Judicialização de medicamentos no Estado do Rio de Janeiro: evolução de 2010 a 2017

Letícia de Oliveira Peçanha Luciana Simas Vera Lucia Luiza Sobre os autores

RESUMO

O artigo objetivou descrever a evolução do número de ações judiciais com pedido de fornecimento de medicamentos no estado do Rio de Janeiro. Trata-se de pesquisa descritiva retrospectiva, realizada no banco de dados do Tribunal de Justiça, em que se descreve a evolução do número de ações judiciais no período 2010-2017. Os dados foram analisados segundo as variáveis: Município, Região de Saúde e porte populacional. Das 87 comarcas (em 84 municípios), 62 tiveram aumento nos números de processos. A Comarca da Capital concentrou o maior número de processos tombados, variando de 2.026 a 2.797, com padrão semelhante ao do Estado. Observou-se o maior aumento no número de ações nos municípios de Pequeno Porte I (158,1%) e queda de 10,2% nos municípios de Médio Porte. À exceção da Metrópole, o aumento foi mais pronunciado em 2014-2017 em relação a 2010-2014. Houve marcado aumento de processos no Juizado Especial Fazendário em detrimento das Varas de Fazenda Pública. Conclui-se que a despeito da tendência geral de crescimento, este apresentou tendência diferente em função da Comarca, da Região e do porte populacional dos municípios, sugerindo potencial interferência de atores institucionais. Adicionalmente, constatou-se a migração das demandas para os Juizados Especiais Fazendários na Capital.

PALAVRAS-CHAVE
Judicialização da saúde; Preparações farmacêuticas; Assistência farmacêutica

Introdução

A Constituição Federal consolida a saúde como direito social, de relevância pública inquestionável11 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil [internet]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2019 jan 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
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. Como corolário, tem-se a obrigação do poder público de implementar políticas destinadas a, entre outras tarefas, promover e a garantir o acesso às ações e serviços, de forma universal e igualitária, visando à promoção, à proteção e à recuperação da saúde da população.

A forte mobilização, com atuação efetiva dos movimentos sociais, sobretudo os ligados à defesa dos portadores de HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana) e Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), vocalizando os interesses das pessoas soropositivas, fez surgir o fenômeno da judicialização das questões de saúde22 Messeder AM, Osorio-de-Castro CGS, Luiza VL. Mandados judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2005; 21(2):525-34.. As demandas judiciais inauguraram, então, essa via de postulação também para atendimento de portadores de outras moléstias, fazendo com que o número de ações envolvendo a saúde venha aumentando de forma preocupante no País33 Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2018: ano-base 2017 [internet]. Brasília, DF: CNJ; 2018. [acesso em 2019 jul 22]. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/44b7368ec6f888b383f6c3de40c32167.pdf.
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. Muitos cidadãos passaram a buscar o Poder Judiciário para instar os entes públicos ao fornecimento de medicamentos e serviços afins. Esse fenômeno de busca do poder judiciário para atendimento de demandas de saúde é denominado judicialização da saúde e, segundo diferentes autores, vem comprometendo princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), como a integralidade44 Catanheide ID, Lisboa ES, Souza LEPF. Características da judicialização do acesso a medicamentos no Brasil: uma revisão sistemática. Physis Rev Saúde Coletiva. 2016; 26:1335-56.,55 Pepe VLE, Figueiredo TA, Simas L, et al. A judicialização da saúde e os novos desafios da gestão da assistência farmacêutica. Ciênc. Saúde Colet. 2010; 15(5):2405-14..

Assim, o Poder Judiciário vem sendo um meio utilizado para atender a demandas individuais e coletivas na área de saúde, representando um importante veículo de vocalização, especialmente por hipossuficientes, de suas urgentes e inadiáveis necessidades. Por outro lado, esse cenário impõe desafios ao sistema público, inclusive no que diz respeito à administração e compra, influenciando, ainda, a seleção de medicamentos em detrimento das evidências de eficácia.

