Investigando os olhares da saúde coletiva sobre a agroecologia

Investigating the views of collective health on agroecology

Lorena Portela Soares Rosely Magalhães de Oliveira Danielle Ribeiro de Moraes Sobre os autores

RESUMO

A agroecologia tem sido objeto no campo da saúde coletiva/pública de maneira crescente nas duas últimas décadas no Brasil. Conforme o tema ganha relevância, importa verificar como o campo tem abordado a agroecologia, tendo em vista a persistência de tendências à redução e ao esvaziamento no processo de apropriação de conceitos ao campo. Artigos científicos da saúde foram analisados por procedimentos da análise de conteúdo e da análise do discurso, atentando aos sentidos e temas mais recorrentes, bem como às ausências nas abordagens sobre agroecologia. Resultados mostram que abordagens de tendência mais normativa/regulatória da saúde coletiva tendem a se associar à vertente mais técnica da agroecologia; silenciamentos sobre legitimidade da origem ‘tradicional’/’indígena’/’popular’ e sobre o protagonismo das mulheres na construção do conhecimento agroecológico; a importância histórica de movimentos populares na constituição desse campo científico; e, ainda, apontam o reconhecimento da agroecologia enquanto um campo que, como o da saúde coletiva, está em disputa. Fazem-se considerações sobre a redução da agroecologia a um sistema ecológico de produção que ‘naturalmente promove saúde’ e possíveis repercussões para cooptação da pauta agroecológica pelos discursos hegemônicos. Reflete-se sobre a importância da apropriação crítica de conceitos no diálogo entre os campos.

PALAVRAS-CHAVES
Saúde pública; Agricultura orgânica; Agricultura sustentável; Discurso

ABSTRACT

Agroecology has been an object in collective/public health in an increasing way in the last two decades. As its gains relevance, it is important to verify how Brazilian academic health literature has addressed agroecology, considering the persistent tendencies towards reduction, standardization and emptying when concepts are appropriated by the field. Scientific papers in health were analyzed through content and speech analysis, paying attention to the recurring meanings and themes, as well as to the ‘absences’ in health discourses related to agroecology. Results show that collective health instrumental approaches tend to be associated with more ‘technical’ agroecology perspectives; persistent silencing related to ‘traditional ’/‘indigenous’/‘popular’ and woman protagonism in agroecological knowledge construction; recognition of the emergence of agroecology as a scientific field as part of the historic popular movements struggle; and, further, to the consideration of agroecology as a scientific field that is in dispute, just like collective health. Considerations are made involving the reduction of agroecology as an ecological-based agricultural system that ‘naturally promotes health’, and its possible repercussions in agroecological agenda cooptation. It is discussed the importance of critical appropriation of concepts in deepening dialogues between the fields of collective health and agroecology.

KEYWORDS
Public health; Organic agriculture; Sustainable agriculture; Address

Introdução

Este artigo apresenta resultados da dissertação de mestrado intitulada ‘Agroecologia para adiar o fim do mundo? Uma análise dos olhares e dos discursos da saúde sobre a agroecologia’, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) em março de 2020.

A agroecologia, nas últimas duas décadas, tem sido um objeto no campo da saúde. Conforme o tema ganha relevância, há necessidade de saber de que maneira a agroecologia tem sido apropriada nas diferentes narrativas da produção científica em saúde coletiva no Brasil. Historicamente, a área da ‘saúde rural’ se ocupava do mundo agrário quase inteiramente por meio de ações de profilaxia. Passados mais de cem anos, como esse tema está sendo abordado no campo da saúde? Mais especificamente, como vem sendo tecidos os diálogos teóricos com o campo da agroecologia?

A agroecologia se configura a partir da década de 1970 no Brasil e América Latina e é resultado da colaboração entre agricultoras/ es, técnicas/os, pesquisadoras/es e das lutas de movimentos populares. Como campo de conhecimento, ela disputa o espaço da ciência ‘oficial’ no esforço de traduzir e sistematizar, para essa linguagem, conhecimentos vivos que mantêm, há alguns milhares de anos, a humanidade de pé.

O diálogo entre os campos da saúde e da agroecologia começa a acontecer pouco a pouco, a partir de iniciativas de movimentos sociais ligados à agroecologia, como na ocasião do Encontro Nacional de Diálogos e Convergências entre Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar, Economia Solidária e Feminismo em 2011, que, segundo Monteiro e Londres11 Monteiro D, Londres F. Pra que a vida nos dê flor e frutos: notas sobre a trajetoria do movimento agroecológico no Brasil. In: Sambuichi RHR, Moura IF, Mattos LM, organizadores. A política nacional de agroecologia e produção orgânica no Brasil: uma trajetoria de luta pelo desenvolvimento rural sustentável; Brasília, DF: Ipea; 2017. p. 53-83., inicia o fortalecimento de importantes alianças políticas entre redes da sociedade civil.

