Edipucs; 2009.(1) - tornam-se mais presentes a cada dia. No Brasil, um importante gargalo para o setor de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) está no baixo índice de transferências tecnológicas advindas das universidades. Se, por um lado, as academias brasileiras possuem relevância nos processos de desenvolvimentos científicos e tecnológicos, por outro, são imaturas na perspectiva da transformação de tecnologias duras em produtos com vieses mercadológicos, ou seja, aqueles com capacidade de serem assimilados pelos sistemas de saúde, problema que este trabalho procurou debater.

Segundo dados epidemiológicos amplamente divulgados, no Brasil, doenças crônicas não transmissíveis como a Diabetes Mellitus (DM) constituem um problema de saúde de grande magnitude. Conforme a Agência Brasil33 Brasil. Governo Federal. Associação alerta diabéticos sobre necessidade de cuidados com os pés. Portal de Notícias [internet]. 2017 [acesso em 2019 mar 10]. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/noticias/saude/2012/01/associacao-alerta-diabeticos-sobre-necessidade-de-cuidados-com-os-pes.
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, estudos internacionais estimam que em torno de 20% dos casos de feridas e úlceras nos pés de acometidos pela diabetes – as Úlceras do Pé Diabético (UPD) – podem evoluir para amputação, chegando à média de 42 mil amputações de membros inferiores todos os anos. Para a realidade brasileira, o Sistema Único de Saúde (SUS) investiu, em 2014, em torno de US$ 30 milhões44 Toscano CM, Sugita TH, Rosa MQM, et al. Annual Direct Medical Costs of Diabetic Foot Disease in Brazil: a cost of illness study. Int. J. Environ. Res. Public Health. 2018; 15(1):89. visando, em termos gerais, ao acolhimento, ao tratamento e ao acompanhamento dos pacientes DM acometidos pela UPD, considerada uma complicação que impõe

ônus significativo à saúde e à economia para o Sistema de Saúde brasileiro, enfatizando a necessidade de políticas de saúde voltadas para sua prevenção e atendimento aprimorados44 Toscano CM, Sugita TH, Rosa MQM, et al. Annual Direct Medical Costs of Diabetic Foot Disease in Brazil: a cost of illness study. Int. J. Environ. Res. Public Health. 2018; 15(1):89.(10).

Não obstante, racionalidades como as médico-sanitárias55 Motta PMR, Marchiori RA. Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: estudos teóricos e empíricos. Cad. Saúde Pública. 2013; 29(4):833-834.,66 Dias RB. Sessenta anos de políticas científica e tecnológica no Brasil. Campinas: Unicamp; 2012. e científico-tecnológicas77 Nascimento MC, Barros NF, Nogueira MI, et al. A categoria racionalidade médica e uma nova epistemologia em saúde. Ciênc. Saúde Colet.2013; 18(12):3595-3604. se colocam lado a lado. Aquela do ponto de vista da saúde, vinculada aos processos saúde-doença, procuram atender às necessidades de saúde dos sujeitos a partir dos protocolos, produtos e processos disponíveis nas coberturas do sistema de saúde; e as científico-tecnológicas, por sua vez, vinculadas ao desenvolvimento e produção de tecnologias duras, buscam sobreviver ao ambiente pouco favorável de inovação e visam atender o sistema de saúde por meio da incorporação de seus resultados. Em meio a essa articulação, emerge a possibilidade de a saúde coletiva dialogar com o fenômeno de produção de tecnologias duras com possibilidades de incorporação pelo SUS. Seu arcabouço teórico-metodológico pode vir a contribuir para a redução de lacunas que incidem sobre o processo de translação do conhecimento para o proveito da sociedade na perspectiva do desenvolvimento de tecnologias duras.

A partir dessa expectativa – ou seja, processos que vão da bancada à beira do leito e ao impacto populacional88 Khoury MJ, Gwinn M, Ioannidis JPA. The emergence of translational epidemiology: from scientific discovery to population health impact. Am J Epidemiol. 2010; 172:517-524. envolvendo universidade, governo e iniciativa privada –, justifica-se a necessidade de construir e de consolidar ações que possam facilitar a liberação dos fluxos acadêmicos e tecnológicos desenvolvidos dentro das universidades de forma que o desfecho de suas aplicações cheguem de fato aos sistemas de saúde. Para melhor entender esse cenário, o trabalho em tela observou a rotina de um grupo de pesquisa – denominado desenvolvedores - vinculado à Universidade de Brasília (UnB) no desenvolvimento de tecnologia dura e suas interações com o Governo Federal e com a iniciativa privada.

Nesse contexto, surge a hipótese de que os fazeres e práticas da saúde coletiva apresentam-se capazes em auxiliar na transformação de pesquisas em tecnologias compatíveis ao SUS.

