Os governos estaduais no enfrentamento da Covid-19: um novo protagonismo no federalismo brasileiro?

André Luís Bonifácio de Carvalho Edjavane Rocha Roberta Fonseca Sampaio Assis Luiz Mafort Ouverney Sobre os autores

RESUMO

A Constituição de 1988 estabeleceu um modelo de federalismo cooperativo buscando criar bases institucionais para articular de maneira funcional a atuação da União, dos estados e dos municípios, em especial, em conjunturas críticas que exigem uma resposta a partir da expressiva mobilização de recursos, atores e instituições O objetivo deste artigo foi apresentar uma análise da evolução das ações desenvolvidas pelos governadores de 11 estados brasileiros no enfrentamento da pandemia da Covid-19, procurando identificar a tendência de suas ações ante as pressões geradas na dinâmica das relações intergovernamentais. Foram analisados 701 decretos publicados no período de fevereiro a outubro de 2020, considerado a primeira onda da pandemia, organizados e analisados a partir de três eixos: medidas de aprimoramento das políticas e serviços de saúde; políticas de proteção do emprego e renda; medidas administrativas e de regulação social e gestão territorial. Os resultados mostram a existência de um protagonismo dos governadores diante da descoordenação do governo federal com destaque para o exercício de competências constitucionais por meio de medidas de cooperação horizontal, prática de aprendizagem regional e associativa e organização de medidas de intervenção social que tiveram papel importante no combate a pandemia.

PALAVRAS-CHAVE
Federalismo; Estado; Covid-19

Introdução

A emergência e a rápida expansão da pandemia de Covid-19 no mundo e, particularmente, no Brasil têm resultado em demandas crescentes que incidem na capacidade do País em coordenar políticas públicas integradas e em tempo oportuno, provocando pressões expressivas sobre a administração pública e as instituições nacionais, bem como mobilizando os principais atores sociais, quais sejam: governadores, prefeitos, organizações de classe, imprensa, conselhos de saúde, entre outros.

Os desafios que se impõem no âmbito dessa agenda abrangem temas diversos, como a produção de informações e sua comunicação à sociedade, a construção de planos de emergência, a gestão territorial e da infraestrutura de transporte, a compra e a distribuição de insumos e equipamentos, a contratação e a formação de profissionais de saúde, a edição de normas que regulam a dinâmica social, a definição de políticas de garantia de renda e proteção ao emprego, a mediação de conflitos e a construção de pactos entre os atores políticos, entre outros.

Nesse sentido, no campo da coordenação de políticas, tais pressões exigem a construção de estratégias de diversas naturezas (regulatórias, institucionais, gerenciais, financeiras etc.) para lidar tanto com a crescente demanda pela ampliação de ações e serviços de saúde, que tende a levar ao limite o emprego de profissionais, insumos e equipamentos; quanto com a necessidade de conferir maior articulação às áreas e estruturas de governo e regular a dinâmica social e econômica.

A Constituição Federal de 1988 (CF/88) estabeleceu um modelo de federalismo cooperativo e integrado buscando criar bases institucionais para articular de maneira funcional a atuação da União, dos estados e dos municípios na construção de tais estratégias, em especial, em conjunturas críticas que exigem uma resposta rápida a partir da expressiva mobilização de recursos, atores e instituições11 Souza C, Fontanelli F. Antídotos institucionais do federalismo brasileiro: a Covid-19 mudou a dinâmica federativa? In: Avritzer L, Kerche F, Marona M. Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica; 2021. p. 135-150..

Esse modelo, cujo principal expoente é o Sistema Único de Saúde (SUS), caracteriza-se por uma significativa expansão do papel dos governos locais, que assumiram a responsabilidade pela implementação de políticas e a gestão de unidades de prestação de serviços. Os estados adotaram um papel intermediário, assumindo parte dos serviços de maior complexidade assim como as reponsabilidades pela coordenação federativa em seu território com ações de apoio aos municípios. A coordenação nacional é exercida pela esfera federal, que passou a atuar como indutora de políticas e programas estratégicos e reguladora das responsabilidades exercidas pelas esferas subnacionais11 Souza C, Fontanelli F. Antídotos institucionais do federalismo brasileiro: a Covid-19 mudou a dinâmica federativa? In: Avritzer L, Kerche F, Marona M. Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica; 2021. p. 135-150..

A coordenação federativa ou intergovernamental pode ser definida como a forma de integração, compartilhamento e decisão conjunta entre os entes federados. Ao longo da vigência do SUS, a diretriz constitucional o estabelece como um sistema decentralizado e com única direção em cada esfera de governo. Essa diretriz foi implementada, na prática, por meio da relação direta entre União e munícipios. Esse modelo, associado à forma que a federação está organizada, produziu um afastamento dos estados na coordenação federativa do SUS22 Vieira FS, Servo LMS. Covid-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde debate. 2020 [acesso em 2021 mar 3]; 44(esp);100-113. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/44SVpkjDHB6QcR5x4NtTNwf/?lang=pt#:~:text=Pondera%20que%20a%20coordena%C3%A7%C3%A3o%20federal,desses%20instrumentos%20pelo%20governo%20federal .
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Entretanto, ao longo do período da pandemia, esse padrão cooperativo e integrado, com papel expressivo de um coordenador nacional, tem sido confrontado e esvaziado pelo estilo de condução governamental do Presidente da República, que favorece o conflito e o confronto, dificulta a negociação, tende a estressar, e, mesmo, levar ao limite não só os mecanismos de coordenação federativa do SUS, mas também todo o arcabouço político-institucional da federação brasileira33 Fleury S. Pandemia, contradições e inovações no federalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Fiocruz/CEE; 2020. [acesso em 2021 fev 28]. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1179
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Nesse sentido, é válido valer-se de um conceito que vem sendo apresentado por Abrúcio et al.44 Abrúcio FL, Grin EJ, Franseze C, et al. Combate à Covid-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev Adm Pública. 2020 [acesso em 2021 fev 28]; 4(4):663-677. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-76122020000400663&script=sci_arttext
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que diz respeito ao ‘federalismo bolsonarista’, o qual se conjuga com outras denominações como ‘hiperpresidencialismo bolsonarista’55 Augusto WP. O hiperpresidencialismo bolsonarista: a sala de máquinas. Justificando. 2020. [acesso em 2021 fev 28]. Disponível em: https://www.justificando.com/2020/05/14/o-hiper-presidencialismo-bolsonarista/
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apresentado por Ceson e Barcelos66 Censon D, Barcelos M. O papel do Estado na gestão da crise ocasionada pela Covid-19: visões distintas sobre federalismo e as relações entre União e municípios. Rev Bras Gestão Desenvolv Regional. 2020 [acesso em 2021 fev 28]; 16(4):49-63. Disponível em: https://www.rbgdr.net/revista/index.php/rbgdr/article/view/5977
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. Ambos os conceitos apresentam uma visão hierárquica, top down, que considera a União como centralizadora e conservadora na relação institucional e política em relação aos estados e municípios.

