Meu corpo, minhas regras: mulheres na luta pelo acesso ao serviço público de saúde para a realização do aborto seguro

Simone Dalila Nacif Lopes Maria Helena Barros de Oliveira Sobre os autores

RESUMO

Os direitos humanos são vinculados à luta pela dignidade humana, contexto em que os feminismos, movimentos sociais de luta pela superação das diferenças de gênero, raça e classe, devem se vincular às batalhas dos demais grupos oprimidos. O Código Penal criminaliza o aborto, excetuando quando a gravidez é oriunda de estupro, quando há risco de morte para a gestante ou em caso de gravidez de feto anencéfalo. Apesar da proibição, o aborto não deixa de ser realizado em todos os grupos sociais e raciais, níveis de escolaridade e religiões, consistindo em um dos maiores problemas de saúde pública do País. A luta pelo direito de acesso ao aborto seguro se faz cotidianamente inclusive quando se trata do aborto legal – que já é um direito reconhecido e positivado pelo Estado. Uma vez que, para além da insuficiência dos serviços de saúde que realizam o procedimento, não há adequada capacitação técnica, a objeção de consciência ocorre com frequência, e estigmas e preconceitos rodeiam a questão, contaminando até a norma legal produzida por um Estado laico.

PALAVRAS-CHAVE
Aborto; Direitos humanos; Feminismo

Introdução

É possível afirmar que o acesso ao serviço público de saúde para a realização do aborto de forma segura se inclui entre os direitos humanos das mulheres?

Pretende-se responder afirmativamente a essa indagação, caracterizando o acesso ao serviço público para a realização do aborto seguro como um direito relacionado com a saúde reprodutiva e sexual e com a vida das mulheres, imanente à sua condição de seres humanos com autonomia sobre seus corpos.

Com atenção para a história de organização e luta pelos direitos, as mulheres sempre construíram e conquistaram o reconhecimento de seus direitos na resistência em movimentos populares, enfrentando insurgentemente o direito positivado e fazendo valer suas reivindicações oficialmente negadas pelo Estado ao longo da história.

A criminalização do aborto não impede sua prática, mas cria obstáculos de acesso ao serviço público de saúde, com sérios riscos à integridade física e à vida das mulheres que não podem pagar pelo procedimento.

O acesso ao serviço público de saúde para a realização do aborto seguro é um direito a ser insurgentemente construído pelos movimentos sociais de luta pela emancipação das mulheres, grupo historicamente subalternalizado na sociedade capitalista e patriarcal.

Desde tempos remotos, as mulheres integram um grupo subalternalizado e submetido à opressão nas mais diversas formas de organização social. Nesse contexto, o patriarcado apresenta-se como ideologia dominante e estrutural, cuja feição mais perversa se expressa com o advento do capitalismo, conforme demonstrado por Shiva11 Shiva V. El feminismo tiene que luchar para acabar con el capitalismo [internet]. El Español. 2018 jan 26. [acesso em 2018 abr 4]. Disponível em: https://www.elespanol.com/cultura/20180126/vandana-shiva-feminismo-luchar-acabar-capitalismo/279973188_0.html.
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, ao passo que os feminismos se apresentam como movimentos sociais de luta pela emancipação e redução de desigualdades.

Rubin22 Rubin G. Políticas do sexo. 3. ed. São Paulo: Ubu; 2017.(10) ressalta que as mulheres se inserem na definição mesma do capitalismo, situadas no “processo pelo qual o capital é produzido pela extração da mais-valia sobre o trabalho pelo capital”.

Mencionando Adam Smith, Marx33 Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos. 4. ed. São Paulo: Boitempo; 2010. Reimpressão define o capital como trabalho armazenado revertido no poder de governo sobre trabalho e produto ao qual nada pode se opor. Segundo Rubin22 Rubin G. Políticas do sexo. 3. ed. São Paulo: Ubu; 2017., o poder do capital sobre o trabalho e sobre o produto se amplia na sociedade concretamente reproduzindo a relação de poder ao coisificar tudo e todos para sua conversão em capital.

O capitalista transforma o dinheiro em matérias que servirão para a criação de produtos ou se converterão em fatores do processo de trabalho, incorporando força viva de trabalho e transformando “o valor – o trabalho passado, objetivado, morto – em capital, em valor que se autovaloriza”33 Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos. 4. ed. São Paulo: Boitempo; 2010. Reimpressão(271).

Essa valorização advém da exploração pelo capitalista da força de trabalho, na medida em que o salário do trabalhador equivale à meia jornada, suficiente para sua sobrevivência em 24 horas. Porém, sua produção refere-se a uma jornada inteira de trabalho.

É isso que gera o mais-valor.

Como é necessário, entretanto, que a força de trabalho seja contínua e sendo o trabalhador finito, o salário também tem de ser suficiente para sustentar a família do trabalhador, os filhos que o substituirão, como diagnosticado por Marx44 Marx K. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo; 2013.. O salário, segundo Rubin22 Rubin G. Políticas do sexo. 3. ed. São Paulo: Ubu; 2017., é usado para a aquisição de mercadorias a serem revertidas, por meio de um trabalho adicional, para essa subsistência e reprodução do trabalhador.

É preciso que alguém cozinhe os alimentos, lave e passe as roupas e limpe a casa entre outras tarefas. Ou seja, o trabalho doméstico, não remunerado, consiste em um trabalho adicional e em “elemento chave (sic) no processo de reprodução do trabalhador de quem se tira a mais-valia”22 Rubin G. Políticas do sexo. 3. ed. São Paulo: Ubu; 2017.(14), visto que barateia a força de trabalho. É dizer que o tempo não remunerado destinado ao trabalho doméstico para a subsistência do trabalhador valoriza o capital.

Segundo Federici55 Federici S. Notas sobre gênero em O Capital de Marx. Cadernos Cemarx. 2018; 3(10):83-111., esse trabalho doméstico realizado pelas mulheres, depreciado e naturalizado, foi o pilar da organização capitalista do trabalho.