Sistema Único de Saúde, Ciência, Tecnologia e Inovação e o equipamento Rapha

Historicamente, os sistemas de saúde tornaram-se estruturas complexas, prestando serviços em saúde que utilizam milhares de produtos, processos, procedimentos e normas técnicas99 Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Ciência e Tecnologia em Saúde/Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Brasília, DF: Conass; 2011.. A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, conhecida como uma das leis do SUS, dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, organização e funcionamento dos serviços correspondentes. O parágrafo 1º do art. 4º inclui nas práticas e fazeres do SUS a possibilidade de pesquisa e produção de insumos e equipamentos para saúde; enquanto o art. 6º, inciso VI, apresenta como uma das atuações do SUS a formulação da política de equipamentos e a participação na produção1010 Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Promoção, proteção e recuperação da saúde e organização e funcionamento dos serviços correspondentes. Diário Oficial da União [internet]. 20 Set 1990. [acesso em 2019 ago 19]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm.
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– características que incentivaram práticas visando ao amadurecimento de setores produtivos e científicos para que houvesse aumento dos níveis de incorporações tecnológicas na rede. Todavia, incentivos dessa natureza dependem de ordenamentos políticos, ou seja, da interpretação e da vontade governamental em gerar e apoiar condições salutares para que cada vez mais ocorra o fenômeno do fechamento do ciclo completo - da ideia ao mercado.

Entrementes, conceitos como complexo econômico-industrial da saúde1111 Gadelha CAG, Gadelha P, Noronha JC, et al. Brasil saúde amanhã: complexo econômico-industrial da saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. encontraram apoio e incentivo na Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE), criada em 2003, e nas suas diretorias - Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit) e Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde (Deciis) – este criado em 2009 –, demonstrando que a agenda pública econômica e a científica para o desenvolvimento e produção de medicamentos, insumos e equipamentos eram convergentes. Políticas públicas em saúde, a exemplo das parcerias público-privadas (PDP) e entre o Ministério da Saúde (MS) e universidades demonstram que o Governo Federal procura induzir cenários favoráveis e autossustentáveis de CT&I em saúde. O projeto de pesquisa representado pela parceria entre o MS e a UnB para o desenvolvimento e produção do equipamento Rapha – equipamento médico portátil de neoformação tecidual para tratamento e cura de feridas de membros inferiores, como o pé diabético, capaz de ser assimilado na cobertura do SUS -, estudo de caso deste trabalho, é formado por: 1) curativos de látex que promovem neoformação tecidual; e 2) emissor de luz LED capaz de acelerar a cicatrização da pele, exemplificando a parceria entre MS e universidade para desenvolvimento de tecnologia dura em saúde. Em maio de 2019, a estrutura da SCTIE foi modificada: o Deciis deixou de existir, e o componente ‘inovação’ passou a ser atribuição do Departamento que abriga a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), que passa a ser denominado Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde.

Saúde coletiva em ação: contribuições para soluções de problemas

As universidades têm a função não somente de formar mão de obra com alta qualificação e produzir pesquisas originais, mas existe também a expectativa de gerar tecnologias inovadoras que cheguem à sociedade. Plataformas de acesso livre como a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e a Scientific Electronic Library Online (SciELO) - biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros e latino americanos - demonstram que as universidades brasileiras têm alcançado níveis satisfatórios para o avanço da questão do ensino e da pesquisa, vide o número de publicações científicas de alto impacto. Porém, são poucos os estudos indexados que divulgam processos de translação do conhecimento oriundo das universidades brasileiras diretamente para os sistemas de saúde. Nota-se que os dados que representam a produção de tecnologias inovadoras que transponham os ambientes laboratoriais e cheguem de fato ao mercado possuem baixa divulgação, especialmente em relação ao desenvolvimento de tecnologias duras. Entretanto, muitos estudos trabalham na medição de indicadores de CT&I que buscam atualizar o panorama sobre os elementos-chave que sustam o crescimento, a competitividade e o desenvolvimento de empresas, indústrias, regiões e países1212 Viotti EB. Fundamentos e Evolução dos Indicadores de CT&I. In: Viotti EB; Macedo MM, organizadores. Indicadores de ciência, tecnologia e inovação no Brasil. Campinas: Unicamp; 2003..

Nesse contexto, a saúde coletiva apresenta condições de reduzir as distâncias entre as racionalidades sanitárias e tecnológicas no que diz respeito às tecnologias duras, justamente por possuir conhecimento sobre dimensões que transitam entre cenários como territorialização em saúde, processos saúde-doença, epidemiologia, sistemas de saúde, políticas de saúde, educação em saúde, determinantes sociais em saúde, entre outros1313 Pelegrini Filho A, Buss PM, Esperidião MA. Promoção da Saúde e seus Fundamento: determinantes sociais de saúde, ação intersetorial e políticas públicas saudáveis. In: Paim JS, Almeida Filho N. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014.. Esses componentes são relevantes e imprescindíveis para que o processo de desenvolvimento tecnológico realizado dentro da universidade incorpore na tecnologia dura em produção aspectos que deem sustentação à realização de atividades, como estudos de impacto econômico e social capazes de subsidiar incorporações tecnológicas com características auxiliares à prestação de serviços de saúde e autofinanciamento do SUS.