Nessa linha, segundo Nobre77 Nobre M. Ponto Final: a Guerra de Bolsonaro contra a Democracia. São Paulo: Todavia; 2020., o governo Bolsonaro, desde seu início, opôs-se firmemente ao ‘espírito’ da CF/88, desafiando o modelo do federalismo cooperativo basilar na Carta Magna. Assim, segundo Souza e Barberia88 Souza TCM, Barberia L. Covid-19: Políticas Públicas e a Sociedade. Boletim nº 20. Rede de Pesquisa Solidária. 2020. [acesso em 2021 fev 28]. Disponível em: https://redepesquisasolidaria.org/boletins/boletim20/sem-estrategia-o-governo-federal-estimula-a-fragmentacao-do-pais-e-deixa-de-coordenar-aresistencia-a-covid-19/
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, no enfrentamento da pandemia da Covid-19, o Brasil adotou a descoordenação como opção política, fato que explica a passagem de três ministros da saúde em menos de dois anos de gestão, com a marca da militarização do Ministério da Saúde, e com a entrada do último ministro que desconsiderou a coordenação federativa de organização do SUS.

Apesar de o Brasil dispor de um sistema universal de saúde, e de ter constituído um sistema de respostas às emergências de saúde pública, ele está assumindo a segunda liderança mundial com o maior número de mortes provocadas pela Covid-19 com mais de 300 mil óbitos registrados de março de 2020 a março de 202199 Fundação Oswaldo Cruz. Fiocruz: MonitoraCovid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021. [acesso em 2021 fev 28]. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/
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. Dessa forma, um forte estresse sobre os mecanismos de governança no Brasil fez com que o federalismo institucional, pactuado, democrático e participativo não desse conta de enfrentar uma situação que junta a pandemia e o confronto, um autoritarismo exacerbado por um lado e uma situação que exige agilidade para tomadas de decisão por outro. Para fazer enfrentar os desafios impostos pela pandemia, os governadores estaduais assumiram o protagonismo das ações, organizando frentes de atuação que podem ser identificadas como normativas, organizativas e de articulação política33 Fleury S. Pandemia, contradições e inovações no federalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Fiocruz/CEE; 2020. [acesso em 2021 fev 28]. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1179
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Federalismo cooperativo e o papel da coordenação estadual

O federalismo como arranjo institucional tem expressiva relevância para a análise das políticas públicas no Brasil, não só por estabelecer a configuração do sistema político, mas também por circunscrever a dinâmica de formulação e implementação de programas1010 Ribeiro JM, Moreira MR, Ouverney AM, et al. Federalismo e políticas de saúde no Brasil: características institucionais e desigualdades regionais. Ciênc. Saúde Colet. 2018 [acesso em 2021 fev 28]; 23(6):1777-1789. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1179
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Considera-se que o federalismo é um modo de organização que une comunidades menores no âmbito de um sistema político mais abrangente por meio da distribuição de poder entre a união e as unidades constituintes, de forma que permita proteger a existência e a autoridade tanto do domínio nacional quanto dos entes subnacionais, sendo que ambos compartilham os processos gerais de tomada de decisão e de execução de ações governamentais1111 Elazar D. American Federalism: A View from the States. New York: Harper and Row; 1984..

Segundo Abrúcio1212 Abrúcio FL. A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Rev Sociol Polit. 2005 [acesso em 2021 fev 28]; 24:41-67. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782005000100005&lng=pt&tlng=pt
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, as federações nascem em contextos históricos que podem ser caracterizados como uma ‘situação federativa’, definida pela presença de certo senso de identidade nacional em uma população que apresenta expressiva diversidade (territorial, socioeconômica, linguística, cultural, política etc.), acompanhada de um discurso político historicamente construído de ‘unidade na diversidade’. Nas federações, os entes constitutivos possuem direitos originários de soberania que os colocam em situação constitucional de igualdade com o governo nacional, ou seja, entre ambos, estabelece-se um contrato de compartilhamento de soberania sobre um território e uma população.