Em relação à saúde coletiva, considera-se que, nesse campo interdisciplinar, há uma tendência a ‘fagocitar’ conceitos advindos de outros campos científicos, uma forma de apropriação que reduz e, ao reduzir, produz apagamentos. Sevalho22 Sevalho G. O conceito de vulnerabilidade e a educação em saúde fundamentada em Paulo Freire. Interface. 2017; 22(64):177-188. aponta que, ao privilegiar a objetividade e a operacionalidade, a saúde submete à deformação política conceitos e categorias de outros campos científicos, amputando sua historicidade e criticidade.

Este estudo se dedica a investigar os caminhos que a saúde coletiva vem utilizando para relacionar agroecologia e saúde. Foram identificados aproximações, limites e tensionamentos entre os modos de produção de sentidos e de práticas discursivas na saúde coletiva em relação a outras práticas científicas/sociais atualmente associadas ao termo agroecologia.

Para embasar a análise, utilizaram-se os seguintes referenciais teóricos: o modelo explicativo de determinação social do processo saúde doença, mais especificamente, a atualização conceitual da determinação ‘estrutural-relacional’ elaborada em Borghi, Oliveira e Sevalho33 Borghi C, Oliveira R, Sevalho G. Determinação ou determinantes sociais da saúde: texto e contexto na américa latina. Trab. Educ. Saúde. 2018; 16(3):869-897.; o conceito de promoção da saúde em sua vertente ‘emancipatória’, elaborada em Freitas e Porto44 Freitas JD, Porto MF. Por uma epistemologia emancipatória da promoção da saúde. Trab. Educ. Saúde. 2011; 9(2):179-200.; e a produção do conhecimento, nomeadamente, a noção de construção compartilhada do conhecimento, partindo de Oliveira55 Oliveira RM. Pistas para entender a crise na relação entre técnicos e classes populares: uma conversa com Victor V. Valla. Cad. Saúde Pública. 2003; 19(4):175-1187. e Valla66 Valla V. A crise de interpretação é nossa: procurando compreender a fala das classes subalternas. Educ. Realidade. 1996; 21(2):177-190..

Material e métodos

A metodologia foi inspirada na busca sistemática77 Moraes DR. Entre Tiro, Porrada e Bomba: esteroides anabolizantes androgênicos, gerencialismo arriscado e os discursos médicos moralizantes. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2016. 167 p. seguida de um desenho qualitativo de análise documental. A opção pelo artigo científico para o corpus de análise se justifica por ser um gênero textual que, uma vez selecionado e publicado em determinados circuitos de produção do conhecimento, é representativo da ciência hegemônica. Para Castiel e Sanz-Valero88 Castiel LD, Sanz-Valero J. Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica? Cad. Saúde Pública. 2017; 23(12):3041-3050., em tempos de intensa mercantilização dos bens intelectuais, os artigos são assumidos em uma dimensão de moeda corrente, negociável no mercado acadêmico.

A busca sistemática foi realizada nas bases de recuperação de referências da Scientific Electronic Library Online (SciELO) e do Portal Regional da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). O esquema na figura abaixo detalha os procedimentos realizados (figura 1).

Figura 1
Estudos da Saúde Coletiva/Pública sobre agroecologia no Brasil selecionados por descritores e/ou palavras-chave

No intuito de produzir uma síntese qualitativa dos 20 artigos, foi elaborada a categoria ‘nível de conformidade/criticidade’ dos campos da saúde coletiva e da agroecologia, produzida a partir da conversão de parâmetros qualitativos de análise em valores numéricos e montagem de gráfico de dispersão para o conjunto do corpus.

Nesse exercício de apreensão visual da associação entre tendências mais ‘conformadas’ e ‘críticas’ nas discussões que relacionam saúde coletiva e agroecologia, levaram-se em conta os distintos níveis atuais de estabilização dos dois campos. Uma consequência metodológica foi a maior facilidade de mapear as ‘vertentes críticas’ dentro da saúde coletiva; enquanto no campo da agroecologia, as estratégias de institucionalização no Brasil levaram a caminhos distintos de produção acadêmica, de modo que há, atualmente, menos coalizão enquanto ‘campo de conhecimento’.