Para o caso concreto observado neste estudo, representado pelo desenvolvimento de equipamento médico para o tratamento do pé diabético com características mercadológicas em atendimento aos requisitos da Conitec realizado pela UnB, evidenciou-se o papel da saúde coletiva na busca de preencher lacunas relativas à superação de gargalos entre a pesquisa universitária e a apropriação do conhecimento pelo sistema de saúde.

Fleury Rosa1414 Fleury Rosa MF. Pesquisa e inovação em saúde: contribuições da saúde coletiva para o desenvolvimento e produção de tecnologia no contexto do pé diabético. [tese]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2018. 175 p., em estudo recente, traçou um panorama da influência da pesquisa interdisciplinar e dos contextos do campo da saúde coletiva como perspectivas metodológicas capazes de acelerar os processos de desenvolvimento de equipamentos médicos. Sugere que a valorização do diálogo entre os mais variados campos do conhecimento e a influência dos fazeres e práticas da saúde coletiva influenciam positivamente o ambiente inovador das universidades no contexto de produção de tecnologias duras. Somado a isso, a área da saúde coletiva, apoiada no tripé em epidemiologia, gestão e políticas e nas ciências sociais em saúde, incluindo conhecimento sobre políticas públicas em saúde, burocracias e rotinas de sistemas de saúde1515 Paim JS. Desafios para a saúde coletiva no século XXI. Salvador: Edufba; 2006., pode reduzir lacunas que levam aos insucessos da cadeia de desenvolvimento, produção, comercialização e assimilação de tecnologia dura pelo sistema de saúde brasileiro.

Metodologia

Preâmbulo metodológico

Ao pensarmos os modelos de atenção à saúde, dois podem ser caracterizados como prevalentes no Brasil: o médico-assistencial e o sanitarista. Conforme Teixeira e Vilasbôas1616 Teixeira CF, Vilasbôas ALQ. Modelos de Atenção à Saúde no SUS: transformação, mudança ou conservação? In: Paim JS, Almeida-Filho N. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014.(29),

o SUS ‘herdou’ o modelo de atenção médico-assistencialista hospitalocêntrico e privatista, tornando-se, assim, um espaço de conflitos e negociações e em torno das propostas de mudanças ou conservação do modelo de atenção.

Para além de relacionar esses modelos, o SUS executa, apoiado pelo MS, a missão em promover o desenvolvimento de tecnologias duras almejando o retorno para o sistema e seu autofinanciamento; sendo que a variável financiamento da saúde1717 Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. O financiamento da saúde. Brasília, DF: Conass; 2011. é fundamental na manutenção desses serviços, visto que “a escassez é, por definição, uma característica inerente aos recursos em qualquer campo da atividade humana”1717 Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. O financiamento da saúde. Brasília, DF: Conass; 2011.(29). Nesse contexto, por serem espaços privilegiados em realizar CT&I, as universidades se tornam, cada vez mais, corresponsáveis pelos índices de incorporações de tecnologias no sistema de saúde, apresentando-se como órgãos operantes nesse processo.

Todavia, na perspectiva da produção tecnológica para equipamentos, fica claro que somente o processo de desenvolvimento acadêmico e científico não é suficiente para fechar o ciclo completo, ou seja, sair da bancada de pesquisa e, de fato, servir às necessidades de saúde da população. Esses esforços no âmbito acadêmico precisam ir além – quebrar o círculo vicioso em que grande parte dos equipamentos produzidos nos laboratórios e centros de pesquisa vinculados às universidades fica, muitas vezes, estocada nas ‘prateleiras’ desses laboratórios – e dar um passo adiante, vencer o vale da morte1818 Butler D. News Feature Translational research: crossing the valley of death. Nature [internet]. 2008 [acesso em 2019 ago 14]; 453:840-842. Disponível em: https://www.nature.com/news/2008/080611/full/453840a.html
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. Para CT&I, o vale da morte representa a não transformação da pesquisa científica em inovação, ou seja, não transformar a pesquisa científica em equipamentos comercializáveis identificados pelos cadastros e registros na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e no Instituto de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), entre outros aspectos.

Neste trabalho, foi utilizado como estudo de caso1919 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman; 2005. o desenvolvimento do equipamento Rapha. Nesse cenário, observaram-se as tradicionais articulações entre governo e universidade e, a partir dessa observação, buscou-se verificar possíveis lacunas/superações existentes nessa interação que visam abastecer o SUS com tecnologia dura. A abordagem de triangulação de métodos – análise de conteúdo, observação participante e vertente bibliográfica -, conforme preconizado por Minayo2020 Minayo C, Assis SG, Souza ER, et al. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005., orientou metodologicamente o procedimento de coleta e análise de dados.