No Estado do Rio de Janeiro (ERJ), estudos anteriores já demonstraram sua grande magnitude e impacto nas políticas de saúde22 Messeder AM, Osorio-de-Castro CGS, Luiza VL. Mandados judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2005; 21(2):525-34.,66 Pepe VLE, Ventura M, Sant'Ana JMB, et al. Caracterização de demandas judiciais de fornecimento de medicamentos "essenciais" no Estado do Rio de Janeiro, Brasil Characterization of lawsuits for the supply of "essential" medicines in the State of. Cad. Saúde Pública. 2010; 26(3):461-471.. No Rio de Janeiro, diferentes iniciativas, como respostas ao fenômeno da judicialização, vêm sendo implementadas. A Central de Atendimento a Demandas Judiciais (CADJ), criada em 2007, foi implantada com a finalidade de harmonizar os procedimentos administrativos entre os níveis estadual e municipal, evitando duplicidades e, portanto, reduzindo custos. O Núcleo de Assessoria Técnica (NAT), instituído em 2009, fruto de cooperação técnica firmada entre a Secretaria de Estado de Saúde (SES/RJ) e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ/RJ), tem como papel principal o fornecimento de subsídios técnicos aos magistrados em processos relacionados com pedidos envolvendo questões de saúde. A Câmara de Resolução de Litígios em Saúde (CRLS), que iniciou operação em setembro de 2013, tem como objetivo permitir que profissionais da SES/RJ e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS/RJ) prestem atendimento ao cidadão, encaminhando-o ao local onde poderá obter o bem ou serviço pretendido se ofertado pelo SUS, ou promovendo sua inserção no sistema de justiça caso contrário77 Calfo MA, Silveira ECSA. Núcleo de assessoria técnica em ações de saúde: a experiência do estado do Rio de Janeiro. In: Osorio-de-Castro CGS, Luiza VL, Castilho SR, et al., organizadoras. Assistência farmacêutica: gestão e prática para profissionais da saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p. 373-80..

A despeito de uma intensa produção científica sobre a judicialização da assistência farmacêutica, são poucas as abordagens acadêmicas utilizando informações atualizadas do banco de dados do TJ/RJ, a partir da publicação da Lei nº 12.401/201188 Brasil. Lei nº 1.2401 de 28 de abril de 2011. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União. 28 Abr 2011., que alterou a Lei nº 8.080/9099 Brasil. Lei Federal nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990., disciplinando a assistência terapêutica integral. São também escassos os estudos realizados após a instalação da CRLS, do NAT e dos Juizados Especiais Fazendários, estes na Comarca da Capital do ERJ em dezembro de 2010, pela Lei Estadual nº 5.781/20101010 Rio de Janeiro. Lei nº 5.781 de 1 de julho de 2010. Altera a lei nº 2.556, de 21 de maio de 1996, que cria os juizados especiais cíveis e criminais na justiça do Estado do Rio de Janeiro, dispõe sobre sua organização, composição e competência, criando os juizados especiais da fazenda pública, a estrutura das turmas recursais cíveis, criminais e da fazenda pública e dá outras providências [internet]. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. 1 Jul 2010. [acesso em 2019 jan 26]. Disponível em: http://www2.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/.
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Assim, não só a contemporaneidade do período contemplado e a utilização do banco de dados do Tribunal de Justiça como também a análise em um contexto normativo e estrutural diverso daquele até então abordado revelam a importância do estudo ora apresentado.

Nesse cenário, o presente artigo tem como objetivo descrever a evolução do número de ações judiciais com pedido de fornecimento de medicamentos no ERJ.

Metodologia

O presente artigo utilizou dados coletados como parte de um estudo mais amplo1111 Peçanha LO. Judicialização da Assistência Farmacêutica no Estado do Rio de Janeiro: um olhar crítico a partir do perfil das demandas judiciais entre os anos de 2010 e 2017 [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2019.. Trata-se de pesquisa descritiva retrospectiva realizada no banco de dados do TJ/RJ, contemplando a população total do ERJ. Nesta abordagem, descrevemos a evolução do número de ações judiciais propostas em face dos entes públicos (estado e municípios). A unidade de análise foram os processos judiciais tombados, sendo objeto de interesse aqueles com indicação clara de solicitação de fornecimento de medicamentos.