As instituições federativas são resultantes do processo de formação da autoridade territorial dos estados nacionais modernos e se desenvolvem a partir de movimentos constantes de conflito entre os entes constituintes e uma autoridade central1313 Broschek J. Historical Institutionalism and the Varieties of Federalism in Germany and Canada. Journal Federalism. 2012 [acesso em 2021 fev 28]; 42(4):662-687. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41682907?seq=1
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. A configuração assumida por uma federação ao final de um período depende da ênfase atribuída, ao longo de sua trajetória, a soluções políticas de caráter mais intrainstitucional (típicas do federalismo integrado) ou interinstitucional (comuns no federalismo dual), sendo que, na prática, a maioria dos países combina proporções diferentes desses dois mecanismos básicos de organização federativa, as quais podem apresentar, inclusive, expressivas variações internas no jogo entre a esfera federal e os entes constituintes1313 Broschek J. Historical Institutionalism and the Varieties of Federalism in Germany and Canada. Journal Federalism. 2012 [acesso em 2021 fev 28]; 42(4):662-687. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41682907?seq=1
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No caso do federalismo brasileiro, nas últimas três décadas, a descentralização da política de saúde promoveu expressivas alterações nas relações estabelecidas entre a União, os estados e os municípios no campo da saúde, resultando em mudanças simultâneas na divisão federativa das atribuições, na organização e gestão da rede de serviços, na elaboração, implementação e avaliação de políticas e programas, no financiamento e na tomada de decisões.

Em todas essas dimensões, observou-se a transferência de competências da União para os estados e municípios, que assumiram, em seus respectivos territórios, a gestão operacional do SUS, enquanto as instâncias centrais se especializaram na formulação, apoio à implementação, e avaliação de políticas e programas considerados de expressiva relevância1414 Sauter AMW, Girardon-Perlini NMO, Kopfrem AW. Política de regionalização da saúde: das normas operacionais ao pacto pela saúde. Rev Min Enferm. 2012 [acesso em 2021 fev 28]; 16(2):265-274. Disponível em: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/528
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Esse novo desenho federativo alterou profundamente a natureza das relações intergovernamentais no setor saúde. Em consequência, o padrão vertical de relações entre as três esferas, típico de modelos mais coercitivos de federalismo, predominante no início da década de 1990, foi paulatinamente sendo substituído por uma governança de natureza mais cooperativa, em que as decisões são tomadas de forma conjunta, as responsabilidades são compartilhas e a ação interdependente tornou-se essencial para a condução do SUS.

Essa interdependência, entretanto, orienta-se por uma distribuição específica de competências entre as esferas de Estado que deve compatibilizar os princípios de descentralização e unicidade, compondo um sistema de saúde com comandos, unificados no âmbito nacional, estadual e local, e articulados de forma hierárquica e regionalizada, com o objetivo de integrar as ações de atenção e vigilância, programas e serviços de saúde em todo o País1515 Noronha JC, Tavares L. A política de saúde no Brasil nos anos 90. Ciênc. Saúde Colet. 2001 [acesso em 2021 fev 28]; 6(2):445-450. Disponível em: https://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/edicoes/a-politica-de-saude-no-brasil-anos-90/22?id=22
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,1616 Magalhães Júnior HM. Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade. Divulgação em Saúde para Debate. 2014 [acesso em 2021 fev 28]; 52:15-37. Disponível em: https://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/12/Divulgacao-52.pdf
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Essa concepção fundamenta-se em uma arquitetura de organização federativa que combina um conjunto de competências comuns ou concorrentes com a definição de uma divisão específica de competências federativas. Nessa lógica, caberia às três esferas, de maneira conjunta, definir mecanismos de controle e avaliação de serviços de saúde, monitorar o nível de saúde da população, elaborar normas para regular a contratação de serviços privados, gerenciar recursos orçamentários e financeiros, definir políticas de recursos humanos, realizar o planejamento de curto e médio prazo e promover a articulação de políticas e planos de saúde, entre outros1717 Ouverney ALM. Federalismo e descentralização do SUS: formação de um regime polarizado de relações intergovernamentais na década de 1990. [tese] Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 2015..

De forma específica, à União, caberiam atribuições de natureza estratégica para o desenvolvimento da política de saúde, tais como formular, apoiar a implementação e avaliar, em âmbito nacional, políticas prioritárias, elaborar o planejamento estratégico do SUS em âmbito nacional, coordenar sistemas de alta complexidade, de laboratórios de saúde pública e de vigilância epidemiológica e sanitária, formular e participar da execução da política nacional de produção de insumos e equipamentos para a saúde, promover a descentralização de ações e serviços de saúde para estados e municípios, estabelecer e coordenar os sistemas nacionais de auditoria e ouvidoria, entre outros1717 Ouverney ALM. Federalismo e descentralização do SUS: formação de um regime polarizado de relações intergovernamentais na década de 1990. [tese] Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 2015..

Os municípios estariam encarregados da prestação direta de ações e serviços de saúde, em especial, dos cuidados primários e de média complexidade, quando possível. Entre suas principais atribuições, estariam as de executar serviços de vigilância epidemiológica e sanitária, de alimentação e nutrição, de saneamento básico e de saúde do trabalhador, implementar a política de insumos e equipamentos em saúde, controlar e fiscalizar os procedimentos dos serviços privados de saúde, planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde, ente outros1818 Brasil. Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990..

Finalmente, os estados teriam responsabilidades típicas de articulação sistêmica a serem exercidas por meio de atividades de planejamento e coordenação regional de todas as políticas, programas, ações e serviços de saúde presentes em seu território. Esse posicionamento especial no âmbito das relações federativas combina, de maneira singular, o exercício de atribuições típicas da União com as dos municípios, além de ser o ente responsável por promover a articulação entre as atividades desempenhadas por essas duas esferas, como pode ser visto no quadro 1 abaixo que sintetiza as responsabilidades definidas no art. 17 da Lei nº 8.080/901818 Brasil. Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990.:

Quadro 1
Atribuições da esfera estadual na gestão do SUS

Esse amplo leque de atribuições exige que as Secretarias Estaduais de Saúde (SES) desenvolvam e aperfeiçoem competências para exercer um conjunto extenso de funções que vão desde o monitoramento de indicadores de situação de saúde até a regulação sistêmica das redes de unidades de alta complexidade, passando pela prestação, controle e avaliação dos serviços de saúde, a elaboração e sistematização de planos de médio e longo prazo, o apoio técnico e financeiro aos municípios nas ações de descentralização, a coordenação da rede estadual de laboratórios de saúde pública e hemocentros, a elaboração e a implementação de política de insumos e equipamentos em saúde, entre outras.