No entanto, por que são as mulheres, e não os homens, que geralmente executam as tarefas domésticas? Para Rubin22 Rubin G. Políticas do sexo. 3. ed. São Paulo: Ubu; 2017., citando Marx44 Marx K. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo; 2013., as necessidades imediatas são produtos históricos que dependem não apenas do nível de cultura do país, mas das condições, costumes e exigências com que a classe trabalhadora se formou em um determinado local. “Diferentemente das outras mercadorias, a determinação do valor da força de trabalho contém um elemento histórico e moral”44 Marx K. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo; 2013.(246).

Esse elemento histórico e moral, segundo Rubin22 Rubin G. Políticas do sexo. 3. ed. São Paulo: Ubu; 2017., instaurou no capitalismo um arcabouço cultural de formas de masculinidade e feminilidade que amparam a opressão sexista.

Realça Saffioti66 Saffioti H. Patriarcado-capitalismo: Heleieth Saffioti a partir de "A Ideologia Alemã" [internet]. Lavra Palavra. 2012. [acesso em 2018 nov 28]. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2016/02/12/patriarcado-capitalismo-heleieth-saffioti-a-partir-de-a-ideologia-alema/.
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, que Marx44 Marx K. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo; 2013. encara os determinantes sociais das mulheres como decorrências de um regime de produção sustentado na opressão do homem pelo homem, impondo-se, na ótica da autora, a superação dessa fase capitalista da humanidade que ela chama de pré-histórica.

É certo que a submissão das mulheres aos homens não é uma peculiaridade do capitalismo, já que ocorreu em sociedades que jamais poderiam ser classificadas como capitalistas e desde muito antes do cercamento de terras.

Entretanto, no capitalismo, essa supremacia masculina se aperfeiçoou e se enraizou em todas as relações sociais, a começar pela família, que realiza, segundo Cisne, o papel ideológico na difusão do conservadorismo promovendo sua internalização por meio da educação das crianças77 Cisne M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez; 2014..

Engels88 Engels F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular; 2012 descreveu esse processo como o desmoronamento do direito materno e “grande derrota do sexo feminino em todo o mundo”88 Engels F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular; 2012(77). Segundo ele, o homem apoderou-se também da direção da casa, degradando e convertendo a mulher em servidora, escrava da luxúria e mero instrumento de procriação. Essa degradação da mulher manifesta-se desde período da Antiguidade Clássica, mas vem-se aperfeiçoando dissimuladamente no decorrer dos tempos.

Federici99 Federici S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante; 2017. menciona o processo de degradação social pelo qual as mulheres passaram nos séculos XVI e XVII como fator determinante para a sua desvalorização enquanto trabalhadoras e privadas de toda a sua autonomia com relação aos homens, denunciando que

uma dessas áreas-chave pela qual se produziram grandes mudanças foi a lei. Aqui, nesse período, é possível observar uma constante erosão dos direitos das mulheres99 Federici S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante; 2017.(199).

É bem de ver que, na sociedade burguesa, as relações se estabelecem de forma autoritária e patriarcal e se sustentam nas exclusões e opressões cotidianas, como afirmado por Federici99 Federici S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante; 2017.. Para a autora, as mulheres se encontram na condição de subalternalizadas desde o cercamento de terras, e mais ainda as mulheres pobres, para cuja emancipação, precisam superar o patriarcado e o capitalismo que são, como afirma Saffioti1010 Saffioti H. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes; 1976. v. 4., duas faces de um mesmo modo de produzir e reproduzir a vida. Segundo Federici99 Federici S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante; 2017., com o capitalismo, a subalternalização das mulheres se aprofunda.

Verifica-se, pois, que a emancipação das mulheres e, consequentemente, a superação do patriarcado devem, necessariamente, passar pela consciência da luta de classes, pelo esforço da diminuição das desigualdades sociais, pela extinção dos privilégios de uns à custa do sacrifício de muitos. Como afirma Baldez1111 Baldez ML. Sobre o papel do direito na sociedade capitalista direito insurgente. Petrópolis-RJ: Centro de Defesa dos Direitos Humanos - Gráfica Serrana Ltda; 1989. [acesso em 2019 dez 12]. Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/24135779/Miguel-Lanzellotti-Baldez-Sobre-o-papel-do-direito-na-sociedade-capitalista-direito-insurgente.
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, “na essência, a luta pelos direitos do homem e da mulher é uma luta contra o capital”.

O patriarcado reflete as típicas relações sociais autoritárias que são centradas na supremacia masculina. Saffioti66 Saffioti H. Patriarcado-capitalismo: Heleieth Saffioti a partir de "A Ideologia Alemã" [internet]. Lavra Palavra. 2012. [acesso em 2018 nov 28]. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2016/02/12/patriarcado-capitalismo-heleieth-saffioti-a-partir-de-a-ideologia-alema/.
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retrata o patriarcado como um “processo de sujeição de uma categoria social com duas dimensões: a da dominação e a da exploração”. A ordem patriarcal é garantida por todos, inclusive pelas mulheres e pelos subalternalizados, que também exercem, em uma ou em outra situação, o papel de dominadores, eternizando a concepção patriarcal de relações sociais baseadas na subordinação.

Cisne77 Cisne M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez; 2014. descreve um processo de alienação que produz a naturalização da dominação e exploração, fazendo penetrar na consciência individual a ideologia dominante, patriarcal-racista-capitalista.

Nessa perspectiva de subalternalidade característica da sociedade capitalista, a luta das mulheres pela emancipação não pode se desvencilhar das lutas dos demais grupos oprimidos, como os trabalhadores, os que não conseguem se inserir no mercado de trabalho, os negros e os grupos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, com o fim de romper com a ideologia patriarcal, superando em si a naturalização da subalternalidade e abrindo caminho para pensar e agir de forma transformadora e libertadora.

Para tanto, segundo Cisne77 Cisne M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez; 2014., há que se formar uma consciência militante feminista que está radicalmente articulada com a formação de um sujeito coletivo para a afirmação de direitos.

É imperiosa a percepção da mulher como sujeito de direitos, o que exige a ruptura com as mais variadas formas de apropriação e com as alienações daí provenientes, notadamente com a naturalização da subserviência que é atribuída socialmente às mulheres.