Desenho metodológico

Apoiou-se no modelo de investigação qualitativa com ênfase em processos metodológicos de tipologia mista, priorizando métodos de observação participante, cuja unidade de análise (qualitativo/quantitativo) está vinculada às interações da saúde coletiva no processo de desenvolvimento da tecnologia dura. Adotou-se enfoque metodológico da pesquisa qualitativa de Poupart et al.2121 Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, et al., organizadores. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2012. privilegiando a observação direta, selecionando local de observação e acesso aos dados, conforme modelo discutido por Jaccoud e Mayer2222 Jaccoud M, Mayer R. A observação direta e a pesquisa qualitativa. In: Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, Lapernière A, et al, organizadores. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2012.. Esse modelo sugere a descrição e/ou respostas a cinco elementos norteadores:

1) Onde nós estamos? É a descrição do local – do lugar, dos objetos, do ambiente; 2) Quem são os participantes? É a descrição dos participantes – seu nome, sua função, suas características etc.; 3) Por que os participantes estão aí? É a descrição das finalidades e dos objetivos – as razões formais ou oficiais de sua presença nesse local, os outros motivos etc.; 4) O que se passa? É a descrição da ação – os gestos, os discursos, as interações etc.; 5) O que se repete e desde quando? É a descrição da duração e da frequência – história do grupo, frequência da ação, etc.2222 Jaccoud M, Mayer R. A observação direta e a pesquisa qualitativa. In: Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, Lapernière A, et al, organizadores. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2012.(267).

Apesar das dificuldades de separação entre objeto e pesquisador, a rotina de pesquisa conduz, paulatinamente, para o delineamento de formação de unidades significativas, neste trabalho representadas pelos atores sociais incluídos no estudo de caso, a saber: pesquisadores-desenvolvedores, profissionais liberais, gestores de políticas públicas em saúde, laboratórios de pesquisa e empresas privadas. Perceber, mensurar e catalogar os espaços físicos, as pessoas participantes, as instituições envolvidas e as políticas públicas integrantes fazem parte do processo metodológico de base qualitativa e auxiliam no distanciamento do objeto de análise. Neste trabalho, a metodologia aplicada buscou equilibrar “o rigor da suposta objetividade dos números e a fecundidade da subjetividade”2323 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.(304).

Entre dezembro de 2016 e janeiro de 2019, o processo de desenvolvimento do equipamento Rapha institucionalizou pessoas físicas – bolsas de estudo, de pesquisa e serviços de pessoas físicas – e jurídicas, prestação de serviços por empresas. O quadro 1 demonstra o número de pessoas e empresas que participaram dessa fase.

Quadro 1
Dados quantitativos: contratação - pessoa física e jurídica

As quantidades apresentadas no quadro 1 são compostas por números aproximados, relacionando tipo de rubricas inseridas no contexto do projeto Rapha (auxílios financeiros a pesquisadores e estudantes; outros serviços pessoa física e jurídica). Vale ressaltar que muitos contratos vinculados às bolsas de estudo e pesquisa tiveram vigências bem curtas e/ou foram cancelados antes mesmo de iniciar. Nesse levantamento, a partir dos dados extraídos de fontes bibliográfica e observacional, verificou-se uma variedade expressiva de matrizes disciplinares envolvidas na trama do desenvolvimento do equipamento, caracterizando a possibilidade de aplicação do processo de interdisciplinaridade em ciência, tecnologia e inovação2525 Philippi Jr A, Silva Neto AJ. Interdisciplinaridade em ciência, tecnologia & inovação. Barueri: Manole; 2011..

Quando a universidade realiza parceria para o desenvolvimento de tecnologias duras, além de mão de obra especializada e investimento, o espaço físico é fundamental. Para o projeto Rapha, observou-se estabelecimento de parcerias entre laboratórios das várias áreas, e, gradativamente, essa aproximação possibilitou um circuito científico focado nas soluções de problemas. Apresentamos alguns laboratórios que compuseram esse circuito ao longo do tempo:

  • Faculdade do Gama (FGA/UnB), Faculdade de Ceilândia (FCE/UnB), Faculdade de Tecnologia (FT/UnB), Instituto de Biologia (IB/UnB), Instituto de Química (IQ/UnB);

  • Centro de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico (CDT/UnB);

  • Laboratório de Engenharia e Biomateriais (BioEngLab/FGA/UnB), Laboratório de Engenharia Biomédica (LAB/FT/UnB), Laboratório de Física (IF/UnB), Laboratório de Química (IQ/UnB), Tecnologia Química (Lateq/IQ e TecBor);

  • Programa de Pós-Graduação em Engenharia Biomédica (PPGEB/FGA/UnB); Programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias em Saúde (PPGCTS/FCE/UnB);

  • Universidade Federal de Campina Grande (UFCG); Unidade Acadêmica de Engenharia de Materiais/CCT/UFCG; Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste (CERTBIO/UFCG);

  • Ambulatório de Referência para Diabetes do Hospital Regional de Ceilândia (HRC).

Essa rede representa a separação das metas e atividades de pesquisa, visto que cada laboratório, dentro da sua especificidade, contribuía para o projeto Rapha promovendo maiores chances em superar os desafios inerentes a essa natureza de desenvolvimento. No que tange ao eixo gestores públicos identificados como parceiros-financiadores, a lista de atores sociais envolvidos no processo do desenvolvimento da tecnologia dura aumenta. Exemplos de alguns parceiros:

  • Ministério da Saúde (MS);

  • Fundo Nacional de Saúde (FNS);

  • Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE);

  • Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde (Deciis).

