Saúde pública, ciência e sociedade: desafios e perspectivas

Nilson do Rosário Costa Gisela Cordeiro Pereira Cardoso Hermano Albuquerque de Castro Marcelo Guimarães Araújo Maria de Fátima Moreira Sobre os autores

ESTA EDIÇÃO DA REVISTA ‘SAÚDE EM DEBATE’ É RESULTADO do compromisso institucional da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), para a disseminação do conhecimento sobre o impacto da pandemia da Covid-19 na ciência e na sociedade. Os efeitos institucionais e organizacionais associados às medidas de controle sanitário são apresentados e discutidos por artigos, ensaios, revisões e resenha neste número temático especial.

As primeiras ondas da pandemia da Covid-19 desafiaram o modelo clássico de enfrentamento das doenças transmissíveis pela ausência das ações estritamente farmacológicas no portfólio da saúde pública: as vacinas e antivirais não estavam disponíveis para controlar a incidência e reduzir a letalidade causada pelo Sars-CoV-2. Naquele momento, restou ao campo da saúde pública a proposição de medidas de distanciamento social de diferentes gradações que paralisaram a atividade econômica e afetaram, especialmente, as populações vulneráveis, os pobres, as mulheres e os trabalhadores de modo geral. A pandemia aprofundou as desigualdades sociais vividas no Brasil e no mundo. A ausência de políticas públicas para prevenção da Covid-19 e o desmonte das legislações, bem como das redes de proteção sociais, impactaram significativamente a saúde dos trabalhadores em diversas categorias11 Mendes R. Trabalho, saúde e barbárie social: o caso da pandemia da Covid-19 no Brasil, sua determinação social e a importância do mundo trabalho. In: Alves G, Vizzaccaro-Amaral AL, organizadores. Trabalho, Saúde e Barbárie Social - Pandemia, Colapso Ecológico e Desenvolvimento Humano. Marília: Projeto Editorial Praxis; 2021; p. 163-184..

A implantação de medidas massivas de distanciamento social, entre as quais, a quarentena, expôs a argumentação científica e transformou a política governamental para a pandemia em uma arena disputada por lideranças políticas negacionistas, como o presidente Bolsonaro, formadores messiânicos de opinião nas novas mídias sociais e, paradoxalmente, setores da profissão médica. A falta transitória de soluções tecnológicas para solucionar a pandemia ampliou o negacionismo ativo em relação à eficácia da biomedicina, fato ainda observado, em escala inquietante, na campanha de difamação das vacinas contra o novo coronavírus.

As decisões negacionistas do presidente brasileiro para o controle e a mitigação da pandemia da Covid-19 submeteram também o arranjo federativo cooperativo nacional à monumental estresse. Ele tornou-se reconhecido internacionalmente como exemplo de dirigente que respondeu de modo caótico, irresponsável e inepto à ameaça da pandemia, vetando o lockdown, promovendo medicamentos ineficazes e disseminando a hesitação vacinal22 Baldwin P. Fighting the First Wave. Why the Coronavírus Was Tackled so Differently Across the Global. Cambridge: Cambridge University Press; 2021..

Essa constatação motivou a instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado Federal, no começo de 2021, para investigar a conduta do Executivo Federal e do Ministério da Saúde (MS) durante os primeiros ciclos da pandemia. A CPI elencou as iniciativas propositadas do presidente brasileiro, que subordinou o MS à sua agenda negacionista, ameaçando a ação governamental de toda a federação. A CPI apurou que não apenas houve omissão dos órgãos oficiais de comunicação no combate aos boatos e à desinformação como também existiu forte atuação da cúpula do governo, em especial, do presidente da República, no fomento à disseminação de fake news (notícias falsas)33 Brasil. Senado Federal. Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia. Brasília, DF. 2021 out. [acesso em 2021 mar 20]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/10/20/leia-a-integra-do-relatorio-final-da-cpi-da-pandemia-apresentado-por-renan-calheiros-no-senado.
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Não resta dúvida hoje que a pandemia da Covid-19 interrompeu a longa e relativamente estável relação da sociedade contemporânea com os eventos massivos do adoecimento e morte associados às doenças transmissíveis e parasitárias. Os estudos clássicos chamaram a atenção para o papel da universalização do acesso à água, das instalações de esgoto e da segurança dos alimentos para o progresso sanitário inicial das economias centrais.

Contudo, a partir do século XX, o controle de vetores, a imunização e a introdução contínua de novos fármacos assumiram o protagonismo nas intervenções médico-sanitárias, reduzindo o risco coletivo. Mesmo em países periféricos, sem infraestrutura urbana e universalização efetiva do acesso à assistência à saúde, o impacto do controle de vetores, vacinas e novos medicamentos na redução da morbidade e da mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias foi notável44 Costa NR, Silva PRF, Lago MJ, et al. A capacidade institucional do setor saúde e a resposta à Covid-19 em perspectiva global. Ciênc. Saúde Colet. 2021; 26(10):4645-4654..

No Brasil, por exemplo, observa-se, desde a década de 1950, a significativa diminuição na morbidade associadas às doenças infecciosas e parasitárias. As intervenções biomédicas mantiveram controlado esse grupo de enfermidades, ainda que com alta incidência e letalidade nas áreas sem as condições adequadas de moradia e saneamento e acesso à atenção especializada e hospitalar. Em termos de vidas perdidas, o preço desse modelo de segregação espacial e acesso desigual ao cuidado à saúde durante a pandemia, somado ao negacionismo do governo federal, tem sido elevadíssimo para a população brasileira. Essa comprovação é especialmente inquietante quando se confirma que as vacinas para o controle da Covid-19 não foram disponibilizadas às nações mais pobres do planeta na escala observada no Brasil. Nesse cenário trágico, os trabalhos reunidos neste número temático especial apontam para o desafio da construção de um novo modelo de desenvolvimento social e para a urgente ampliação do papel regulatório e de provisão de serviços do SUS.

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    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

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    Mendes R. Trabalho, saúde e barbárie social: o caso da pandemia da Covid-19 no Brasil, sua determinação social e a importância do mundo trabalho. In: Alves G, Vizzaccaro-Amaral AL, organizadores. Trabalho, Saúde e Barbárie Social - Pandemia, Colapso Ecológico e Desenvolvimento Humano. Marília: Projeto Editorial Praxis; 2021; p. 163-184.
  • 2
    Baldwin P. Fighting the First Wave. Why the Coronavírus Was Tackled so Differently Across the Global. Cambridge: Cambridge University Press; 2021.
  • 3
    Brasil. Senado Federal. Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia. Brasília, DF. 2021 out. [acesso em 2021 mar 20]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/10/20/leia-a-integra-do-relatorio-final-da-cpi-da-pandemia-apresentado-por-renan-calheiros-no-senado
    » https://www.brasildefato.com.br/2021/10/20/leia-a-integra-do-relatorio-final-da-cpi-da-pandemia-apresentado-por-renan-calheiros-no-senado
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    Costa NR, Silva PRF, Lago MJ, et al. A capacidade institucional do setor saúde e a resposta à Covid-19 em perspectiva global. Ciênc. Saúde Colet. 2021; 26(10):4645-4654.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2021
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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