Superando essa ideologia dominante, especialmente em sua condição objetificada e alienada pela apropriação patriarcal, Cisne77 Cisne M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez; 2014.(152)entende possível, pelos movimentos de mulheres, chegar à dimensão coletiva da consciência militante. É dizer “uma forte consciência solidária” mantida no enfrentamento pela ação coletiva e organizada, pois “se a prática não reforça a consciência, perde-se o caráter coletivo da ação, que se desorganiza como movimento”1111 Baldez ML. Sobre o papel do direito na sociedade capitalista direito insurgente. Petrópolis-RJ: Centro de Defesa dos Direitos Humanos - Gráfica Serrana Ltda; 1989. [acesso em 2019 dez 12]. Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/24135779/Miguel-Lanzellotti-Baldez-Sobre-o-papel-do-direito-na-sociedade-capitalista-direito-insurgente.
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(15).

A construção do feminismo como sujeito político das mulheres passa pela transformação das reivindicações imediatas e isoladas em uma formulação coletiva da demanda, [conclui Cisne]77 Cisne M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez; 2014.(154).

Vale dizer, segundo a autora,

[...] com a formação da consciência militante feminista, as mulheres percebem que a sua autonomia e liberdade demandam a luta contra uma estrutura de relações sociais de apropriação e exploração77 Cisne M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez; 2014.(154).

Aborto: espaço de lutas

Entre as mais diversas e variadas reivindicações e lutas dos feminismos, a descriminalização do aborto e o correspondente acesso ao serviço público de saúde são emblemáticos.

O ordenamento jurídico brasileiro assegura a igualdade entre homens e mulheres, o acesso à saúde, o resguardo da vida e da liberdade, assim como garante a autodeterminação dos corpos. Todavia, igualmente, em seu Código Penal (arts. 124 a 127)1212 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 124.306 Relator para o Acórdão: Luís Roberto Barroso, 29 nov 2016 [internet]. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/hc124306lrb.pdf.
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, criminaliza o aborto que não seja em gravidez oriunda de estupro, com risco de morte para a gestante ou em caso de gravidez de feto anencéfalo (decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54).

Apesar da proibição, o aborto não deixa de ser realizado, como constata a Pesquisa Nacional do Aborto 2016 (PNA), coordenada por Debora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro, segundo a qual o aborto é um fenômeno frequente e persistente em todas as classes sociais, grupos raciais, níveis de escolaridade e religiões, contatando-se que 1 em cada 5 mulheres, aos 40 anos, já realizara um aborto.

Já o relatório elaborado pelo Guttmacher Institute, 'Abortion Worldwide 2017: uneven Progress and unequal access'1313 Singh S, Remez L, Sedgh G, et al. Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access [internet]. USA: Guttmacher Institute; 2017. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: https://www.guttmacher.org/report/abortion-worldwide-2017.
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– 'Aborto ao redor do mundo: progresso e acesso desiguais', em uma tradução livre –, explicita que a cada 1.000 mulheres com idade entre 15 e 44 anos em todo o mundo ocorrem 35 abortos por ano. A taxa nas regiões e países desenvolvidos é significativamente menor (27 abortos por 1.000 mulheres) quando comparados com as regiões e países em desenvolvimento (36 abortos por 1.000 mulheres). Regionalmente, a maior taxa de aborto estimada é na América Latina e no Caribe (44 abortos por 1.000 mulheres), e as taxas mais baixas estão na América do Norte e na Oceania (17 e 19 por 1.000 respectivamente).

Singh et al.1313 Singh S, Remez L, Sedgh G, et al. Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access [internet]. USA: Guttmacher Institute; 2017. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: https://www.guttmacher.org/report/abortion-worldwide-2017.
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evidenciam que abortos realizados apenas com uso do misoprostol estão aumentando em países com leis restritivas, como é o caso do Brasil.

Conforme o 'Relatório Abortion Worldwide'1313 Singh S, Remez L, Sedgh G, et al. Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access [internet]. USA: Guttmacher Institute; 2017. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: https://www.guttmacher.org/report/abortion-worldwide-2017.
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, a disponibilidade de medicação combinada (mifepristone seguido de misoprostol) para a realização do aborto confere uma escolha altamente eficaz às mulheres dos países onde o aborto é amplamente legal. Essa opção, porém, está fora do alcance das 687 milhões de mulheres em idade reprodutiva que vivem onde o aborto é severamente restrito, onde apenas estará disponível o misoprostol – medicamento originariamente destinado ao tratamento de úlceras gástricas, mas com eficácia no abortamento medicamentoso.

Segundo Silva et al.1414 Silva FPR, Ramos MS, Partata AK. Misoprostol: propriedades gerais e uso clínico. Rev. Científica do ITPAC. 2013; 6(4):1-10., foi descoberta a ação abortiva – ocitócita – do misoprostol verificando-se que o medicamento estimula o útero induzindo a contrações e ao alargamento do colo uterino, sendo igualmente utilizado no tratamento e prevenção de hemorragias obstétricas. Aplicado de forma correta e com dosagem adequada, consiste em um meio seguro e eficiente para a realização do aborto.

Entretanto, conforme o 'Relatório Abortion Worldwide'1313 Singh S, Remez L, Sedgh G, et al. Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access [internet]. USA: Guttmacher Institute; 2017. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: https://www.guttmacher.org/report/abortion-worldwide-2017.
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, comparado com o protocolo de medicação combinada, o uso do misoprostol sozinho tem maior probabilidade de resultar em aborto incompleto e em gestação contínua, mesmo quando usado corretamente, resultando em aborto completo em 75%-90% dos casos; enquanto as taxas de eficácia comparáveis para o protocolo de medicação combinada em nove semanas estão entre 95% e 98%. Assim, a Organização Mundial da Saúde e a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia recomendam o uso do misoprostol sozinho somente quando o mifepristone não estiver disponível.

A pesquisa enumera múltiplos métodos clandestinos de aborto, ao redor do mundo, que apresentam alto risco à saúde, à incolumidade física e à vida das mulheres que vão desde inserção na vagina ou no colo do útero de objetos pontiagudos, ervas maceradas e líquidos ¬– passando pela ingestão de laxantes, bebidas, detergentes, alvejantes e afins – até a manipulação do abdômen, massageando ou batendo, atividade física traumática ou lesiva ou experimentar outras técnicas folclóricas, como inserir um tubo para soprar ar no útero para induzir o parto ou colocar uma pedra quente no abdômen para “derreter” o feto1313 Singh S, Remez L, Sedgh G, et al. Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access [internet]. USA: Guttmacher Institute; 2017. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: https://www.guttmacher.org/report/abortion-worldwide-2017.
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(22).