Percebeu-se que o MS acompanha a evolução dessa parceria sob dois aspectos, FNS na perspectiva orçamentária/financeira e a SCTIE e suas diretorias na perspectiva do desenvolvimento científico e tecnológico.

Por outro lado, metodologias como a teoria e a prática em ciências humanas e sociais – a exemplo de Paim e Almeida Filho2626 Paim JS, Almeida-Filho N. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. –, cujos autores discutem processos de pesquisa interdisciplinar e saúde coletiva, complementam o desenho metodológico deste trabalho. Ademais, o estudo de caso como estratégia de pesquisa, conforme Yin1919 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman; 2005.(20),

em muitas situações, para contribuir com o conhecimento que temos dos fenômenos individuais, organizacionais, sociais, políticos e de grupo, além de outros fenômenos relacionados, [foi privilegiado no contexto metodológico].

Todo arcabouço metodológico orientou este trabalho para acompanhar a participação de alguns profissionais ligados à saúde coletiva no processo de desenvolvimento da tecnologia dura.

Este trabalho obedeceu à Resolução nº 510, de 7 de abril de 20162727 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Diário Oficial da União [internet]. 24 Maio 2016. [acesso em 2019 ago 19]. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/22917581.
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, conforme normas aplicáveis às ciências humanas. O desenho clínico observado foi realizado no Hospital Regional de Ceilândia (HRC), autorizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UnB, com parecer favorável: CAAE 52305715.6.0000.5553.

Resultados e discussão

Observou-se que os profissionais da saúde coletiva ligados ao projeto Rapha demonstravam conhecimento sobre processos de pesquisa interdisciplinar, políticas públicas em saúde e gerenciamento de sistemas de saúde, que demonstraram ser fundamentais para a produção de tecnologia dura com possibilidade de cobertura do SUS. Suas atuações começaram a ser notadas à medida que problemas de caráter não técnicos/tecnológicos vinculados à tecnologia dura começaram a sobressair.

Privilegiaram-se dois aspectos neste trabalho: o desenvolvimento científico e tecnológico capitaneado pela área da engenharia biomédica, apoiado pelo processo de pesquisa interdisciplinar com ênfase no papel da saúde coletiva para a integração da parceria entre a universidade e Governo Federal; e os acontecimentos aderentes ao processo de translação do conhecimento com possibilidades de assimilação na cobertura do SUS. Ficou evidenciada a participação da saúde coletiva nesse contexto por meio da materialização de algumas categorias resultantes de análises obtidas pela aplicação do método de pesquisa qualitativa, a exemplo das ‘atividades de pesquisa’, ‘reuniões presenciais’ e ‘visitas técnicas’. Nessas ocasiões, inclusive, eram debatidos aspectos da Promoção em Saúde no contexto do equipamento médico.

A proposta do equipamento Rapha possui como eixo norteador a área de conhecimento da engenharia biomédica. Entretanto, outras áreas como as da Saúde – Medicina, Farmácia, Enfermagem, Saúde Coletiva, Ciências Biológicas e Biologia Geral - e das Ciências Humanas – História, Administração, Economia e Ciência Política - são importantes nesse processo.

Observou-se que temas necessários à translação do conhecimento para o SUS – instituições como a Conitec, a Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), a Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (Rebrats) - e suas respectivas atribuições eram desconhecidas pelos pesquisadores. Atividades vinculadas ao setor produtivo, como produção de lote piloto com Boas Práticas de Fabricação (BPF), brochuras para solicitação de cadastros e registros Anvisa e Inmetro e pesquisas clínicas com equipamentos com BPF – cenários inerentes ao ambiente favorável à inovação - não eram sistematizadas. A integração desses temas no processo de desenvolvimento e produção do equipamento Rapha deu-se à medida que foram problematizados com apoio da saúde coletiva.

Notou-se que a falta de discussões vinculadas aos temas supracitados demonstrava imaturidade acadêmica e riscos reais para o fechamento do ciclo completo para o equipamento Rapha, reforçando o ciclo vicioso apenas produzir protótipos inteligentes sem nenhum apelo comercial e, ainda, sem nenhuma aderência às reais necessidades em saúde. Nesse sentido, visando à redução dessas lacunas de conhecimento, dois grandes desafios foram enfrentados: inserir no seu cronograma de atividades tarefas que incluíssem o processo de interdisciplinaridade em ciência, tecnologia e inovação; incluir na agenda desse desenvolvimento questões de âmbitos políticos, econômicos e sociais, trazendo para a pesquisa a influência dos gestores públicos em saúde, órgãos reguladores, mercado e promoção em saúde. Observou-se que a coordenação do projeto Rapha articulou-se para superar essas dificuldades, incentivando os profissionais da saúde coletiva para suprimir essas lacunas de conhecimento.