A Análise de Conteúdo (AC) e a Análise do Discurso (AD) foram combinadas para auxiliar a reconhecer, no corpus, práticas sociais discursivas características do campo científico da saúde. A intenção não foi definir o que é ‘correto’ ou ‘falacioso’ nos discursos da saúde sobre agroecologia, mas compreender diversidade e padrões que marcam os textos, conteúdos explícitos e uso recorrente de determinados conceitos, como também as faltas e silenciamentos. Os limites da pesquisa se relacionam à capacidade de o conjunto de 20 artigos ser representativo das práticas discursivas da literatura acadêmica da saúde.

Ao longo da análise, emergiram ‘marcas de discurso’99 Caregnato RCA, Mutti R. Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Texto Contexto - enferm. 2006; 15(4):679-684.: palavras ou formas sintáticas selecionadas para interpretação devido ao estranhamento produzido com sua presença e/ ou recorrência; a partir das ‘marcas de discurso’, foram elaboradas categorias operacionais, partindo de algumas perguntas, por exemplo: a agroecologia está sendo considerada em suas dimensões indissociáveis de prática de cultivo de base ecológica, ciência transdisciplinar e movimento social1010 Méndez E, Bacon C, Cohen R. Agroecology as a Trans-disciplinary, Participatory, and Action-Oriented Approach. Agroec. Sust. Food Syst. 2013; 37(1):45-59.,1111 Wezel A, Bellon S, Doré T, et al. Agroecology as a science, a movement and a practice. A review. Agronomy Sustainable Development. 2009; 29(4):503-515.? Quando o artigo aborda a agricultura familiar ou a reforma agrária, o tipo de sistema de cultivo é posto em questão? A pesquisa segue uma vertente mais conformada à produção hegemônica do campo ou é um engajamento para produzir tensionamentos, tanto do ponto de vista teórico como metodológico? Como considera a dimensão dos saberes ‘popular’/’tradicional’/’local’ na construção dos conhecimentos agroecológicos? Como aborda questões de classe, gênero e cor/raça e suas interseccionalidades?

As categorias elaboradas a partir das perguntas foram organizadas em quadro, alimentado com citações extraídas dos artigos e reflexões preliminares. Após, o conteúdo foi organizado em texto e tensionado com os referenciais teóricos do estudo.

Resultados e discussão

Análise documental de 20 artigos de revistas brasileiras do campo da saúde recuperados na BVS e no SciELO

Os primeiros indícios de um processo de esvaziamento da agroecologia pelo campo da saúde apareceram já na etapa de busca bibliográfica. O termo ‘agroecologia’ é identificado nos descritores da BVS (a Biblioteca opera com Descritores em Ciências da Saúde – DeCS/ MeSH, uma árvore hierárquica de termos organizadas a partir de uma linguagem de indexação criada pela Bireme) como ‘agricultura sustentável’, tendo como sinônimos: agricultura multifuncional, agricultura sustentada, agroecologia e multifuncionalidade na agricultura; e como temas relacionados: conservação dos recursos naturais, agricultura orgânica e agricultura urbana. Por ser a principal base de recuperação de referências da saúde, as chaves classificatórias da BVS refletem como opera a lógica hegemônica nesse campo e em qual medida este é permeável a outros campos e práticas.

A quantidade de artigos encontrados e a ausência do termo ‘agroecologia’ entre os descritores demonstram que o termo está fora do escopo reconhecido como pertencente à área da saúde; e sua equivalência a ‘agricultura sustentável’ demonstra sua redução, pelo campo, a um conjunto de técnicas ou ‘ciência dura’.

O quadro 1 a seguir resume informações básicas dos 20 artigos, que foram organizados numericamente sem citar o nome das/os autoras/es. Destaca-se uma concentração de publicações nas regiões Sudeste e Sul. Apesar da pequena extensão territorial de Santa Catarina, uma hipótese ao elevado número de publicações é o histórico de organização da agricultura familiar de base ecológica no estado. Embora sejam regiões com reconhecidas experiências em agroecologia, não foram identificadas publicações na região amazônica, Nordeste e Norte. A Fiocruz foi a instituição com mais publicações em número absoluto, considerando as unidades regionais distribuídas pelo País.