Essa ampla gama de métodos de aborto clandestino – altamente arriscados – estreitou-se principalmente para o uso do misoprostol como abortivo medicamentoso. No final da década de 1980, médicos brasileiros, pioneiramente, perceberam resultados clínicos no tratamento de mulheres que haviam aprendido sobre o misoprostol de boca em boca e receberam atendimento hospitalar no pós-aborto. A ocorrência de sintomas menos severos entre pacientes pós-aborto foi atribuída ao uso cada vez mais amplo do misoprostol sozinho como método medicamentoso abortivo, de acordo com o 'Relatório Abortion Worldwide'1313 Singh S, Remez L, Sedgh G, et al. Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access [internet]. USA: Guttmacher Institute; 2017. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: https://www.guttmacher.org/report/abortion-worldwide-2017.
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Zordo1515 Zordo S. A biomedicalização do aborto ilegal: a vida dupla do misoprostol no Brasil. História Ciênc. Saúde. 2016; 23(1):19-35. assevera que o misoprostol operou uma 'revolução' no trabalho dos obstetras-ginecologistas e na vida de muitas mulheres, dada a segurança e eficácia no uso do medicamento, diminuindo as taxas de morbidade e mortalidade materna em países com leis restritivas ao aborto. Não obstante, “metade das mulheres que abortou precisou ser internada para o finalizar”1616 Diniz D, Medeiros M, Madeiro A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2019 dez 10]; 22(2):653-660. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017000200653&script=sci_abstract&tlng=pt.
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, o que revela os riscos subsistentes à vida e à saúde das mulheres.

Apesar disso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) editou a Resolução (RE) nº 7531717 Brasil. Ministério da Saúde. Resolução-RE nº 753 de 17 de março de 2017 [internet]. Diário Oficial da União. 18 Mar 2017 [acesso em 2019 fev 7]. Disponível em: http://imprensanacional.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/20114421.
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proibindo a distribuição, divulgação e comercialização do misoprostol, o que configura obstáculo ao acesso à informação, com sérias consequências inclusive para as mulheres que têm direito a realizar o aborto legal, como no caso de gravidez resultante de estupro que, sem informação sobre a medicação, acabam submetendo-se a procedimentos mais dispendiosos, longos e arriscados, muitas vezes com sofrimento físico em verdadeira violência obstétrica segundo González Vélez1818 González Vélez AC. La economía moral de las normas restrictivas sobre aborto en América Latina: vidas ilegítimas o de cuando la propia norma es la violación [dissertação] [internet]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2018..

Zordo1515 Zordo S. A biomedicalização do aborto ilegal: a vida dupla do misoprostol no Brasil. História Ciênc. Saúde. 2016; 23(1):19-35. ressalta que, sem acesso fácil a informações sobre os regimes seguros de dosagem do Misoprostol, as mulheres usam outros abortivos, dependendo de serviços de atenção pós-aborto em maternidades públicas, onde frequentemente enfrentam estigmatização e discriminação.

González Vélez1818 González Vélez AC. La economía moral de las normas restrictivas sobre aborto en América Latina: vidas ilegítimas o de cuando la propia norma es la violación [dissertação] [internet]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2018. acrescenta que essa regulamentação do misoprostol dissemina outras restrições como a notificação obrigatória pelos do uso de drogas com o princípio ativo do misoprostol, a suspensão da publicidade e da discussão ou, até mesmo, a proibição de mensagens sobre o medicamento em sites de internet.

Nesse contexto, a PNA de 2016 demonstra que a criminalização não atende à finalidade declarada na norma:

Por um lado não é capaz de diminuir o número de abortos e, por outro, impede que as mulheres busquem o acompanhamento e a informação de saúde necessários para que seja realizado de forma segura ou para planejar sua vida reprodutiva a fim de evitar um segundo evento desse tipo1616 Diniz D, Medeiros M, Madeiro A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2019 dez 10]; 22(2):653-660. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017000200653&script=sci_abstract&tlng=pt.
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A proibição demarca a desigualdade social: as mulheres pobres não podem obter o serviço pela via remunerada, enquanto aquelas oriundas das classes dominantes gozam do privilégio da informação, têm acesso aos medicamentos seguros e, ainda, podem pagar pela intervenção asséptica em estabelecimentos hospitalares seguros e a salvo de desdobramentos policiais indesejados.

As mulheres oriundas das classes pobres suportam o deficit social em situação subalterna perante todos os homens e todas as mulheres das classes privilegiadas. Como ressalta Franco1919 Franco M. A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada. In: Bueno W, Pinheiro-Machado R, Burigo J, et al. editores. Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil. Parte II: Impeachment e resistência. Porto Alegre: Zouk; 2017. p. 89-95., o machismo histórico e institucional é base da formação social brasileira; porém, as mulheres negras e faveladas enfrentam interdição, dominação e restrição de direitos ante as demais mulheres da cidade.

A criminalização do aborto rompe com a igualdade entre homens e mulheres e aprofunda o abismo social entre as mulheres integrantes das classes dominantes e aquelas descapitalizadas.

Além disso, é inegável a situação de insegurança dos profissionais da saúde adiante da proibição legal2020 Zordo S. Representações e experiências sobre aborto legal e ilegal dos ginecologistas-obstetras trabalhando em dois hospitais maternidade de Salvador da Bahia. Ciênc. Saúde Colet. 2012; 17(7):1745-1754., sem olvidar das questões morais e religiosas que permeiam profundamente o tema.