A inserção da esfera estadual no SUS, portanto, exige que as secretarias desempenhem simultaneamente papéis muito diferentes, o que requer a constituição de estruturas, processos e sistemas de informação especializados, visando desenvolver áreas técnicas que dominem diferentes competências de gestão.

Ao longo das últimas três décadas, os estados tiveram expressivas dificuldades para desempenhar adequadamente suas funções, com diferenças entre os casos específicos, mas, no geral, configurando um regime polarizado de relações intergovernamentais, com maior protagonismo da União e dos municípios1919 Ouverney AM, Fleury S. Polarização federativa do SUS nos anos 1990: uma interpretação histórico-institucionalista. Rev Adm Pública. 2017 [acesso em 2021 fev 28]; 51(6):1085-1103. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-897259
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Diversos são os fatores, presentes na literatura setorial, empregados para explicar as limitações observadas no papel da gestão estadual: 1) o modelo de descentralização focado na municipalização; 2) o endividamento crescente e acirrado pela política monetária do Plano Real; 3) o crescente protagonismo do movimento municipalista e de suas entidades de representação; 4) a perda e não renovação de quadros qualificados de gestores e técnicos; 5) o modelo de reforma do Estado da década de 1990 que fortaleceu a coordenação federal de políticas e programas; 6) o não cumprimento do percentual mínimo de aplicação da Emenda Constitucional nº 29/00 em saúde, em vários casos; 7) a centralização do processo legislativo federal, que enfraquece a capacidade de coordenação dos governadores; 8) fragmentação dos sistemas de planejamento estadual e coordenação regional das SES, entre outros1919 Ouverney AM, Fleury S. Polarização federativa do SUS nos anos 1990: uma interpretação histórico-institucionalista. Rev Adm Pública. 2017 [acesso em 2021 fev 28]; 51(6):1085-1103. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-897259
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20 Levcovitz E, Lima LD, Machado CV. A política de saúde nos anos 90: relações intergovernamentais e o papel das normas operacionais básicas. Ciênc. Saúde Colet. 2001 [acesso em 2021 fev 28]; 6(2):269-291. Disponível em: http://www6.ensp.fiocruz.br/repositorio/resource/356827#:~:text=P%C3%A1gina%20inicial-,Pol%C3%ADtica%20de%20sa%C3%BAde%20nos%20anos%2090%3A%20rela%C3%A7%C3%B5es%20intergovernamentais%20e,papel%20das%20Normas%20Operacionais%20B%C3%A1sicas&text=Ao%20se%20analisar%20a%20pol%C3%ADtica,do%20Sistema%20%C3%9Anico%20de%20Sa%C3%BAde
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21 Cordeiro H. Descentralização, universalidade e equidade. Ciênc. Saúde Colet. 2001 [acesso em 2021 fev 28]; 6(2):319-328. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/630/63060204.pdf
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22 Dain S. Os vários mundos do financiamento da Saúde no Brasil: uma tentativa de integração. Ciênc. Saúde Colet. 2007 [acesso em 2021 fev 28]; 12(supl):1851-1864. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/630/63009808.pdf
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23 Cheibub JA, Figueiredo A, Limongi F. Partidos políticos e governadores como determinantes do comportamento legislativo na câmara dos deputados, 1988-2006. Dados. 2009 [acesso em 2021 fev 28]; 52(2):263-299. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/218/21817690001.pdf
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24 Fleury S. Reforma del Estado. Rev Adm Pública. 2001;35(5):7-48.
-2525 Piola SF, Paiva AB, Sá EB, et al. Financiamento Público da Saúde: Uma História a Procura de Rumo. Rio de Janeiro: IPEA; 2013. Texto para Discussão 1846.
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Entretanto, desde março de 2020, as pressões decorrentes da conjuntura da pandemia da Covid-19 fizeram com que os estados passassem a exercer maior protagonismo em diversas funções estabelecidos na CF/88 e nas Leis Orgânicas da Saúde, em especial, porque o Ministério da Saúde se eximiu de suas responsabilidades como coordenador nacional do SUS.

Um dos principais instrumentos empregados para ampliar o protagonismo dos governos estaduais na gestão da pandemia foram os decretos emitidos pelos governadores com o objetivo de regulamentar questões relevantes. Esses decretos foram empregados para orientar, estabelecer normas de organização social, funcionamento do comércio e serviços, montagem das estruturas de coordenação de políticas, entre outras medidas.

Sendo assim, este artigo pretende apresentar a evolução das ações desenvolvidas pelos governadores de 11 estados, abrangendo todas as regiões brasileiras, no enfrentamento a pandemia da Covid-19, procurando identificar a tendência de suas ações ante as pressões geradas na dinâmica das relações intergovernamentais no que tange à gestão de políticas de saúde, na regulação social e gestão territorial e nas medidas econômicas.

Metodologia

As análises contidas no presente artigo são resultado de um conjunto de estudos realizados no âmbito da pesquisa ‘Novo Federalismo no Brasil? Tensões e Inovações em Tempos de Covid-19’2626 Ouverney ALM, Freury S, Carvalho ALB, et al. Novo Federalismo no Brasil? Tensões e Inovações em Tempos de Covid-19. Projeto executivo. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz; 2020., conduzida pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (CEE/Fiocruz). No âmbito geral da pesquisa, todos os estados brasileiros serão pesquisados. No entanto, esta pesquisa abrangeu a análise de 11 estados.