O banco de dados foi extraído em 19 de junho de 2018, sendo utilizados pela Divisão de Coleta e Tratamento de Dados (Dicol) do TJ/RJ os critérios de extração, conforme a Resolução nº 46/20071212 Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 46, de 18 de dezembro de 2007. Cria as Tabelas Processuais do Poder Judiciário e dá outras providências [Internet]. Diário da Justiça. 18 Dez 2007 [acesso em 2019 jan 18]. Disponível em: www.cnj.jus.br/atos-normativos?documento=167.
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do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nas competências Fazenda Pública e Juizado Fazendário, gerando um relatório sintético por Comarca, Assunto, Competência processante e ano de distribuição.

Foram selecionados, do rol de possibilidades dos 'Assuntos' ligados à saúde, aqueles potencialmente relacionados com a solicitação de fornecimento de medicamentos: Fornecimento de Medicamentos; Fornecimento de Medicamentos – Desabilitado Deige; Medicamento/Tratamento/Cirurgia de Eficiência não comprovada; Medicamento não Padronizado Pelo SUS; Medicamento Sem Registro na Anvisa; Medicamentos – Outros; Medicamentos e Outros Insumos de Saúde – Juizados Fazendários; Tratamento Médico-Hospitalar e/ou Fornecimento de Medicamentos, sendo analisada a totalidade dos processos que atendiam a esse critério no período de interesse.

A fim de melhor correlacionar o tema da judicialização com o contexto da administração pública na área de saúde, os dados foram analisados segundo as variáveis: Município, Região de Saúde e porte populacional. Para este último, os Municípios foram classificados em: Pequeno I (até 20.000 habitantes), Pequeno II (20.001 a 50.000 habitantes), Médio (50.001 a 100.000 habitantes), Grande (100.001 a 900.000 habitantes) e Metrópole (mais de 900.000 habitantes)1313 Viudes PFN. Trajetória da perspectiva territorial na Política de Assistência Social Brasileira. Anais do I Congresso Internacional de Política Social e Serviço Social: Desafios Contemporâneos [internet]; 2015 Jun 9-12; Londrina. Londrina: Universidade Federal de Londrina; 2015. p. 1-11. [acesso em 2019 fev 17]. Disponível em: http://www.uel.br/pos/mestradoservicosocial/congresso/anais/Trabalhos/eixo8/oral/16_territorio_da_perspectiva....pdf.
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. Na abordagem temporal, além da análise da variação no período total, em alguns momentos, foram analisados separadamente os períodos 2014 a 2010 e 2017 a 2014, tendo em vista o início da operação plena da CRLS a partir do final de 2013.

Os dados foram considerados de acesso público, tendo sido dispensada a análise pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados

Foram identificados no ERJ 53.386 processos relacionados com o fornecimento de medicamentos distribuídos em face dos entes públicos, sendo 5.692 tombados em 2010; e 8.893, em 2017. Constatou-se crescimento de 56,2% de processos no período total estudado, com razoável estabilidade no período de 2010 a 2014; a partir desse ano até o ano de 2017, foi observado um aumento mais expressivo, respectivamente, 4,9% e 48,9%. A partir de 2013, foram identificados os primeiros processos sobre medicamentos ajuizados no Juizado Especial Fazendário, ganhando proporção crescente (Figura 1-A).

Figura 1
Distribuições anuais de ações relativas a medicamentos, às Varas de Fazenda Pública e aos Juizados Especiais Fazendários. Estado (A) e Município (B) do Rio de Janeiro. 2010-2017

De acordo com a divisão e a organização judiciárias, os órgãos jurisdicionais são distribuídos por Comarcas. Das 87 Comarcas (em 84 municípios), 62 tiveram um aumento da razão dos números de processos ajuizados no período analisado. A Comarca da Capital concentrou o maior número de processos tombados, variando de 2.026 a 2.797 processos de 2010 a 2017, com padrão semelhante ao do ERJ (Figura 1-B).

Observou-se que, na razão de 2017-2010, houve um aumento em todas as Regiões de Saúde do ERJ (Tabela 1). Aquela que apresentou maior crescimento foi a Baia da Ilha Grande, e a que teve menor aumento foi a região Noroeste.

Tabela 1
Ações judiciais relacionadas a demandas por medicamentos segundo ano e Região de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. 2010-2017

A Figura 2 registra a variação das ações propostas nos Assuntos selecionados de acordo com o porte populacional dos Municípios. Quanto à distribuição de processos, observou-se o maior aumento no número de ações no período de 2010 a 2017 nos Municípios do grupo Pequeno I (158,1%). No entanto, houve queda de 10,2% nos Municípios de Médio Porte. À exceção das Metrópoles, o aumento foi mais pronunciado no período 2014-2017 em relação ao período 2010-2014.