Quadro 1
Caracterização dos 20 artigos segundo ano e revista de publicação, instituição de afiliação do primeiro autor, estado da instituição e região de assunto do estudo

A primeira aproximação para caracterizar o corpus analítico foi elaborada a partir das principais perspectivas identificadas, nos 20 artigos, em suas abordagens sobre determinados temas e conceitos (ver quadro 2 abaixo). O quadro 2 foi construído com base em Borghi, Oliveira e Sevalho33 Borghi C, Oliveira R, Sevalho G. Determinação ou determinantes sociais da saúde: texto e contexto na américa latina. Trab. Educ. Saúde. 2018; 16(3):869-897. ao caracterizar as diferentes abordagens teóricas sobre determinação/ determinantes sociais da saúde. Ressalta-se que a divisão em três grandes perspectivas (Conformadora/Instrumental; Crítica/ Estrutural; e Crítica/Emancipatória) busca sintetizar marcações recorrentes identificadas nos textos – um exercício de ‘enquadramento’ com um grau inevitável de redução e generalização, que não nega o gradiente mais amplo de perspectivas associadas a cada tema e conceito elencados.

Quadro 2
Caracterização dos artigos selecionados conforme as principais perspectivas identificadas na abordagem de temas e conceitos presentes no corpus analítico

Em síntese, o fenômeno que atravessa o corpus analítico decorre de uma composição mista de forças entre saúde coletiva e saúde pública: em alguns artigos, a saúde coletiva está presente no discurso, mas é incorporada instrumentalmente como saúde pública, ou seja, em boa parte do corpus, pressupostos epistemológicos dominantes do campo da saúde são utilizados sem problematização. Outros artigos os incorporam de maneira mais ‘crítica’ à medida que demarcam os referenciais utilizados para produção de tensionamentos no campo.

A partir da observação de alguns padrões entre os artigos, sintetizados no quadro 2, foi possível exercitar a construção de parâmetros qualitativos de criticidade específicos para o corpus analisado, disponíveis no quadro 3, os quais foram utilizados na construção do gráfico de dispersão ‘Conformidade/Criticidade’.

Quadro 3
Parâmetros qualitativos de referência para elaboração ‘nível de conformidade/criticidade’ na abordagem sobre agroecologia e saúde coletiva no corpus e o gráfico de dispersão elaborado utilizando esses parâmetros. Cada ponto no gráfico representa um dos 20 artigos analisados

A partir dos elementos textuais (presentes e ausentes), foram elaborados parâmetros específicos para classificar as distintas formas de abordagem ligadas à saúde, e outros para as formas de abordagem ligadas à agroecologia. Esses parâmetros foram traduzidos em duas escalas numéricas, em um exercício de aproximação.

Embora se reconheça o campo de disputas na produção científica em saúde e que nenhuma produção é ‘desinteressada’, tomou-se como critério de criticidade aquele que se aproxima mais da possibilidade emancipatória de promoção da saúde. As abordagens são menos críticas ou mais ‘conformadas’ no sentido de aderidas aos referenciais hegemônicos de produção da ciência no campo da saúde coletiva, proximas do que Quijano1212 Quijano A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e a América Latina. In: Lander E, organizador. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso; 2009. p. 107-129. nomeia ‘colonialidade do saber’, mais associadas às perspectivas regulatória e normativa1313 Stotz EN, Araujo, JWG. Promoção da saúde e cultura política: a reconstrução do consenso. Saúde Sociedade. 2004; 13(2):5-19., dominantes no campo.

Em relação à agroecologia, como padrão de criticidade, foi utilizada a vertente do campo orientada por princípios ecológicos e, também, por princípios éticos, na perspectiva das relações entre quem dispõe da terra, quem produz, quem consome e quem reivindica a ‘propriedade’ dos conhecimentos; que valoriza as contribuições de conhecimentos construídos fora do paradigma científico ocidental e reconhecendo a pluralidade de atores que integram os sistemas agroalimentares; que inclui dimensão das transformações sociais necessárias aos processos de transição para a agroecologia – perpassando questões de gênero, raça/etnia e classe; além do quadro 3, para um maior detalhamento dos parâmetros utilizados na construção do gráfico de dispersão1414 Soares LP. Agroecologia para adiar o fim do mundo? Uma análise dos olhares e dos discursos da saúde sobre a agroecologia. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2020. 176 p..