Esta pesquisa se configura em um estudo de caso2727 Meireles AD, Cunha DESL, Maciel EM. Estudo de Caso na Pesquisa Qualitativa em Educação: uma metodologia. In: Anais do 6º Encontro de Pesquisa em Educação; 2010, Teresina. Teresina: EDUFPI; 2010. das relações federativas no contexto de pandemia da Covid-19. Compreende-se que o cenário acirra conflitos de poder previamente existentes em relação a competências, distribuição de recursos, desigualdades e posições políticas. O pressuposto de uma ação coordenada oriunda de um processo de construção de consenso para combate à pandemia enfrenta limitações decorrentes da fragmentação do sistema político, da polarização ideológica, da crise econômica, do estilo de liderança e da fragilidade institucional.

Trata-se, portanto, de um cenário catastrófico capaz de magnificar as principais questões e impasses do federalismo brasileiro, assim como evidenciar tendências e possíveis inovações. Dentro desse cenário, movimentam-se os principais atores e instituições federativas, definindo estratégias de ação, alianças, coalizões, enfrentamentos e suas consequências.

A estratégia de pesquisa se fundamenta em um esquema relacional que destaca os atores, sua dinâmica de atuação, as relações intergovernamentais estabelecidas em cada tema relevante no combate à pandemia e os resultados federativos, em uma perspectiva temporal de análise com base nos conceitos de conjuntura crítica e trajetória dependente2828 Capoccia G, Kelemen D. The Study of Crititcal Juncture: Theory, Narrative, and Counterfactuals in Historical Institutionalism. World Politics, 2007 [acesso em 2021 fev 28]; 59(3):341-369. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/world-politics/article/study-of-critical-junctures-theory-narrative-and-counterfactuals-in-historical-institutionalism/BAAE0860F1F641357C29C9AC72A54758
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. Para este artigo, foi destacada a análise do posicionamento normativo dos governos estaduais diante do enfrentamento da pandemia.

Os dados para o estudo foram coletados a partir de pesquisa documental2929 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016., que abrange coleta, sistematização e análise de textos oficiais e de natureza jurídica, tais como leis, decretos legislativos, acórdãos, decretos do poder executivo, portarias, notas de posicionamento, discursos, entre outras. Este estudo coletou, sistematizou e analisou decretos dos executivos estaduais referentes à pandemia da Covid-19 de 11 estados brasileiros selecionados a partir do diálogo com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e por representarem todas as regiões, são eles: Amazonas (AM), Bahia (BA), Ceará (CE), Distrito Federal (DF), Goiás (GO), Maranhão (MA), Pará (PA), Paraíba (PB), Rio de Janeiro (RJ), Rio Grande do Sul (RS) e São Paulo (SP).

Para escolha dos 11 estados, foi constituído um conjunto de critérios, quais sejam: abrangência regional com a participação de estados de todas as regiões brasileiras; acessibilidade dos pesquisadores e instituições parceiras aos dados de seus respectivos estados; posicionamentos dos governadores no enfrentamento da pandemia; situações críticas em relação à incidência da pandemia nos estados para o período do estudo; e validação da escolha dos estados em assembleia do Conass.

O período abrangido pela pesquisa teve início no mês de fevereiro de 2020, com a ocorrência do primeiro caso da Covid-19 no País, bem como das primeiras articulações institucionais para tratar desse tema. Os decretos analisados consideram desde a instituição do primeiro decreto em cada esfera estadual até outubro de 2020, que compreende o período considerado como primeira onda da circulação do vírus Sars-CoV-2 no Brasil3030 Mendes EV. O lado oculto de uma pandemia: a terceira onda da Covid-19 ou o paciente invisível. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde; 2020. [acesso em 2021 fev 28]. Disponível em: https://www.conass.org.br/biblioteca/o-lado-oculto-de-uma-pandemia-a-terceira-onda-da-covid-19-ou-o-paciente-invisivel/#:~:text=A%20rapidez%20com%20que%20se,%C3%A0s%20estrat%C3%A9gias%20de%20seu%20enfrentamento
https://www.conass.org.br/biblioteca/o-l...
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O processo para a coleta de dados se deu mediante da articulação entre o grupo de pesquisa e o Conass que desenvolveu um dispositivo de acesso aos atos normativos sobre Covid-19 acessados por meio da aba principal no link ‘Atos Normativos Estaduais’, que direciona para todos os estados e distrito federal.

Os decretos foram sistematizados em planilhas individuais e analisados a partir da organização em três eixos temáticos, conforme quadro 2.

Quadro 2
Eixos estratégicos e suas características específicas

Sendo assim, a base da análise e discussão dos resultados terá como escopo temas e conteúdos definidos nos eixos e empregados para conduzir as análises no plano das relações intergovernamentais, circunscrevendo, assim, o trabalho de coleta e sistematização de dados da pesquisa.

Resultados e discussão

A análise dos instrumentos normativos aplicados pelos governos estaduais foi realizada utilizando a linha do tempo da pandemia organizada a partir da dinâmica do impacto da Covid-19 durante a primeira onda, sendo de fevereiro até outubro de 2020.

O início da pandemia e a sua manutenção sustentada na transmissão comunitária e na dinâmica assíncrona de surgimento nos estados brasileiros, além da necessidade de aprendizado e elaboração e troca de informações nacionais e internacionais, provocaram um processo intenso de publicações normativas entre os estados brasileiros na tentativa de responder às demandas impostas.

Cabe destacar que os governos estaduais utilizaram os decretos como instrumento regulatório, mas as especificidades das ações de saúde foram distribuídas entre outros instrumentos, como notas técnicas, leis do executivo e resoluções da Comissão Intergestores Bipartite (CIB). A forma assíncrona de aparecimento do vírus e o tempo de aprendizagem está demonstrada na distribuição das publicações em cada estado, que se apresentam de forma sistematizada por meio da análise de 701 decretos governamentais publicados no período de fevereiro a outubro de 2020 em 11 estados e organizado em 3 eixos, a saber: Medidas de aprimoramento da política e dos serviços de saúde; Políticas de proteção do emprego e da renda e medidas administrativas; e regulação social e gestão territorial.