Atenta ao ensinamento de Baratta2121 Baratta A. Criminología crítica y crítica del derecho penal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina; 2004., observa-se que a criminalização contribui para a estigmatização social das mulheres que abortam, repercutindo na disseminação de obstáculos ao acesso aos serviços públicos de saúde seja pela proibição de informação sobre o misoprostol, seja com a intimidação dos profissionais de saúde, seja pela ideologia patriarcal que acaba por embasar objeções de consciência por parte dos médicos sem pronta substituição do profissional, como demonstrado no 'Relatório Abortion Worldwide'1313 Singh S, Remez L, Sedgh G, et al. Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access [internet]. USA: Guttmacher Institute; 2017. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: https://www.guttmacher.org/report/abortion-worldwide-2017.
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Como se vê, a criminalização do aborto reflete o interesse dominante na sociedade burguesa e patriarcal. Nega o acesso ao serviço público de saúde com risco incrementado à vida das mulheres, em grave violação dos seus direitos humanos e fundamentais à autodeterminação, à decisão sobre seu planejamento familiar, à sua escolha de projeto individual, à informação, à saúde e até à vida, o que é ainda mais contundente em relação às mulheres das classes descapitalizadas, pois o Sistema Único de Saúde (SUS) é impedido de fornecer o serviço médico para abortamento fora das restritas hipóteses legais.

Meu corpo, minhas regras: mulheres na luta pelo acesso ao serviço público de saúde para realização do aborto seguro

A história da construção dos direitos das mulheres é marcada pela luta organizada em movimentos sociais. Pequenas conquistas marcadas por muito esforço e resistência enfrentando forte oposição conservadora.

Por outro lado, o direito positivado vocaciona-se à manutenção do escalonamento de classes, da subordinação e da exploração, refletindo-se nas relações patriarcais.

Diante disso, a conquista de direitos pelas mulheres opera-se desde a desobediência social – que garante, hoje, por exemplo, a possibilidade de escolher os próprios maridos – até a inserção contra-hegemônica de garantias nos textos legislativos. Nesse sentido, adverte Franco1919 Franco M. A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada. In: Bueno W, Pinheiro-Machado R, Burigo J, et al. editores. Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil. Parte II: Impeachment e resistência. Porto Alegre: Zouk; 2017. p. 89-95. que

[...] momentos de 'bem-estar social' foram passagens da história do País, mas marcam-se, fundamentalmente, por conquistas e não por concessões do poder dominante1919 Franco M. A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada. In: Bueno W, Pinheiro-Machado R, Burigo J, et al. editores. Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil. Parte II: Impeachment e resistência. Porto Alegre: Zouk; 2017. p. 89-95.(91).

Conforme Fonseca2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018., o esforço pela conquista dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres remonta a 1789, refletindo os ideais da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade2323 Bezerra J. Revolução Francesa 1789 [internet]. [acesso em 2019 fev 7]. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/revolucao-francesa/.
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, com empenho em iniciativas de libertação em várias frentes, sendo notável seu papel na luta pela abolição da escravatura.

No início do século XX, os movimentos revolucionários se proliferaram; e, com eles, as lutas das mulheres pelos seus direitos, ocupando espaços antes interditados – como as tropas nos campos de batalha –, e realizando tarefas antes consideradas exclusivas dos homens, como assinalam Melo e Thomé2424 Melo HP, Thomé D. Mulheres e poder: histórias, ideias e indicadores. Rio de Janeiro: FGV Editora; 2018..

Enfatizam o profundo impacto que das mudanças revolucionárias do início do século XX sobre as estruturas familiares de subjugo das mulheres, com avanço nos direitos civis e aceleração das reivindicações por educação e trabalho, gerando expectativas de conquistas de outros direitos e impulsionando a organização da campanha pelo sufrágio nos anos 1930.

Na Rússia, como relatam as autoras, a emancipação das mulheres passa por preceitos bolcheviques como a união livre, o trabalho assalariado e a progressiva superação e fim do modelo familiar burguês, acarretando, por consequência, uma aceleração dos direitos sexuais e reprodutivos.

Com a participação efetiva na revolução russa, as mulheres conquistaram o reconhecimento de direitos, tornando-se eleitoras e elegíveis, obtendo a legalização do divórcio assim como a do casamento civil, além de as camponesas passarem a ter direitos sobre a terra. Explana Silva2525 Silva DJ. Encontros e desencontros entre marxismo e feminismo: uma análise da incorporação da luta pela emancipação das mulheres entre os revolucionários russos a partir de Lênin, Kollontai e Trotsky. Rev. Hist. Luta de Classes. 2015; 11(20):47-60. que a legislação russa passa a impedir que o marido imponha à esposa seu nome, domicílio ou nacionalidade, estabelece a pensão alimentícia, regulamenta a proteção do trabalho feminino e institui a licença maternidade. Acrescenta a autora que “o aborto é legalizado em 1920 e em 1926, ainda sob o impulso libertário, os casamentos e 'uniões de fato' são igualados”2525 Silva DJ. Encontros e desencontros entre marxismo e feminismo: uma análise da incorporação da luta pela emancipação das mulheres entre os revolucionários russos a partir de Lênin, Kollontai e Trotsky. Rev. Hist. Luta de Classes. 2015; 11(20):47-60.(49).

Davis2626 Davis A. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo; 2017. Tradução Heci Regina Candiani., reconhecendo que as mulheres de todo o mundo constituem uma potência política capaz de ameaçar as forças globais do atraso e da opressão, coloca em evidência que

[...] os progressos notáveis que foram feitos rumo à igualdade social, econômica e política das mulheres soviéticas resultaram de uma reorganização social revolucionária de acordo com as necessidades e aspirações da classe trabalhadora2626 Davis A. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo; 2017. Tradução Heci Regina Candiani.(85).

Consigna Fonseca que a luta das mulheres, embora tenha se iniciado muito antes, obteve espaço formal em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos2727 Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos [internet]. [acesso em 2019 fev 9]. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf.
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(23), com a consagração da igualdade de direitos do homem e da mulher e a promoção do “progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla”. Afirma Barsted2828 Barsted LL. Os direitos humanos na perspectiva de gênero. I Colóquio de Direitos Humanos. Anais... In: Os Direitos Humanos na Perspectiva de Gênero [internet]. São Paulo: DHNET; 2001. [acesso em: 2019 fev 9]. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/a_pdf/barsted_dh_perspectiva_genero.pdf.
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que, durante anos, os organismos internacionais não trataram da violação dos direitos humanos das mulheres.