A combinação do valor numérico representativo do ‘grau de criticidade’ da abordagem da saúde (0 a 10, relativo ao eixo y, vertical) e do valor numérico representativo do ‘grau de criticidade’ da abordagem da agroecologia (-5 a 5, relativo ao eixo x, horizontal) fornece a posição final para a publicação no gráfico. No eixo vertical, quanto mais proximo de ‘0’, mais acentuada é uma incorporação ‘conformada’ dos referenciais epistemológicos do campo da saúde; deslocando-se no eixo em direção ao valor ‘10’, maior é a incorporação crítica desses referenciais, no sentido da produção de tensionamentos no campo. Já na análise da abordagem sobre agroecologia, no eixo horizontal, foram alocados na posição ‘0’ dois artigos em que a palavra agroecologia não é mencionada, o que inviabilizou a análise do nível de ‘criticidade’ na sua conceituação.

Ressalta-se que a análise gráfica não tem como intenção julgar o valor individual das publicações, mas facilitar uma apreensão visual das tendências encontradas na AC e na AD do corpus. Esses dois ‘gradientes numéricos de criticidade’ foram criados para esse conjunto específico; e, inevitavelmente, os artigos estão posicionados no gráfico um em relação aos outros.

É apresentada, a seguir, a análise dos textos do corpus analítico, a partir de procedimentos combinados que se aproximam da AC e da AD.

Eixos centrais da relação entre saúde e agroecologia

Da análise dos 20 artigos, emergiram 4 eixos temáticos principais, apresentados a seguir. Existe um movimento importante e crescente nas discussões sobre agroecologia dentro da saúde coletiva, e os artigos analisados estão mais nucleados em torno de certos temas e paradigmas: nutrição e segurança alimentar e nutricional, riscos e agravos associados ao uso de agrotóxicos e promoção da saúde. A partir da segunda metade da década de 2010, os temas se diversificam, abarcando, pouco a pouco, discussões voltadas à educação, à comunicação e à arte.

AGROECOLOGIA SEGUNDO O CAMPO DA SAÚDE

No corpus, 12 artigos apresentam conceituações sobre ‘agroecologia’; observou-se que algumas/os autoras/es se engajam na defesa de uma proposta excessivamente genérica ou idealizada da agroecologia. Observaram-se, em parte desses artigos, um apagamento da historicidade da agroecologia, uma desconsideração da existência de vertentes distintas no interior do campo e a apresentação da agroecologia como equivalente à ‘agricultura orgânica’.

Para Schmitt1515 Schmitt C. O enfoque agroecológico e suas imbricações locais: mediações sociotécnicas e políticas de escala. In: Abordagens geográficas do urbano e do agrário. Pernambuco: Ed. Univ. UFPE; 2012. p. 87-114., um traço distintivo da agroecologia seria o tipo de circulação que ela busca estabelecer como campo de estudos: não apenas entre diferentes disciplinas científicas, mas entre distintas formas de produção do conhecimento, potencializando a relação entre o ‘conhecimento local’, o ‘conhecimento científico’ e diferentes tipos de conhecimentos ‘codificados’, bebendo das controvérsias que emergem dos espaços de construção agroecológicos. Considera-se ainda que estabelecer a distinção entre agroecologia e agricultura orgânica é fundamental para evidenciar as disputas no uso desses termos.

Foi observada ainda uma opção majoritária por tomar como ‘objeto’ da agroecologia o espaço do cultivo ou o agroecossistema. Nesse sentido, considera-se como alternativa importante a utilização do ‘sistema agroalimentar’ como categoria de referência que, por ser mais abrangente, tem o potencial de contribuir nas discussões sobre promoção da saúde no Brasil, facilitando olhar, por exemplo, como dinâmicas nos sistemas de produção, circulação e consumo de produtos da agricultura explicitam, reforçam ou tensionam à transformação estruturas sociais profundamente desiguais que balizam as condições e possibilidades de transição a modelos de agricultura de base ecológica.

ABORDAGENS SOBRE PROMOÇÃO DA SAÚDE E USO DE AGROTÓXICOS

O uso de agrotóxicos é um eixo temático importante em 4 dos 20 artigos analisados. Já a ‘promoção da saúde’ é conceituada em 5 estudos, todos eles referenciando a Carta de Ottawa1616 Organização Mundial da Saúde. Carta de Ottawa -Primeira conferência internacional sobre promoção da saúde. Ottawa: OMS; 1986., estabelecendo uma relação entre promoção da saúde e agroecologia a partir dos benefícios que sistemas produtivos ecológicos trazem para a qualidade do alimento e do meio ambiente ao transformarem práticas alimentares e de cuidado dos agricultores e consumidores. Além disso, ‘determinantes socioambientais da saúde’ e ‘determinação social do processo saúde-doença’, categorias importantes ao campo da saúde coletiva, não parecem ser uma questão conceitual dos estudos, tampouco a demarcação de suas diferenciações.