Medidas de aprimoramento da política e dos serviços de saúde

Como definição de análise, as medidas de aprimoramento das políticas e dos serviços de saúde dizem respeito a recuperação, aumento da capacidade dos serviços públicos na regulação dos fluxos inerentes à atenção à saúde, desenvolvimento de pesquisas e articulação com outros atores, tais como: definição de estratégias para a produção e aquisição de insumos, financiamento das ações de combate à pandemia, implantação de políticas de coordenação da gestão do trabalho em saúde, definição de protocolos para o uso de medicamentos e tratamentos específicos, montagem da estrutura de serviços de saúde (hospitais de campanha, leitos, respiradores, Equipamentos de Proteção Individual - EPI etc.), definição de protocolos para a gestão e cuidado de pessoas contaminadas, articulação com a rede privada de serviços de saúde, com organizações populares e com instituições acadêmicas.

A figura 1 demonstra que há uma concentração majoritária de publicações no Maranhão, no Rio de Janeiro, no Distrito Federal e na Bahia (21, 13, 15 e 8 respectivamente), correspondendo a 72% do total de decretos publicados nesse eixo. No entanto, a distribuição nos meses os diferenciou. Entre os primeiros três meses, os estados publicaram decretos que versavam sobre a organização dos serviços de atendimento, instalação territorial de estado de calamidade, compras de equipamentos, insumos, medicamentos, entre outros itens e organização dos protocolos e fluxos de ações; com exceção dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Goiás que iniciaram as publicações a partir do mês de maio.

Figura 1
Evolução mensal do número de decretos estaduais inseridos no eixo medidas de aprimoramento da política e dos serviços de saúde publicados na primeira onda da pandemia - fevereiro a outubro de 2020 nos 11 estados - valores absolutos (escalas diversas)

Os principais conteúdos publicados nos decretos dizem respeito a declaração de estado de calamidade pública e estruturação do comitê de emergência e de crise, que foram instituídos por todos os estados utilizando vários conceitos e diferentes composições, como foi o caso do estado do Rio de Janeiro que criou uma secretária estadual extraordinária. Além disso, alguns estados também constituíram comitês científicos com participações variadas. O estado do Ceará estruturou um comitê com uma ampla composição, incluindo a sociedade civil. Esses espaços de intermediação de conhecimentos e informações podem ter sido as experiências mais coletivas e participativas existentes durante a pandemia.

Quatro outros elementos merecem destaque nas publicações. O primeiro diz respeito à decisão publicada em decreto de requisição administrativa de leitos de UTI, acessórios, equipamentos, insumos e equipes de trabalhadores de hospitais privados para fins de uso público pelo SUS, a qual foi realizada pelo estado do Ceará e pelo Distrito Federal. O segundo elemento trata da requisição administrativa para ocupação temporária de um hospital da rede privada que se encontrava fechado, para estruturação de um hospital de campanha para atendimento exclusivo de pacientes com Covid-19, realizado pelo estado da Bahia.

O terceiro elemento considerado importante para a análise diz respeito à estruturação de espaços de acolhimento temporário para profissionais de saúde contaminados e que desejassem fazer o isolamento sanitário. Dois espaços diferentes foram estruturados, um com pagamento de auxílio temporário para aquelas pessoas consideradas de baixa renda e outro para os demais profissionais que apenas necessitassem do afastamento do seu ambiente de moradia. Essas duas ações foram realizadas pelo estado da Bahia.

Por último, duas ações desenvolvidas pelos estados do Pará no mês de maio de 2020 merecem destaque pela especificidade local na dinâmica da pandemia. Foi publicada uma série de medidas de verificação de óbitos e instituído o projeto Atende em Casa que serviu para realizar a triagem de casos graves no ambiente doméstico. Essas duas ações ocorreram durante o aumento de casos de óbitos no domicílio.

Políticas de proteção do emprego e da renda e medidas administrativas

Embora os governos estaduais tenham empregado o instrumento do decreto majoritariamente para produzir disposições voltadas para a regulação da dinâmica social e econômica em seus respectivos territórios, este também foi utilizado, com certa intensidade, nos campos de política fiscal, organização da administração pública e, eventualmente, emprego e renda.

A evolução do uso desse instrumento pelas unidades da federação nessas áreas, apresentada na figura 2, mostra duas tendências bem delineadas: uma relacionada com a evolução temporal da atividade normativa, e a outra, com o volume total de decretos emitidos.

Figura 2
Evolução mensal do número de decretos estaduais inseridos no eixo políticas de proteção do emprego e da renda e medidas administrativas publicados na primeira onda da pandemia nos 11 estados - fevereiro a outubro de 2020 - valores absolutos (escalas diversas)

A primeira tendência mostra certa convergência temporal na intensidade de edição dos decretos, com concentração da carga normativa nos meses iniciais da pandemia. Praticamente todas as unidades da federação analisadas aplicaram sua atividade normativa nos meses de março a abril. As principais exceções consistem no Amazonas e no Maranhão. O primeiro privilegiou, em especial, o mês de maio, bem como junho; enquanto o segundo concentrou seus poucos decretos nos meses de agosto, setembro e outubro. Igualmente, cabe menção ao estado da Bahia que manteve atividade expressiva também em maio.

A primeira análise mostra padrões diferentes de volume de decretos emitidos, distribuindo os 200 atos normativos em três padrões bem delineados, com assimetrias quantitativas claramente observáveis. Aqui, há um quadro bem diferente da primeira tendência.