Expõe a autora2828 Barsted LL. Os direitos humanos na perspectiva de gênero. I Colóquio de Direitos Humanos. Anais... In: Os Direitos Humanos na Perspectiva de Gênero [internet]. São Paulo: DHNET; 2001. [acesso em: 2019 fev 9]. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/a_pdf/barsted_dh_perspectiva_genero.pdf.
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que, na década de 1960, uma série de convenções internacionais passaram a introduzir as categorias 'homens' e 'mulheres' quando tratavam de variados temas. Entre eles, Barsted2828 Barsted LL. Os direitos humanos na perspectiva de gênero. I Colóquio de Direitos Humanos. Anais... In: Os Direitos Humanos na Perspectiva de Gênero [internet]. São Paulo: DHNET; 2001. [acesso em: 2019 fev 9]. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/a_pdf/barsted_dh_perspectiva_genero.pdf.
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sublinha o Pacto de San Jose da Costa Rica2929 Estados Unidos da América. Pacto de San José da Costa Rica [internet]. [acesso em 2019 fev 9]. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm.
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos...
(Convenção Americana sobre Direitos Humanos), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais3030 Brasil. Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992 [internet]. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Diário Oficial da União. 7 Jul 1992 [acesso em 2019 fev 9]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm.
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e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos3131 Assembleia Geral das Nações Unidas. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos [internet]. [acesso em 2019 fev 9]. Disponível em: http://www.refugiados.net/cid_virtual_bkup/asilo2/2pidcp.html.
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, que, porém, tiveram pouco impacto em nosso país submetido que estava a uma ditadura militar.

Destaque-se, com Fonseca2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018., que, nos anos 1960, ocorreram avanços com os movimentos sociais feministas, sobressaindo-se temas como a sexualidade, a contracepção e a esterilização; e, nos anos 1970, a campanha pela autodeterminação sobre seus corpos.

Para Fonseca2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018., a primeira onda do feminismo, do século XIX ao século XX, foi marcada pelo igualitarismo, buscando-se, a partir dos anos 1960, o reconhecimento das diferenças na reivindicação de direitos reprodutivos, além das questões relacionadas com a homossexualidade.

No Brasil dos anos 1980, houve um significativo avanço no processo de conquista de direitos com a abertura democrática e a promulgação da Constituição da República de 19883232 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [internet]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988 [acesso em 2019 jan 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
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estabelecendo o direito à saúde e a garantia individual da igualdade sem qualquer espécie de discriminação, com evidente repercussão nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

O Movimento Feminista uniu esforços ao Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, resultando na incorporação de preceitos de saúde sexual e reprodutiva como pressupostos da saúde, posteriormente incluídos no texto constitucional enquanto direitos de cidadania e dever do Estado.

Desse modo, foram realçadas temáticas como aborto, contracepção, sexualidade, entre outras, colaborando para a inserção destas na conjectura dos direitos humanos2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018.(25).

É de se registrar, portanto, que a assistência integral à saúde sexual e reprodutiva, a vida livre da morte materna evitável, a vida privada, a integridade pessoal, a autodeterminação sobre seus corpos com autonomia de decidir sobre a reprodução, sem coerção, discriminação ou violência, a informação e o acesso aos serviços são direitos humanos das mulheres, entre muitos outros que compõem um círculo protetor da sua dignidade.

Apesar disso, o Código Penal Brasileiro, em seus arts. 124 a 1273333 Paula B. O aborto no Código Penal Brasileiro [internet]. Jus. 2017 abr [acesso em 2018 set 15]. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57513/o-aborto-no-codigo-penal-brasileiro.
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, define o aborto como crime, excluindo expressamente (art. 128) do âmbito de incidência da norma incriminadora os abortos praticados em decorrência de risco à vida da mulher, quando a gravidez é decorrente de estupro ou em caso de gravidez de feto anencéfalo – nesse último caso, em razão da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 em 12 de abril de 20123434 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 54. Distrito Federal [internet]. [acesso em 2018 set 15]. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334.
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.

Destaca-se que apesar do direito expressamente reconhecido na excludente de ilicitude prevista no art. 128 do Código Penal, as mulheres com direito ao aborto em gestações decorrentes de estupro somente passaram a ter acesso ao serviço público de saúde quase quatro décadas depois da vigência do permissivo legal, visto que os primeiros centros de atenção eram todos particulares e cobravam preço exacerbado.

Em 1986, foi implementado, no Hospital Municipal Dr. Arthur Saboya, em São Paulo, o Programa Público de Interrupção da Gestação, cuja disponibilização ampla, conforme assevera Fonseca2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018., deveu-se à pressão dos movimentos feministas que argumentavam com a consolidação dos direitos reprodutivos na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), no Cairo, em 1994, e na Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, em 1995.

Em 1999, o Ministério da Saúde editou Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, ampliada em 2005 e 2012, dispondo que a história relatada pelas mulheres vítimas de estupro ou por seu representante legal é suficiente para a realização do procedimento médico, independentemente de registro de ocorrência policial. Conforme Fonseca2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018.(60), quando da publicação de seu livro, somente existem 65 serviços referenciados no País.

Segundo o Ministério da Saúde, toda e qualquer unidade de saúde com serviço de obstetrícia tem obrigação de realizar o abortamento nos casos permitidos por lei. Todavia, não é o que de fato ocorre, uma vez que

[...] a mídia e os estudos na área propagam que os índices de mulheres atendidas são relativamente baixos, contradizendo, portanto, os dados de internamento por complicações de abortamentos realizados possivelmente de modo clandestino2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018.(61).

A autora2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018. releva a falta de capacitação dos profissionais da saúde, cuja formação não os prepara para lidarem com questões como abortamento, violência sexual e doméstica, além de toda a problemática de gênero incidente nas demandas de saúde pública.

Ademais, o aborto envolve uma série de implicações, estigmas e preconceitos de ordem cultural, moral e religiosa que incidem sobre a atuação dos profissionais da saúde com direta influência nas declarações de objeção de consciência, assegurada pelo Código de Ética Médica, de modo que, segundo Fonseca2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018., a obrigatoriedade de todas unidades com serviços de obstetrícia realizarem o aborto legal não é suficiente para garantir maior acesso das mulheres ao serviço público de saúde para a interrupção da gravidez.

Todos esses obstáculos impulsionam as mulheres para o aborto clandestino porquanto o tempo é outro fator complicador, já que, após as 20 semanas de gestação, ela pode não conseguir realizar o procedimento, como salienta Fonseca2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018., que destaca a ambiguidade existente entre a norma legal permissiva, o marco punitivo e as políticas públicas.