A saúde coletiva se posicionou como facilitadora de processos para o desenvolvimento da tecnologia, quando chamou para si a responsabilidade de incentivar as mudanças de comportamento do grupo desenvolvedor uma vez que proporcionou ações práticas de integração das áreas do conhecimento entre si com gestores públicos, iniciativa privada e aspectos sociais em saúde. A saúde coletiva articulou essa mudança diminuindo distâncias: i. promoveu atividades de caráter interdisciplinar; ii. problematizou metas com os gestores de saúde e iniciativa privada; e iii. introduziu aspectos econômicos e sociais da tecnologia. Ações que possibilitam como desfechos o aumento de chances de assimilação da tecnologia dura pelo SUS, gradativamente, inseriram nos contextos do desenvolvimento do equipamento Rapha a importância em estudar processos saúde-doença para o recorte epidemiológico concomitantemente aos mapas de assimilação de tecnologia pelo SUS, o qual necessariamente é intermediado pela iniciativa privada.

A figura 1 apresenta a contribuição da saúde coletiva no contexto do desenvolvimento de tecnologia dura com perspectiva de assimilação pelo SUS.

Figura 1
Organograma de ação vinculada à saúde coletiva na produção de tecnologias duras

A capacidade da saúde coletiva em se articular com a realidade da assistência de baixa, média e alta complexidade no SUS e seu trânsito dentro e fora do cenário tradicionalmente reconhecido como setor saúde lhe credenciou para inserir nas atividades do projeto Rapha ações que privilegiassem a interação entre áreas do conhecimento (interdisciplinaridade) e prospecções e estudos de impactos econômicos e sociais (assimilação pelo SUS). Atender às condições da Conitec, dialogando com a Rebrats e SAS, foram aspectos que a saúde coletiva identificou e priorizou como necessários no contexto do desenvolvimento de equipamento Rapha.

Neste trabalho, a partir do envolvimento da saúde coletiva, observou-se que identificar, catalogar e executar ações que atendessem às condições das diretrizes dos órgãos vinculados ao processo de incorporação de tecnologias no SUS são práticas que deveriam caminhar pari passu aos procedimentos de bases eletrônicas e biomédicas que almejam levar as pesquisas de tecnologias duras realizadas em bancada aos leitos dos sistemas de saúde.

Todos profissionais no mesmo plano

Circuitos eletrônicos, luz de LED, lâminas e/ou curativos de látex, cicatrização e/ou regeneração tecidual, desbridamento de feridas, níveis glicêmicos, processos saúde-doença, revisão sistemática, epidemiologia, políticas públicas em saúde, sistemas de saúde, orçamento financeiro, Anvisa, Conitec, Rebrats e SAS representam ações que ocorreram no dia a dia das atividades vinculadas ao desenvolvimento do equipamento Rapha. No afã dos acontecimentos, em busca da transformação da ideia em um produto que fosse compatível com o ordenamento regulatório e mercadológico que, conforme o estudo de caso, ocorreu dentro dos laboratórios da UnB, percebeu-se a dificuldade em dividir todas tarefas em ‘caixinhas’ separadas e sobrepostas.

Observou-se que a tendência foi aplicar processos metodológicos que pudessem, com certa regularidade, traçar um fio condutor comum que sintonizasse no mesmo padrão o maior número de colaboradores durante o maior tempo possível. Essa metodologia foi amparada pelo processo de pesquisa interdisciplinar em ciência, tecnologia e inovação e, conforme Paul2828 Paul P. Pensamento complexo e interdisciplinaridade: abertura para mudança de paradigma? In: Philippi Jr A, Silva Neto AJ. Interdisciplinaridade em ciência, tecnologia & inovação. Barueri: Manole; 2011.(236),

a riqueza dessa abordagem é, em particular, a de abrir para a multirreferencialidade. Isso supõe uma pluralidade de corpus, de modelos, de representações que oferecem esclarecimentos diferentes, contrários ou contraditórios uns aos outros.

Averiguou-se que a saúde coletiva operacionalizou ações práticas visando à integração e trocas de experiências entre profissionais multiáreas institucionalizados no projeto Rapha. A primeira resumiu-se na realização de 12 eventos divididos em seminários, workshops, miniworkshops e apresentações organizados por colaboradores do projeto e se relacionavam a algum recorte naquele momento em andamento na pesquisa. Essa iniciativa objetivou a aproximação entre graduandos, mestres, doutores, professores, gestores públicos, pacientes, profissionais liberais e representantes da iniciativa privada para, juntos, discutirem assuntos específicos envolvendo temas como a parte elétrica do equipamento, o curativo de látex, patentes, produção de protótipos, pesquisas pré-clínicas e clínicas e processos de assimilação pelo sistema de saúde. Os resultados foram satisfatórios à medida que a interdisciplinaridade foi cultuada, na prática, pelos integrantes dos grupos focados no desenvolvimento da tecnologia dura.

Entrementes, este esforço nominado ‘atividades de pesquisa’ foi pensado e aplicado pela saúde coletiva no contexto do desenvolvimento da tecnologia dura visando condicionar as áreas de conhecimento para trabalhar em conjunto. Essa atividade tornou a discussão interdisciplinar uma rotina no desenvolvimento do equipamento Rapha por ter sido ‘compulsória’ para todos os bolsistas.