Figura 2
Ações judiciais potencialmente relacionadas com demandas por medicamentos segundo o porte populacional das Comarcas e crescimento percentual. Estado do Rio de Janeiro, 2010-2017

Discussão

A judicialização é um fenômeno importante na questão da saúde, sendo fundamental que seja monitorada e avaliada, de forma a ensejar melhor harmonização nas ações dos diferentes Poderes, bem como o incremento das políticas públicas para atendimento às necessidades dos cidadãos, protegendo e respeitando seus direitos. Envolve, portanto, a interface entre Poderes, com implicações sanitárias, econômicas, sociais e jurídicas.

Mostra-se fundamental, nesse contexto, uma classificação adequada dos processos judiciais, registrando-se corretamente os dados. O CNJ editou a Resolução nº 46/20071212 Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 46, de 18 de dezembro de 2007. Cria as Tabelas Processuais do Poder Judiciário e dá outras providências [Internet]. Diário da Justiça. 18 Dez 2007 [acesso em 2019 jan 18]. Disponível em: www.cnj.jus.br/atos-normativos?documento=167.
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, que criou as Tabelas Processuais Unificadas do Poder Judiciário, visando exatamente à padronização e à uniformização no tratamento da informação no Poder Judiciário e possibilitando o seu melhor planejamento estratégico. Especificamente no âmbito estadual, o Ato Normativo Conjunto nº 03/2008 do TJ/RJ1414 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ato Normativo Conjunto nº 3, de 29 de dezembro de 2008. Implanta as Tabelas Processuais Unificadas do Poder Judiciário e dá outras providências [internet]. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. 12 Mar 2008. [acesso em 2019 jan 28]. Disponível em: www.tjrj.jus.br/biblioteca/index.html.
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implantou, seguindo as diretrizes traçadas pelo CNJ, as Tabelas Processuais Unificadas, que têm a finalidade de promover a uniformização da terminologia no registro dos processos judiciais e que foram utilizadas para a busca dos resultados desta pesquisa.

Ainda que as medidas de padronização representem um avanço considerável, foram identificadas falhas de classificação, observando-se que alguns processos recuperados na busca com as palavras-chave não tinham como objeto o fornecimento de medicamentos. Tais lacunas no banco de dados podem ser resultado da existência de categorias não excludentes, insuficiente descrição e pouca clareza das categorias, bem como insuficiente treinamento dos profissionais responsáveis. Nesse sentido, problemas de classificação dos processos podem implicar falhas de informação.

A despeito do geral crescimento das ações ajuizadas para fornecimento de medicamentos no ERJ no período estudado, esse aumento não foi uniforme nas Comarcas, nem quando considerado o porte municipal.

A Comarca da Capital, que atende a uma das principais metrópoles do País, concentrou o maior número absoluto de processos. Pepe et al.66 Pepe VLE, Ventura M, Sant'Ana JMB, et al. Caracterização de demandas judiciais de fornecimento de medicamentos "essenciais" no Estado do Rio de Janeiro, Brasil Characterization of lawsuits for the supply of "essential" medicines in the State of. Cad. Saúde Pública. 2010; 26(3):461-471., em estudo que analisou demandas do ERJ no ano de 2006, por medicamentos considerados essenciais, também identificaram uma predominância de ações na Comarca da Capital. As autoras apontam que esse dado pode ter relação com a existência de uma maior rede de serviços de saúde e jurídicos, além do porte populacional. Mesmo se considerarmos que o aumento proporcional das demandas, objeto do estudo, não foi muito significativo no período, segue relevante o crescimento do volume de processos ajuizados na Comarca da Capital.

É importante registrar que o aumento e a redução das ações judiciais ao longo do tempo devem ser interpretados com cautela, uma vez que aspectos pontuais, relativas à realidade de uma determinada região, assim como ao contexto social e político, tanto em âmbito nacional como local, podem influenciar nesse movimento. Até mesmo questões relativas ao próprio funcionamento da justiça e da Defensoria Pública e, claro, ao sistema de saúde podem gerar aumento ou redução da busca do Poder Judiciário pelos cidadãos.