Em um dos extremos, observa-se que o Amazonas emitiu 64 decretos, volume bem acima dos demais estados. Em um grupo intermediário, estão Rio de Janeiro, Bahia e Distrito Federal, que emitiram, respectivamente, 28, 25 e 24 decretos. Finalmente, no outro extremo, encontram-se os demais estados que emitiram entre 6 e 12 decretos (SP-12; PB-11; GO-9; MA-7 e PA-7, RS-6 e CE-4).

Essas diferenças podem ser o resultado de diversos fatores, tais como: o posicionamento do governador sobre a pandemia, a evolução do quadro epidemiológico, a situação fiscal do estado, a situação socioeconômica, a estrutura de organização da administração pública estadual, entre outros.

A grande maioria dos decretos editados pelos estados, no âmbito das áreas de emprego, renda, política fiscal e organização da administração pública, contém disposições voltadas para as seguintes situações: regular o trabalho do funcionalismo público e suas unidades no período da pandemia; criar instâncias e estruturas de coordenação da crise; adaptar a política fiscal e o orçamento anual ao novo contexto econômico; e manter o nível de renda e emprego da população e sustentar o equilíbrio financeiro das microempresas.

A adequação do funcionamento dos serviços públicos e do regime de trabalho dos funcionários públicos foi pauta de decreto de todos os estados analisados. As primeiras medidas tomadas abrangeram o afastamento de servidores sintomáticos, a instituição do regime de trabalho remoto (home office), a adequação dos sistemas de metas e remuneração, a suspensão de férias e licenças de servidores das áreas de saúde e segurança, em especial, a extensão das regras de funcionamento da gestão pública a prestadores contratados e conveniados, entre outras medidas.

Ao longo da primeira onda, também foi frequente a edição de decretos no campo fiscal, orçamentário e financeiro, com o objetivo de promover ajustes na estratégia de arrecadação do estado e no padrão de gastos para enfrentar os desafios trazidos pela pandemia.

Assim, disposições sobre questões como a gestão do pagamento de tributos atuais e dívida ativa, a concessão de benefícios fiscais, a prorrogação de prazos de vencimento de contas de serviços públicos de concessão estadual (água, luz etc.), a abertura de créditos adicionais suplementares no âmbito do orçamento estadual, o remanejamento de valores entre elementos de despesa, entre outros, foram emitidas e ajustadas em diversos momentos de acordo com a conjuntura do estado ao longo da primeira onda.

A transferência de renda temporária do fundo público, assim como a concessão de linhas de crédito, também foi estabelecida em vários estados por meio da edição de decretos do governador. Seja para complementar o auxílio nacional, seja para confrontar o governo federal no cenário político, diversos estados estabeleceram programas de renda na forma de transferência direta de valores ou em formatos indiretos, tais como vales alimentação, auxílios financeiros a estudante, distribuição de merenda escolar, descontos em tributos, abatimentos em contas de serviços públicos, entre outros.

Finalmente, vários estados, por meio de suas agências de fomento ao desenvolvimento, fundos especiais e bancos estaduais, criaram linhas de crédito para microempresas, com taxas de juros reduzida e prazos mais extensos.

Regulação social e gestão territorial

Como apresentado no desenho metodológico, o eixo regulação social e gestão territorial guarda relação com as medidas adotadas e com os conflitos decorrentes da ação governamental em relação a medidas de isolamento social, tais como: restrições a eventos e atividades culturais, esportivas ou religiosas; restrições ao comércio em geral e de atividades industriais; suspensão de aulas; restrições ao transporte terrestre, fluvial e marítimo de passageiros e estratégias de flexibilização.

Cabe destacar que, dos 701 decretos publicados, 425 (61%) estavam concentrados nesse eixo demostrando a premente necessidade da regulação estatal sobre as ações de circulação, mobilidade, lazer e serviços. A figura 3 mostra a evolução das publicações pelas unidades da federação evidenciando uma tendência de crescimento entre os meses de março e junho de 2020, com relativa estabilidade e quedas entre julho e outubro.

Figura 3
Evolução mensal do número de decretos estaduais inseridos no eixo regulação social e gestão territorial publicados na primeira onda da pandemia nos 11 estados - fevereiro a outubro de 2020 - valores absolutos (escalas diversas)

Nesse contexto, cabe destacar a Bahia (149), o Distrito Federal (72) o Amazonas (51) e o Rio Grande do Sul (50) que juntos correspondem a 75% dos decretos emitidos nesse eixo. Na sequência, temos o Rio de Janeiro (47), o Ceará (37), São Paulo (34) e o Maranhão (28), que somam 146, que corresponde a 34% dos decretos; e, por fim, os estados da Paraíba (10) e de Goiás (12) que juntos correspondem a 5% dos decretos.

As diferenças no volume das publicações dos decretos guardam relação com fatores que dizem respeito à evolução do quadro epidemiológico e à pressão sobre a rede de serviços de saúde orientados por alertas dados por sistemas de bandeiras e cores, bem como, com a situação socioeconômica e fiscal, a estrutura de organização da administração pública, a pressão e posição de grupos de especialistas em particular instituições científicas, e posicionamento do governador sobre a pandemia em cada estado.

Da leitura feita, identificou-se que a centralidade dos decretos estabeleceu-se, em grande medida, sobre a restrição de circulação, suspensão de atividades coletivas envolvendo atividades de lazer (cinemas, teatro, museu, zoológico, boates, entre outros), atividades no comércio e feiras livres, comércio de ambulantes, atividade religiosas, atendimento presencial em agências bancárias com exceção aos programas destinados aos beneficiários do auxílio emergencial e, em alguns estados, às pessoas com doenças graves.

Foi decretada a suspensão das aulas nas redes de ensino pública e privada, com a antecipação do recesso/férias em alguns casos. Por fim, foi feita a adequação do funcionamento dos serviços públicos e do regime de trabalho dos funcionários com a adoção de atividades remotas para grande parte dos servidores da educação.