Mesas redondas: debates e discussões

Outra iniciativa implementada pelos profissionais da saúde coletiva visando à interação entre as áreas envolvidas, conforme observado, foi a tentativa, por meio de ‘reuniões presenciais’, de gerar ambiente favorável ao diálogo entre o corpo científico responsável pelo desenvolvimento tecnológico e a iniciativa privada. Essa aproximação entre universidade e iniciativa privada, no caso do equipamento Rapha, deu-se por dois motivos principais: 1) conseguir entabular contato com empresas que juntassem condições em produzir o lote piloto do equipamento Rapha com BPF, condição sine qua non para alcançar os registros e cadastros Anvisa/Inmetro, etapa considerada anterior à da submissão da tecnologia dura à Conitec; e 2) iniciar processos de licenciamentos tecnológicos com empresas interessadas em produzir o equipamento em escala industrial. Gestores treinados em contemplar vários ângulos em diferentes organizações e instituições ligadas ao setor saúde, os sanitaristas, operacionalizaram essa atividade.

Na prática, percebeu-se que fica a cargo do grupo de pesquisa a realização do desenvolvimento científico e tecnológico, os testes clínicos com equipamentos produzidos com BPF, procedimentos de cadastros e registros Anvisa/Inmetro e o processo de assimilação da tecnologia dura no SUS. Por isso, a participação da universidade não se limita somente às questões acadêmicas e científicas. O grupo de pesquisa responsável pela parceria com o governo necessita agregar maturidade e, dentro do escopo do projeto, inserir tarefas que correspondam às interações com as empresas e agências reguladoras.

Foram realizadas, em perspectiva do projeto Rapha, aproximadamente 70 reuniões presenciais discutindo, além da prospecção de empresas para prestar serviços ao projeto e produzir industrialmente a tecnologia dura, temas vinculados ao desenvolvimento científico e tecnológico e aqueles vinculados à promoção e prevenção em saúde. Observou-se que essa maratona de encontros patrocinados pela saúde coletiva gerava cada vez mais condições salutares para a implementação da hélice tríplice2929 Leydesdorff L, Etzkowitz H. The Triple Helix as a model for innovation Studies. Science and Public Policy [internet]. 1998 [acesso em 2019 ago 15]; 25(3):195-203. Disponível em: https://academic.oup.com/spp/article-abstract/25/3/195/1630936#.
https://academic.oup.com/spp/article-abs...
e para entendimento da necessidade em gerar dados como impactos econômicos e sociais do uso da tecnologia dura. Ao realizarmos análise documental vinculada às reuniões presenciais, como as chamadas para tais encontros, listas de presença, imagens destas e atas sobre os temas discutidos e decisões tomadas, observou-se a evolução conceitual do projeto Rapha na perspectiva de transformar uma ideia em um equipamento assimilável pelo SUS.

Visitas técnicas: alinhamento de condutas

Outra unidade de análise utilizada neste trabalho foi a denominada ‘visitas técnicas’. A expectativa de demonstrar os resultados alcançados pelo grupo de pesquisa vinculado ao projeto Rapha aos gestores públicos financiadores e técnicos, representados pelo FNS e Deciis, que não participavam das constantes reuniões, consolida-se à medida que ocorrem encontros entre as partes, o que não era por si só uma tarefa trivial. As visitas técnicas tinham um caráter formal e excepcional e foram realizadas como método de aproximação entre a universidade e o MS e vice-versa. Conforme auferido pelas observações participantes e análise textual, percebeu-se que a área da saúde coletiva, apoiada em sua experiência em políticas públicas em saúde e planejamento e gestão de sistemas de saúde, converteu as visitas técnicas em ambientes de discussão de estratégias para o bom desenvolvimento do projeto Rapha. Nesse recorte, a saúde coletiva explorava minuciosamente assuntos envolvendo o processo de assimilação da tecnologia dura para o tratamento do pé diabético na cobertura do SUS. Nestas ocasiões, os gestores públicos em saúde vinculados ao MS traziam gradativamente novas informações sobre o mapa de inserção de equipamento para a grade do SUS.

Observou-se que as visitas técnicas dependiam quase exclusivamente de logística e articulação política. Logística por ter que apresentar resultados empíricos que comprovassem o avanço material da pesquisa (metas alcançadas) - o que implicava a preparação do grupo de pesquisa e demonstração de eficiência e eficácia do equipamento - e articulação política pelo fato de não ser usual, por exemplo, a participação do FNS neste tipo de reunião, visto que este não possui competência na parte técnica, mas somente na parte financeira.