Especificamente quanto à Comarca da Capital, identificou-se que o cenário da judicialização da saúde modificou-se significativamente, tendo restado bastante visível a migração das demandas das Varas de Fazenda Pública para os Juizados Especiais Fazendários. A Figura 1 retrata perfeitamente esse movimento, revelando que a busca pelas Varas de Fazenda Pública, em 2013, ainda superava a busca pelos Juizados Especiais Fazendários. Todavia, essa proporção foi-se invertendo ao longo dos anos, chegando ao quadro registrado em 2017, em que os Juizados Especiais receberam quase a totalidade dos processos (97,7%), nos Assuntos selecionados.

Os Juizados Especiais Fazendários foram criados no ERJ pela Lei Estadual nº 5.781/20101010 Rio de Janeiro. Lei nº 5.781 de 1 de julho de 2010. Altera a lei nº 2.556, de 21 de maio de 1996, que cria os juizados especiais cíveis e criminais na justiça do Estado do Rio de Janeiro, dispõe sobre sua organização, composição e competência, criando os juizados especiais da fazenda pública, a estrutura das turmas recursais cíveis, criminais e da fazenda pública e dá outras providências [internet]. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. 1 Jul 2010. [acesso em 2019 jan 26]. Disponível em: http://www2.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/.
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. Essa norma excluiu da competência de seu sistema, pelo prazo de dois anos a partir de sua entrada em vigor, as ações fundadas no direito à saúde. Dessa forma, no período de 2011 a 2012, os processos judiciais visando ao fornecimento de medicamentos pelos entes públicos, por se tratar de ações fundadas no direito à saúde, continuaram a ser distribuídos perante os Juízos de Fazenda Pública comuns. A partir de 2013, afastada a vedação legal, os Juizados Especiais Fazendários passaram a receber quase a totalidade dessas ações.

Esse dado é de grande relevância na compreensão do perfil das demandas judiciais envolvendo a pretensão de fornecimento de medicamentos pela Fazenda Pública, uma vez que os Juizados Especiais funcionam em um sistema de justiça totalmente próprio, com maior celeridade e informalidade, recebendo causas de menor complexidade, baixo valor e não admitindo perícias. Também é fundamental para a compreensão da evolução do fenômeno da judicialização da saúde, em especial, no que diz respeito à pesquisa empírica, uma vez que deverá ser considerado, para sua realização, também o sistema de Juizados Especiais Fazendários, onde houver.

Além da evolução da demanda para os Juizados Especiais Fazendários em detrimento da Varas de Fazenda Pública, evidenciou-se variação bastante diferenciada do número de ações judiciais em relação ao porte municipal.

Relativamente às diferentes Regiões de Saúde, é importante destacar que a análise comparativa entre os resultados deve-se dar realizando-se uma interpretação em conjunto com outros elementos de investigação, em especial, porque o número de Municípios que integram essas diferentes Regiões, assim como seus portes populacionais, são bem díspares. Também é importante lembrar que a divisão por Regiões de Saúde nem sempre está em consonância com a divisão de Comarcas feita pelo Poder Judiciário. Dessa forma, alguns Municípios, embora pertençam a uma determinada Região de Saúde, podem ter suas demandas acolhidas por outra Comarca, uma vez que não possuem Juízos nela instalados. Esse fator deve ser considerado para a realização de um diagnóstico mais preciso acerca da real situação de uma determinada Região de Saúde.

Quanto ao aumento no número de processos relacionados com medicamentos, tal fato também foi constatado em outros estudos, tanto para o fornecimento de medicamentos22 Messeder AM, Osorio-de-Castro CGS, Luiza VL. Mandados judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2005; 21(2):525-34. quanto para questões de saúde mais amplas, inclusive em âmbito nacional1515 Shulze CJ. Números atualizados da judicialização da saúde no Brasil [internet]. Empório do direito. 2017 nov 11. [acesso em 2019 abr 2]. Disponível em: http://emporiododireito.com.br.
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. Da mesma forma, Mappelli Júnior1616 Mapelli Júnior R. Judicialização da saúde: regime jurídico do SUS e intervenção na administração pública. São Paulo: Atheneu; 2017. identificou um aumento nas demandas judiciais propostas em face do estado de São Paulo (isoladamente ou em solidariedade com Municípios e/ou a União), visando à obtenção de medicamentos, insumos terapêuticos e outros produtos, no período compreendido entre 2010 e 2014. No caso do ERJ, a situação particular pode estar ligada também à grave crise financeira que o atingiu, especialmente nos últimos anos, podendo ter gerado falhas na assistência.