Fonseca sublinha que a legislação é impregnada de “fatores culturais, determinados historicamente pelo sistema patriarcal, bem como fatores religiosos apesar de ser um Estado Laico”2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018.(64), de modo que a temática do aborto legal exerce poder e controle do corpo das mulheres por diferentes segmentos: estado e seus interesses financeiros, categoria médica, tribunais, igrejas, família, entre outros.

A laicidade é uma conquista social reconhecida e expressa na Carta Política de 19883232 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [internet]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988 [acesso em 2019 jan 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
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que consagra a diversidade social, cultural e religiosa, adotando, em seu art. 1º, inciso III, a dignidade humana como fundamento da República e estabelecendo no art. 3º, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No art. 19 da Magna Carta, a laicidade se delineia, expressamente, ao vedar ao Estado – considerado no sentido amplo – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, dificultar-lhes o funcionamento ou manter com eles, ou seus representantes, relações de dependência ou aliança.

A laicidade do Estado remonta à Revolução Francesa2323 Bezerra J. Revolução Francesa 1789 [internet]. [acesso em 2019 fev 7]. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/revolucao-francesa/.
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, cujo efeito foi o de separar a Igreja do Estado, que até então exerciam juntos os poderes estatal, econômico e religioso.

Abreu informa que o Ministro Celso de Mello, em seu voto no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 543434 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 54. Distrito Federal [internet]. [acesso em 2018 set 15]. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334.
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, assinala que a laicidade está afirmada em Constituição, no Estado brasileiro, desde 1891, ressaltando que

[...] ao Estado é vedado interferir na fé religiosa dos indivíduos e também nenhuma das fés religiosas deve prevalecer sobre as demais, o que produz, em nossa sociedade, o efeito do pluralismo2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018.(173).

Conforme a autora2222 Fonseca JG. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris; 2018., o Ministro Celso de Mello concebe a laicidade como um obstáculo para o retrocesso, instrumento de combate ao obscurantismo e à possibilidade de concepções religiosas particulares obstarem o conhecimento científico e suas benesses para a própria dignidade da vida.

Sendo o Brasil um Estado laico, a legislação não tem legitimidade para tratar diferentemente uma mulher a partir do conceito de culpa, próprio das religiões cristãs, criminalizando severamente o aborto voluntário e 'perdoando' aquele em que a mulher é vista como vítima porque punida pelas circunstâncias da gestação, o que reflete inegavelmente a ideologia patriarcal de apossamento do corpo feminino e negação de autonomia à mulher para decidir sobre ele.

Convém lembrar que a proibição legal do aborto decorre de uma normatização que representa as forças conservadoras da sociedade; e todos os movimentos feministas pela descriminalização do aborto se mantêm permanentemente em disputa com essas forças conservadoras do patriarcado.

São as forças sociais organizadas que constroem e até suprimem os direitos. No momento atual, ao redor de todo o mundo, é perceptível um movimento de supressão de direitos sociais conquistados e até já reconhecidos formalmente nas legislações.

Exemplo disso é a aprovação, pela Comissão Especial da Câmara de Deputados, da Proposta de Emenda à Constituição nº 181-A, de 2015, oriunda do Senado Federal, que 'altera o inciso XVIII do art. 7º da Constituição Federal para dispor sobre a licença-maternidade em caso de parto prematuro', tendo sido introduzido no texto um dispositivo estabelecendo que a 'vida se inicia com a concepção', criminalizado todo e qualquer aborto, inclusive quando a gestação decorre de estupro.

Há ainda, todavia, forças populares de pressão política para a ampliação do direito ao aborto legal, seja pela via da organização social com redes de apoio como os 'Socorristas en red – Feministas que abortamos', seja pela via institucional, por meio de medidas judiciais perante o Supremo Tribunal Federal, como a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442 e o Habeas Corpus nº 124.306 – RJ1212 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 124.306 Relator para o Acórdão: Luís Roberto Barroso, 29 nov 2016 [internet]. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/hc124306lrb.pdf.
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.

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem no Habeas Corpus nº 124.306 – RJ1212 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 124.306 Relator para o Acórdão: Luís Roberto Barroso, 29 nov 2016 [internet]. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/hc124306lrb.pdf.
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, conferindo interpretação conforme a Constituição aos arts. 124 a 126 do Código Penal para excluir do seu âmbito de incidência o aborto voluntário efetivado no primeiro trimestre na forma do voto-vista condutor, da lavra do ministro Luís Roberto Barroso. O ministro salientou que a criminalização viola os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, não podendo o Estado obrigá-las a manter uma gestação indesejada com desconsideração de sua autonomia, além de vulnerabilizar sua integridade física e psíquica. Para o julgador, a criminalização do aborto afronta a garantia de igualdade, destacando que atinge diferentemente as mulheres de classes sociais distintas, uma vez que as pobres não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorrendo ao SUS. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos1212 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 124.306 Relator para o Acórdão: Luís Roberto Barroso, 29 nov 2016 [internet]. [acesso em 2019 fev 21]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/hc124306lrb.pdf.
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.

Em outro giro, a inicial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 4423535 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442. [acesso em 2018 set 15]. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5144865.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
, ainda em trâmite no Supremo Tribunal Federal, indica como preceitos violados os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da não discriminação, bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar, todos protegidos pela Constituição Federal3232 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [internet]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988 [acesso em 2019 jan 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
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, para que seja declarada a não recepção parcial dos arts. 124 e 126 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940)3636 Brasil. Decreto-Lei nº 2.848/1940 [internet]. Código Penal. [acesso em 2018 set 15]. Diário Oficial da União. 8 Dez 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.
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, excluindo do âmbito de incidência o aborto induzido e voluntário nas primeiras 12 semanas, espeitada a autonomia das mulheres, sem necessidade de permissão estatal, assim como garantido aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento.

Como se vê, em momento de sério risco de perda de direitos humanos fundamentais das mulheres, é de fulcral importância a mobilização e a organização dos movimentos feministas para a construção do direito de acesso ao aborto seguro, denunciando os obstáculos aos direitos já reconhecidos e pressionando pela sua ampliação ante a ilegitimidade da criminalização pelo direito positivado, burguês e excludente por excelência.