Outro aspecto importante foi a regulação da circulação de transporte coletivo intermunicipal, público e privado, rodoviário e hidroviário, alternativo, entre outras, inclusive com a utilização de órgãos de segurança pública e de autoridades sanitárias, para o cumprimento das medidas impostas pelos decretos.

Considerações finais

Os achados da pesquisa mostram que, ao longo do período em estudo, instituído como a primeira onda, decorrentes da situação da pandemia de Covid-19, os estados passaram a desempenhar com mais veemência papéis estabelecidos na CF/88, os quais foram ratificadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em março de 2020. O STF assegurou aos governos estaduais e municipais o exercício de suas atribuições, propiciando a adoção e/ou manutenção de medidas restritivas durante a pandemia da Covid-19.

A decisão do STF, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 672, reiterou a gravidade da emergência causada pela pandemia da Covid-19, objetivando a efetivação da proteção à saúde e à vida, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para a efetivação das atividades do SUS. Ficou evidente na decisão que os entes federados possuem direitos originários de soberania constitucionalmente iguais ao governo nacional, demonstrando a necessária ampliação da cooperação entre os três poderes como instrumento essencial e viabilizador dos mecanismos constitucionais que ancoram o equilíbrio institucional e a manutenção da harmonia e independência entre os poderes essenciais ao combate da pandemia da Covid-19.

Foi possível depreender neste estudo que o federalismo brasileiro promoveu consideráveis alterações nas relações estabelecidas entre a União, os estados e os municípios no que tange à gestão da saúde, situação que implicou uma reconfiguração na divisão federativa das atribuições, na organização de ações e serviços, na implementação de políticas públicas diversas, fato que ficou explicitado nos achados da pesquisa por meio da análise dos decretos do executivo estadual.

A forma assíncrona de aparecimento do vírus nos estados durante a primeira onda e o tempo de aprendizagem, além da evidente posição ideológica dos governadores pesquisados, demonstrou que os governos estaduais pesquisados utilizaram a publicação dos decretos estaduais como forma de regular a atuação dos municípios no enfrentamento da pandemia.

Vimos, assim, que ações dos governadores, além de terem respaldo jurídico-legal, pautaram-se em evidências científicas e organizacionais vinculadas às ações no campo da regulação e gestão territorial, emprego, renda, finanças e administração pública e desenvolvimento de políticas e serviços de saúde, perfazendo para os 11 estados estudos de 701 decretos em 8 meses.

O eixo de pesquisa intitulado como as medidas de aprimoramento da política e dos serviços de saúde demonstrou o esforço dos estados em responder ao crescimento da pandemia atuando diretamente na aquisição e produção de insumos, implementando políticas de coordenação da força de trabalho, nos protocolos de atendimento terapêuticos e na gestão do cuidado, na constituição de comitês científicos e, sobretudo, na estruturação de serviços de saúde, sejam eles temporários ou permanentes. Houve uma concentração importante de publicações entre os estados do Maranhão, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Bahia.

Sobre a análise dos decretos inerentes às políticas de proteção do emprego e da renda e medidas administrativas, a atuação dos estados concentrou-se na regulação do trabalho do funcionalismo público, na adaptação da política fiscal e do orçamento ao novo contexto, na organização de grupos de trabalho de coordenação da retomada econômica e na organização de políticas para manutenção da renda e do emprego, bem como na sustentação financeira das microempresas. Os estados que mais publicaram decretos com esses conteúdos foram o Amazonas, o Rio de Janeiro, a Bahia e o Distrito Federal.

Ademais, sobre o eixo de regulação social e gestão territorial, os estados apresentaram uma importante atuação publicando 61% a partir do total de decretos pesquisados. O conteúdo dos decretos versou sobre as medidas de proteção individual e coletiva como distanciamento e uso de máscaras, restrições a diversas atividades que garantissem a redução de aglomerações e mantivessem o isolamento social; assim como as medidas de restrição territorial, como o uso de transportes coletivos e privados de diversas naturezas, bem como a instalação de barreiras sanitárias. Esse conjunto de ações esteve mais presente nos decretos publicados pelos estados da Bahia, Distrito Federal, Amazonas e Rio Grande do Sul.

Ficou patente que a maioria dos governadores se posicionaram diametralmente opostos ao ‘federalismo bolsonarista’, ao exercerem suas competências constitucionais adotando importantes medidas de cooperação horizontal desencadeando agendas de solidariedade entre estados, exercitando prática de aprendizagem regional e associativa, e dentro dos seus estados com o conjunto de prefeitos e suas associações, organizando medidas restritivas e de intervenção social, que foram reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, à luz das recomendações da OMS e vários estudos técnicos e científicos.

Tornou-se evidente, portanto, que a pandemia colocou frente a frente duas estratégias distintas: uma apostando na defesa do direto à vida e à saúde, e outra que reforçou a lógica centrada em desafiar a pandemia de forma negacionista expondo a população ao risco de morrer, em uma prática denominada por muitos autores de necropolítica.

A realidade mostrou que medidas de flexibilização realizadas no último quadrimestre do ano de 2020, impulsionadas por pressões locais, o desencadeamento do processo das eleições municipais, a proximidade das festas de fim de ano, somadas a postura do governo federal diante do combate à pandemia, fizeram com que uma nova onda se estabelecesse no País propiciada pelo surgimento de algumas novas variantes do vírus.

Sendo assim, faz-se necessária a continuidade dos estudos para verificar não só as características e as linhas de intervenção adotadas por parte dos governadores, mas para somar às leituras e análises das leis e atos normativos editados por estes, bem como analisar a publicação dos instrumentos normativos a partir da curva de crescimento da pandemia em cada estado, a fim de melhor analisar o comportamento dos governos estaduais e sua atuação diante do vácuo de atuação federativa do governo federal.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2021
  • Aceito
    07 Dez 2021
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