Um tributo a David Sanders: testemunhos de uma aluna

A tribute to David Sanders: testimonials from a student

Denise Antunes Sobre o autor

ESCREVO ESTE DEPOIMENTO SEM A INTENÇÃO DE RELATAR AS GRANDIOSAS realizações do David Sanders desde seus tempos de estudante de medicina e depois na sua vida profissional. Aqui, meu tributo ao David é compartilhar a visão particular da aluna e seguidora que fui deste ícone insubstituível do ativismo pela saúde pública. Assim, meu relato não tem a pretensão de transcorrer em estilo acadêmico, porque falar agora sobre o David com a amarga sensação do vácuo produzido por sua repentina passagem, frustra qualquer tentativa minha de manter a formalidade esperada em textos científicos.

Tive o privilégio de ser admitida como aluna de mestrado na Escola de Saúde Pública da Universidade de Western Cape (UWC), Cidade do Cabo, África do Sul. E assim tive a feliz oportunidade de testemunhar ali em sala de aula o ativista David Sanders em ação, ‘disfarçado de professor’. Esse me parecia um disfarce, assim como aquele de médico pediatra, que o David nos revelou ter adotado na sua juventude com propósito de alcançar lugares e envolver pessoas na sua luta pela saúde. Não acontecia uma aula sequer, sem que David provocasse uma tremenda inquietação nos nossos corações ao falar sobre saúde, desenvolvimento e Atenção Primária à Saúde com aquela crítica tão visceral aos determinantes sociais e econômicos da saúde. O ativista também não perdia oportunidade de nos convidar, tanto os alunos novos, como os veteranos, para seguir debatendo com ele, depois dos horários de aulas, com a explícita intenção de nos conquistar para o People’s Health Movement (PHM).

A Escola de Saúde Pública da UWC foi idealizada por David e demais fundadores para, por meio de seus cursos de pós-graduação,gerar capacidades preferencialmente entre os profissionais vivendo no continente africano, mas podendo também estender sua abrangência para atingir pessoas de outras regiões subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, como foi o meu caso, sendo profissional da saúde e morando no Brasil. Essa preferência da Escola em capacitar estudantes vindo de países do ‘terceiro mundo’ revelou em seus professores, e particularmente em David, a dedicação e paciência necessárias para acolher e alavancar estudantes em condições menos favoráveis, ajudando-os a não desistir do curso por problemas que iam desde o campo pessoal e financeiro até a pouca habilidade com o idioma.

De forma peculiar, eu soube justamente por David desta disposição da Escola em diminuir barreiras para receber e manter os estudantes, sem preconceito algum. Foi no dia em que eu conheci David pessoalmente. Ele apresentava o programados cursos de pós-graduação11 University of the Western Cape. Programme Handbook 2020. Postgraduate Programme in Public Health. School of Public Health. UWC. Cape Town. 2020. [acesso em 2019 jan 14]. Disponível em: https://www.uwcsoph.co.za/images/Program_handbook/2020_SOAPH_Programme_Handbook_Final.pdf.
https://www.uwcsoph.co.za/images/Program...
da Escola numa sessão da Segunda Assembleia do PHM, ocorrida no ano de 2005 na cidade de Cuenca, Equador. A configuração dos cursos me encantou e me senti muito entusiasmada com a ideia de realizar o mestrado. Ao final da palestra, fui timidamente falar com David, para dizer do meu interesse no curso, mas já revelando a ele um provável empecilho para a minha entrada no mestrado. Contei ao David que, depois de ter passado pelas etapas iniciais de seleção para mestrado numa universidade britânica, e ter recebido a carta de aceite daquela universidade, fui rejeitada para receber a bolsa por causa da minha idade ‘avançada’. Fiquei muito desolada, supondo que aos 45 anos, na época, não teria mais chance de iniciar uma formação acadêmica do porte de um mestrado. Mas David logo desfez minha preocupação, respondendo com sarcasmo: “You should apply, Denise. We accept old ladies!” (“Você pode se inscrever, Denise. Nós aceitamos velhinhas!”). Acabamos rindo da tal senhorinha! E só mais adiante compreendi a importância para o fortalecimento da saúde pública global de existir uma escoladaquela envergadura, com uma política de ‘portas abertas’ e tão acolhedora.

Já nesse primeiro encontro com David, ele me influenciou definitivamente, a ponto de eu direcionar todos os meus esforços para conseguir ser admitida no mestrado da Escola de Saúde Pública da UWC e, como consequência natural do acolhimento recebido naquela Escola, obtive a energia para, finalizado o mestrado, seguir como estudante de doutorado na mesma universidade.

E depois de muitos anos, chegou o dia da cerimônia de graduação no doutorado. Era abril de 2017. Eu estava na Cidade do Cabo, acompanhada pelo meu filho mais novo. Para minha surpresa e satisfação, David nos convidou para um jantar com sua família em sua casa. Confirmando sua característica cordialidade, David chamou também seu filho mais novo, o Oscar, para, segundo o David, fazer companhia para o meu filho durante o jantar. E fomos até a sua casa um dia antes de voltarmos ao Brasil. Eu estava encerrando ali, na companhia do David e sua família, uma etapa muito significativa da minha vida! Por isso, comentei com David que esperava ver aquele meu filho, estudante de medicina, tendo a oportunidade de frequentar a Escola de Saúde Pública da UWC, e também tendo a honra de ser seu aluno. No que David prontamente disse, dirigindo-se ao meu filho: “come and stay with us” (“venha e fique conosco”). Me comoveu ver tanta generosidade. Mas ao mesmo tempo, eu sabia que aquela era mais uma estratégia do ativista David para conseguir forjar mais um young health activist (jovem ativista pela saúde). Durante aquele jantar, tivemos a chance de relembrar tantas histórias pitorescas, como a viagem inesperada do David a Porto Alegre, em julho de 2007, aproveitando sua ida ao Brasil para um congresso em Salvador. A decisão da viagem se deu num intervalo de aulas na UWC naquele mês de julho. Perguntei ao David se, estando no Brasil, ele gostaria de retardar seu retorno para a Cidade do Cabo, para ir até Porto Alegre nos brindar com seu conhecimento. Ele respondeu simplesmente: “se me quiserem lá, eu vou”. E assim, testemunhei aquele David incansável, que não se furtou de estender sua jornada para colocar à disposição de mais pessoas sua imensa sabedoria. Também vi, em outubro de 2011, o David Sanders junto com seu camarada David Legge, ambos com seus cabelos brancos, sentados nos degraus da escada do Centro de Convenções no Rio de Janeiro, já tarde da noite. Quando todos deixavam o local, eles permaneciam ali com muitas folhas de papel ao seu redor, redigindo freneticamente as declarações do PHM para o dia seguinte. Observando de longe aquela cena, comentei emocionada com alguns colegas: “vejam só, são os nossos dois jovens ativistas em ação!”.

Dentre as tantas histórias contadas naquele jantar, fiz questão de relembrar o David sobre aquela primeira história: a da ‘old lady’. David não lembrava, é claro, que tinha me falado tal coisa. Mas rimos novamente! Agora me apego tanto aos detalhes daquele encontro, porque naquele momento, rememorando junto com o David toda minha trajetória de aprendizado e admiração, eu fazia, sem saber, um fechamento com ‘chave de ouro’ da minha convivência com ele.

O legado intelectual de David Sanders é inquestionável. A inspiração de suas mensagens aos ativistas pela saúde é forte e eterna. Mas quem vai substituir aquele seu sarcasmo genuíno?

Meu muito obrigada a ti, Professor David Sanders!

Referência

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jan 2020
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br