Nesse processo de luta cotidiana, exsurge a proposta de produção alternativa do direito pela via da organização social em redes de apoio, com socorro direto às mulheres que decidam abortar e disseminação de informação de qualidade a respeito dos métodos contraceptivos, das hipóteses de aborto legal, dos estabelecimentos referenciados ou não aptos a realizarem o procedimento, da eficácia, posologia, riscos e vantagens do uso do misoprostol, elaborando material escrito e de mídia audiovisual para as redes sociais, além de promover debates nas ruas, associações de moradores e demais coletivos populares organizados.

A luta concreta na construção do direito de acesso ao aborto seguro não pode desprezar a importância da infiltração de ações contra-hegemônicas na institucionalidade, mediante a apresentação de propostas populares de alteração legislativa, da articulação com parlamentares para deter os retrocessos inseridos nos projetos que já estão em trâmite e da propositura de medidas judiciais no Supremo Tribunal Federal, como, aliás, já tem sido feito.

Com essas premissas, impõe-se reconhecer que as organizações sociais e populares de resistência para a construção do direito de acesso ao aborto seguro, à saúde e, por consequência, à igualdade e à vida3737 Ruibal A. Movement and counter-movement: a history of abortion law reform and the backlash in Colombia 2006-2014. Reprod Health Matters. 2014; 22(44):42-51. reestruturam o campo político, desafiam a organização social burguesa e abalam as certezas e conformações do patriarcado.

As mulheres, em lutam, reposicionam-se enquanto senhoras autônomas de sua vontade e de seu corpo, em um processo revolucionário de construção de direitos.

Considerações finais

Procurou-se caracterizar o acesso ao serviço público para a realização do aborto como um direito humano das mulheres, negado ilegitimamente pelo ordenamento jurídico ao defini-lo como crime.

Pode-se dizer que a legislação que criminaliza o aborto vem impregnada dos valores patriarcais, cuja abrangência transborda as questões morais, religiosas, comportamentais e até patrimoniais, entre muitas outras que compõem todo espectro ideológico e organizacional da sociedade e alicerçam as relações de subalternalidade.

Visto que o ordenamento jurídico se revela a própria expressão da sociedade burguesa e, como tal, instrumento imprescindível para a manutenção das relações de subordinação e exploração imanentes ao escalonamento social, resguardando os privilégios dos grupos dirigentes, acaba por obstaculizar e até criminalizar condutas inseridas na esfera de direitos ansiados e reivindicados pelos grupos subalternalizados, desvelando sua ilegitimidade.

Ocorre que o aborto é um direito reivindicado pelas mulheres, enquanto grupo subalternalizado, emergindo a constatação da necessidade de organização em movimentos populares de luta para a conquista, o reconhecimento e a efetivação do direito de acesso ao aborto seguro.

Na sociedade burguesa, frise-se, o patriarcado caracteriza-se como a ideologia dominante de supremacia masculina que encontrou, no sistema capitalista, respaldo para a intensificação da violência e da opressão que o distinguem.

Lutar pela emancipação das mulheres, pela superação do patriarcado e pela construção de direitos reivindicados por grupos não dirigentes, necessariamente, é uma batalha contra o capital.

Nessa medida, a luta das mulheres somente alcançará êxito na diminuição das desigualdades de gênero e na emancipação social se houver engajamento nas lutas para a superação de todas as formas de opressão, subordinação e exploração.

Especificamente abordando o tema do aborto, constata-se que as mulheres obtiveram conquistas de direitos reconhecidos formalmente em documentos internacionais de que o Brasil é signatário, assim como na própria Constituição Federal, cuja letra assegura a igualdade entre homens e mulheres e o direito à saúde e à vida com dignidade.

Contudo, paradoxalmente, apesar do reconhecimento de que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são direitos humanos, a legislação nacional criminaliza o aborto, excetuando apenas os casos de risco à vida da gestante, de gestação decorrente de estupro e quando o feto for anencéfalo.

No entanto, a proibição não impede a prática do aborto, tendo como consequência o obstáculo aos serviços de saúde pública, com direta repercussão para as mulheres descapitalizadas.

Mesmo nos casos de aborto autorizados pela lei, ocorrem impedimentos para a concretização do direito, havendo poucas unidades referenciadas, inexistindo publicidade a respeito do atendimento em qualquer unidade com serviço de obstetrícia, objeção de consciência dos profissionais e falta de capacitação técnica para lidar com vítimas de violência sexual.

Cabe sublinhar que, desde a legislação penal até a completa ausência de políticas públicas efetivas, observa-se a impregnação de valores morais e religiosos em atos do Estado brasileiro que se fundou constitucionalmente na laicidade. A criminalização do aborto tem por direta consequência o risco incrementado à vida, em grave violação dos direitos humanos das mulheres, demarcando, inclusive, a desigualdade social, com entraves para serviço público de saúde para as mulheres pobres.

Vale dizer que os movimentos feministas pela descriminalização do aborto se mantêm permanentemente em disputa com as forças conservadoras, ainda mais no atual momento histórico em que vivenciamos a supressão de direitos sociais conquistados e até já reconhecidos formalmente nas legislações e de que é exemplo a proposta de emenda constitucional para definir o início da vida com a concepção, criminalizando, possivelmente, até o aborto em gestação decorrente de estupro.

Dadas essas premissas, afigura-se premente a produção alternativa do direito por meio da organização social em redes de apoio e socorro às mulheres que decidam abortar, disseminando informação de qualidade a respeito dos métodos contraceptivos, das hipóteses de aborto legal, dos estabelecimentos aptos a realizar o procedimento, da eficácia, posologia, riscos e vantagens do uso do misoprostol, elaborando material escrito e de mídia audiovisual para as redes sociais, além de promover debates nas ruas, associações de moradores e demais coletivos populares organizados.

Conclui-se que as organizações sociais e populares de resistência para a construção do direito de acesso ao aborto seguro travam lutas revolucionárias, reestruturando o campo político, desafiando a sociedade burguesa e abalando os valores e conformações do patriarcado. As mulheres formam uma consciência militante feminista coletiva, rompem a própria concepção que têm de si mesmas e realinham as relações sociais, reposicionando-se como senhoras autônomas de sua existência, de sua vontade e de seu corpo.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2019
  • Aceito
    15 Out 2019
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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