Na ocasião das visitas técnicas, temas específicos imbricados no processo de assimilação da tecnologia dura pelo SUS foram gradativamente se naturalizando como atividades obrigatórias dentro da pesquisa do equipamento Rapha. Analisando o corpo documental gerado pelas visitas técnicas, notou-se que a saúde coletiva, com sua expertise em processos e gestão de sistemas de saúde, conseguia extrair informações precisas para auxiliar nos reajustes constantes realizados nas atividades do projeto Rapha a fim de atender às demandas da Conitec, como preparar material que demonstre os impactos econômicos e sociais desta tecnologia em saúde.

Conclusões

O estudo apresentado demonstrou complexidade do ponto de vista metodológico, em particular no que se refere à recolha de dados. Entretanto, a opção metodológica aplicada apresentou-se a mais adequada no momento de estabelecer o problema e as questões de investigação. Não obstante, na análise de dados, constatou-se que a UnB possui know-how para o desenvolvimento de tecnologia dura para o tratamento e cura do pé diabético, todavia demonstra pouca experiência em transformar este ativo em produto assimilável pelo sistema de saúde e que a saúde coletiva apresentou contribuições valiosas para diminuir as dificuldades do grupo de pesquisa desenvolvedor em entender e interpretar as condições para a incorporação do equipamento Rapha na cobertura do SUS por meio da iniciativa privada. Conclui-se que o baixo índice de incorporação de tecnologias duras advindas da universidade pelo sistema de saúde ocorre menos pela maturidade do desenvolvimento científico e tecnológico e mais pela escassa relação entre os fazeres e práticas do grupo de pesquisa com os ditames da iniciativa privada e as recomendações solicitadas pelos órgãos reguladores e corresponsáveis pelos processos de incorporação.

Nos documentos analisados e experiências vivenciadas, observaram-se o protagonismo da engenharia biomédica e o envolvimento das áreas da saúde, biológicas e ciências humanas no processo de desenvolvimento científico e tecnológico, inclusive demonstrando que, para equipamentos médicos, esse modelo é eficaz. Entretanto, a interação entre essas áreas era pendular, o que representava, por um lado, a funcionalidade do protótipo e, por outro, a ausência de requisitos básicos para atender às solicitações dos órgãos reguladores e do próprio SUS. Essa característica pode justificar a grande quantidade de protótipos funcionais sendo produzidos pelas universidades que não possuem condição de chegar aos leitos dos hospitais simplesmente pelo fato de que não foi pensado como – na origem da pesquisa – atender aos requisitos básicos atinentes de mercado e sistemas de saúde.

Constatou-se que exercícios de integração entre os atores sociais envolvidos, a exemplo das ‘atividades de pesquisa’, ‘reuniões presenciais’ e ‘visitas técnicas’, fortaleceram os vínculos entre as áreas de conhecimento, gerando maior aproximação entre pesquisa de base tecnológica e biomédica com as regras de mercado e de incorporação no sistema de saúde. Os seminários, workshops, miniworkshops e apresentações organizados para debater temas relevantes e multivariados da pesquisa do equipamento Rapha geraram ambiente favorável à interdisciplinaridade. As numerosas reuniões presenciais, em formato de mesas redondas, colocavam frente a frente lados opostos com críticas e desabafos que, em regra, resultavam em soluções de problemas pontuais. Ademais, as visitas técnicas elevaram a discussão para o ponto de inflexão: a tecnologia dura que tem objetivo de entrar na cobertura do SUS precisa passar pelo crivo da iniciativa privada (registros e cadastros Anvisa/Inmetro) e da Conitec (impactos econômicos e sociais, revisão sistemática e outras evidências científicas). Em todas essas ocasiões, insights preenchiam gradativamente as lacunas existentes no ambiente de inovação para o desenvolvimento de tecnologia dura com viés mercadológico. Conclui-se que a saúde coletiva teve papel preponderante na habilitação das integrações realizadas a partir das atividades acima elencadas.

No contexto geral, é preciso que a universidade insira na gênese de seu projeto de pesquisa para produção de tecnologias duras atividades com metas que deem conta da produção do lote piloto com boas práticas de fabricação; brochuras para atender às determinações da Anvisa; realização da pesquisa clínica em humanos com perspectiva de mercado; e estratégias para serem bem avaliados nos controles de incorporação de tecnologias no SUS. Vale ressaltar que a pesquisa do equipamento Rapha ainda não encerrou sua vigência e que, no futuro próximo, poderemos divulgar o desfecho deste esforço acadêmico, científico e tecnológico em formato de narrativa científica.

Conclui-se que a saúde coletiva, por estar contida na grande área ciências da saúde e possuir conhecimentos científicos sobre políticas de saúde, planejamento e gestão de sistemas e serviços de saúde para o estudo de caso em tela, trouxe dinâmica importante na inter-relação entre a bancada e o leito do SUS, alinhando no mesmo contexto racionalidades médico-sanitárias e científico-tecnológicas.

  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
  • Suporte financeiro: Programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias em Saúde (PPG-CTS), Faculdade de Ceilândia (FCE), Universidade de Brasília (UnB)). Bolsa do Programa Nacional de Pós-Doutorado – PNPD/Capes (2018-2019). Ministério da Saúde – Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Nov 2019

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2019
  • Aceito
    26 Set 2019
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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