Como contribuição, essas pesquisas que relacionam promoção da saúde e agroecologia assinalam a importância de incluir com mais atenção a dimensão da saúde nas discussões das áreas de conhecimento ligadas ao meio ambiente/proteção ambiental e a importância de considerar a agricultura nas estratégias de promoção da saúde.

Observou-se também que, entre os princípios orientadores da agricultura de base ecológica, um é destacado com mais frequência que os demais: a não aplicação de agrotóxicos/ pesticidas e fertilizantes químicos nos sistemas de cultivo. Discursos que vinculam agricultura e saúde a partir do risco oferecido por determinadas práticas, ou que que equivalem as práticas de cultivo agroecológico à não utilização – ou mesmo ao uso funcional dos agrotóxicos e de insumos sintéticos –, podem indicar uma compreensão reduzida da agroecologia enquanto técnica de cultivo, e sua defesa pela sua repercussão positiva na ‘saúde’.

Destaca-se que, apesar de o termo ‘Agrotóxicos’ aparecer no título e/ou palavras-chave dos artigos recuperados, no portal regional da BVS, ele é convertido para o descritor ‘Agroquímicos’, ao ser traduzido do descritor em inglês ‘Agrochemicals’ (língua original do DeCS/MeSH), apresentado como sinônimo de ‘Produtos Agroquímicos’ e ‘Defensivo(s) Agrícola(s)’ e associado hierarquicamente aos descritores ‘Fertilizantes’ e ‘Praguicidas’. Nas proprias bases de busca, identificam-se, assim, mecanismos que podem auxiliar a justificar ou legitimar o uso dos agrotóxicos no campo da saúde.

Apesar de avanços nas abordagens sobre ‘promoção da saúde’, incluindo a dimensão das influências à saúde externas ao indivíduo (ambientais e sociais), por vezes, nelas não são transpostos alguns limites importantes para compreensão do processo saúde-doença em sua complexidade. Há, no corpus, uma tendência gerencialista na compreensão da relação ‘agroecologia – saúde’, que considera que ambientes e alimentos mais ‘saudáveis’, ‘limpos’, ‘naturais’ são geradores de saúde para aqueles que os consomem; em alguns casos, é incluído ainda na discussão o caráter educativo das ações de promoção da saúde por meio da ‘conscientização da população’ para transformação nos seus comportamentos e ‘estilos de vida’.

Outro aspecto relevante nos artigos analisados são as relações entre campo e cidade. Em alguns artigos, o ambiente rural é apresentado como um espaço importante para prevenção de doenças, já que pode ser um local de produção de alimentos ‘de qualidade’. Esse tipo de relação pode ser demonstrativo de uma compreensão do rural como lugar cujo fim é produzir para a cidade e, por conseguinte, dos sujeitos do mundo rural como aqueles que devem aprender a produzir (sem agrotóxicos) para servir melhor.

No sentido inverso, considera-se que a saúde também pode ser objetificada quando abordada desde o campo da agroecologia, se reduzida a um ‘efeito’ do cultivo sobre bases ecológicas, encobrindo questões fundamentais ligadas às condições de saúde e vida das populações e à diversidade de sujeitos que compõem os sistemas agroalimentares. Se a agricultura de base ecológica libera agricultoras/es dos efeitos da aplicação de veneno, outras adversidades à saúde persistem entre populações do campo, populações tradicionais e povos indígenas, como, por exemplo, o agravamento das violências e a precariedade no acesso a serviços básicos de assistência à saúde e saneamento, que também ameaçam a permanência das populações em seus territórios.

CONFORMAÇÃO X TRANSFORMAÇÃO: RUMO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL OU A OUTRAS FORMAS DE ENVOLVIMENTO?

Além das concepções sobre ‘agroecologia’, as noções de ‘sustentabilidade’ e ‘desenvolvimento sustentável’ auxiliam a identificar a diversidade das formas de engajamento nos artigos: mais conformadoras ou mais problematizadoras do modelo de sociedade dentro do qual se desenrolam as possibilidades de diálogos entre saúde e agroecologia relatados e/ou desejados.

Sustentabilidade/desenvolvimento sustentável aparecem em 12 dos 20 documentos, na maior parte deles, sem uma definição do termo. Quando conceituados, as referências são feitas ao relatório de Brundtland1717 Organização das Nações Unidas. Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Relatório Brundtland – Nosso Futuro Comum. Brundtland: ONU; 1987.. Ainda, em 4 artigos, a agroecologia é considerada equivalente à ‘agricultura sustentável’ ou uma forma desta.