Considerando o protagonismo do Poder Judiciário em diversas outras áreas das relações sociais1717 Santos BS. Para uma revolução democrática da justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez; 2011.,1818 Melo MPC, Vianna LW, Carvalho MARD, organizadores. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan; 2014., inclusive em matérias específicas de saúde, poderíamos entender que, proporcionalmente, em se tratando de todo o estado, o volume dos processos relativos a medicamentos não é tão elevado. Todavia, não se pode desconsiderar a relevância da matéria abordada nesses processos nem a circunstância de que cada vez mais pessoas têm precisado buscar a via judicial para ver satisfeita a sua pretensão de realizar um determinado tratamento medicamentoso.

A possibilidade de falha ou interpretação errônea no cadastro do Assunto, feito pelo representante do autor no momento da distribuição da ação, foi uma limitação do estudo. Ainda que essa classificação deva ser revista por um servidor da justiça, o erro de classificação pode persistir. É possível, assim, que um processo, cadastrado em um Assunto que o relacione ao tema de fornecimento de medicamentos, tenha como objeto outro tema relacionado com a área de saúde. De toda sorte, diante do universo quantitativo geral que engloba todo o ERJ, essa limitação não compromete o resultado da análise, que busca a identificação da evolução das ações judiciais ao longo do tempo.

Considerações finais

O recorte temporal do estudo, que abrangeu sete anos de judicialização, permitiu que tivéssemos uma visão de sua evolução no ERJ; e, quanto à Comarca da Capital, que identificássemos a influência de novos agentes nesse contexto, no intuito de contribuir com outras peças para a construção do desenho desse complexo fenômeno.

A análise quantitativa levada a efeito revelou aspectos importantes, em um cenário no qual a realidade se apresenta totalmente diversa daquela identificada nos primeiros estudos realizados acerca do tema. Com efeito, importantes inovações surgiram, como a criação da CRLS, do NAT e a instalação dos Juizados Especiais Fazendários.

Quanto à CRLS e ao NAT, são novos atores institucionais que podem se mostrar importantes na busca para o esgotamento das alternativas terapêuticas que se adequem à padronização feita pelo SUS, tentando-se alcançar melhor custo-benefício ao ente público, bem como garantir segurança e eficácia no tratamento dos pacientes. Especialmente o NAT ganha relevância por dar o suporte técnico-sanitário às decisões proferidas nos processos.

A importância de uma maior articulação entre os setores jurídicos e os de saúde parece ser um consenso entre todos aqueles que se debruçam sobre o estudo da judicialização. Todavia, a despeito da evolução no campo teórico, com reflexos práticos positivos, especialmente no que diz respeito à administração da justiça, de órgãos a ela ligados e à fixação de parâmetros para decisões, os números indicam que a judicialização continua em crescimento, revelando uma dissonância entre os anseios da população quanto à efetivação do seu direito à saúde e no que diz respeito à organização do poder público em atender a esses anseios, de acordo com o desenho traçado na Constituição Federal.

O crescimento dos números da judicialização sugere tanto a necessidade de monitoramento constante das medidas atuais quanto a formulação e a implementação de novas medidas para identificar, efetivamente, a razão pela qual o cidadão ainda precisa buscar o Poder Judiciário para alcançar a efetividade prática do direito à saúde que lhe é garantido pela nossa Lei Fundamental.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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  • 10
    Rio de Janeiro. Lei nº 5.781 de 1 de julho de 2010. Altera a lei nº 2.556, de 21 de maio de 1996, que cria os juizados especiais cíveis e criminais na justiça do Estado do Rio de Janeiro, dispõe sobre sua organização, composição e competência, criando os juizados especiais da fazenda pública, a estrutura das turmas recursais cíveis, criminais e da fazenda pública e dá outras providências [internet]. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. 1 Jul 2010. [acesso em 2019 jan 26]. Disponível em: http://www2.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/
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  • 11
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2019
  • Aceito
    03 Nov 2019
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