A referência a documentos produzidos por organismos multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), é um recurso para conferir legitimidade ao estudo, já que documentos como a Carta de Ottawa sobre promoção da saúde e o relatório sobre desenvolvimento sustentável são internacionalmente ‘consagrados’ e relevantes para o campo da saúde pública/ coletiva. Entretanto, a adoção acrítica dos sentidos e as propostas neles cunhados – sobre promoção da saúde, determinantes sociais da saúde e desenvolvimento sustentável – trazem limites importantes às conexões estabelecidas entre saúde e agroecologia.

É desejável e importante que autoras/res da saúde se dediquem, por um lado, a um exercício de atualização, aprofundamento e seleção dos referenciais conceituais de embasamento ao campo da agroecologia e, por outro, ao esforço de explicitar os referenciais utilizados, localizando os pressupostos teóricos que orientam a aplicação de termos como ‘sustentabilidade’ e ‘agricultura sustentável’, considerando as inerentes transformações nas formas de apropriação e uso de tais categorias ao longo do tempo.

AUSÊNCIAS PERSISTENTES: LEGITIMIDADE DO CONHECIMENTO

Buscou-se observar concepções sobre os processos de construção do conhecimento em saúde e/ou em agroecologia e verificar a coerência entre a abordagem teórica da produção do conhecimento e a condução da proposta metodológica em cada um dos 20 estudos. Foram identificadas 5 publicações nas quais o saber acadêmico é problematizado, relativizado e/ou tem seus limites discutidos. Outro aspecto importante identificado no corpus analítico é o silenciamento sobre as matrizes de conhecimento de povos indígenas e africanos que compõem parte fundamental do conhecimento agroecológico, e sobre o protagonismo das mulheres na agroecologia.

Alguns estudos consideram que a agroecologia pressupõe a integração entre conhecimento de agricultores e o conhecimento científico. Outros abordam, adicionalmente, o papel da agroecologia no resgate de conhecimentos ‘tradicionais’, ‘ancestrais’, ‘locais’, ‘populares’ (proveniente de grupos camponeses, indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais, ou resultantes de influências entre as práticas de povos originários, europeus e africanos no Brasil), ligados ao cultivo de alimentos e às práticas de cuidado, eventualmente, sem questionar processos de produção de hegemonia na ciência.

Nenhum dos artigos discutiu a questão indígena ou da saúde indígena; apenas 1 entre os 20 estudos foi realizado com a população tradicional (neste caso, de matriz africana); nenhum deles se dedica ao tema das mulheres na agroecologia ou discute seu protagonismo na construção do conhecimento agroecológico.

A dimensão da experiência da ‘colonialidade’1818 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estudos Feministas. 2014 [acesso em 2020 nov 5]; 22(3):935-952. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2014000300013&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
pode ajudar a compreender marcas intelectuais nos nossos padrões de produção do conhecimento, sobretudo em relação às ‘ausências que persistem’ nas discussões sobre desigualdades sociais e condições de saúde. Tais resultados podem ajudar a compreender as diferentes disposições das/dos pesquisadoras/es em revisar espaços de poder consolidados e se colocar a serviço de outros sujeitos que também constroem conhecimento em saúde e agroecologia, porém sem as mesmas pré-condições de legitimidade dos espaços oficiais de produção científica. A propriedade intelectual não é demarcada somente recorrendo-se ao sistema de patentes; basta ignorar origens e contribuições de determinados conhecimentos.

Considera-se que o tempo requerido para uma pesquisa construída em base horizontal/ compartilhada, por vezes, é incompatível com os atuais imperativos de produtividade acadêmica. Admite-se também a possibilidade de uma maior dificuldade por parte das/os pesquisadoras/es de instituições alocadas nos centros urbanos para trabalhar com grupos mais afastados geograficamente. Pode ser, ainda, que os referenciais teóricos utilizados pelas/os autoras/os se liguem à vertente da agroecologia mais afeita às ciências duras/naturais. Fato é que, entre as publicações dos grupos de pesquisa da saúde coletiva que têm se dedicado a discutir agroecologia nas instituições brasileiras – e conseguido divulgar seus resultados –, não foi encontrada uma abordagem mais aprofundada das dimensões de cor ou raça/ etnia e gênero.

Considerações finais: algumas reflexões para a saúde coletiva sobre caminhos possíveis ao lado da agroecologia

Tendo em vista o poder social conferido à ciência e àqueles que falam por ela1919 Bourdieu P. O campo científico. In: Ortiz R, organizador. Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática; 1983. p. 122-155., importa analisar os discursos e as ausências produzidos em seu interior. As ciências da saúde, em especial, ocupam um espaço legitimado para prescrever o que faz ‘bem’, o que deve ser ‘feito’, o que é ‘verdadeiro’. Investigar a produção do conhecimento desde a saúde coletiva teve como intenção compreender de que maneira sua prática científica pode colaborar no fortalecimento e na legitimação ou, ao contrário, no esvaziamento e na cooptação da agroecologia.

A ausência da palavra ‘agroecologia’ do sistema de descritores da BVS e sua equivalência a termos genéricos como ‘agricultura sustentável’ pode ser indicativa de mecanismos de apaziguamento dos embates ligados à questão agrária e ambiental, e que podem ter efeito limitante nas discussões sobre o tema na grande área das ciências da saúde e na saúde coletiva.

A análise da apropriação da agroecologia pelo campo da saúde, nos 20 artigos, pode ser compreendida a partir de dois polos ou ‘movimentos’ principais: ora agroecologia é um conceito e, como conceito/termo/coisa, pode ser conformada aos paradigmas dominantes do campo; ora é reconhecida também em sua condição de campo científico e, como tal, pode aportar outras possibilidades epistemológicas à saúde.

No processo de análise dos artigos, procurou-se levar em conta limites característicos desse gênero textual de tamanho reduzido e, ocasionalmente, conformado às exigências da propria revista científica, que inviabiliza maiores discussões acerca dos pressupostos teóricos da pesquisa, ainda que esta se posicione criticamente sobre os referenciais do campo da saúde. Ainda assim, foi confirmado o pressuposto inicial de que quando temas e conceitos são apropriados do campo da agroecologia para a saúde coletiva, por vezes eles são submetidos à “alienação e deformação política”22 Sevalho G. O conceito de vulnerabilidade e a educação em saúde fundamentada em Paulo Freire. Interface. 2017; 22(64):177-188.(179). Ao contrário, quando a saúde adota uma posição crítica ao discutir agroecologia, as proprias bases epistemológicas da saúde coletiva podem ser tensionadas, trazendo à luz dificuldades e equívocos do campo ao se apropriar desses conceitos.

Pressupunha-se que a vertente do campo da agroecologia que a compreende como uma técnica – que possui mais possibilidades de institucionalização – estivesse associada a perspectivas mais ‘regulatórias’ da saúde. Foi verificado, no corpus, que a maior parte das publicações pode ser considerada ‘híbrida’ de níveis variados entre essas abordagens. Como hipóteses, pergunta-se: referenciar a vertente explicitamente mais ‘crítica’ da agroecologia torna a pesquisa menos propícia a receber um parecer favorável à publicação na BVS? Ou então, a militância envolvida com a agroecologia dispõe de energia e vontade para se engajar em disputas nos espaços de produção científica?

Outro tema para atenção é a afirmação da agroecologia como ‘naturalmente’ promotora de saúde e sua defesa como ‘nova grande solução’, que expressa a postura universalizante da cultura científica88 Castiel LD, Sanz-Valero J. Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica? Cad. Saúde Pública. 2017; 23(12):3041-3050.. Se a agroecologia é um componente importante na conquista de condições dignas de saúde e vida, as estratégias de transformação que têm se mostrado efetivas, segundo a Carta de Salvador2020 Carta de Salvador. Encontro de Diálogos e Convergências. Salvador: ANA; 2011. [acesso em 2020 dez 17]. Disponível em: https://agroecologia.org.br/wp-content/uploads/2013/01/carta-politica-do-encontro-nacional-de-dialogos-e-convergencias.pdf.
https://agroecologia.org.br/wp-content/u...
, são aquelas que integram múltiplas perspectivas: da agroecologia, da soberania alimentar e energética, da economia solidária, do feminismo e da justiça social e ambiental, e que têm como base a organização prévia e a forte identidade territorial das comunidades.

A visibilidade da agroecologia por organismos multilaterais, após mais de 30 anos de negligenciamento do movimento agroecológico, vem ocorrendo hoje com tensionamentos entre diferentes lógicas de legitimidade/valoração: um reconhecimento que desterritorializa, avançando sobre o que é comum – as bases, as raízes e os contextos. Há uma crescente tentativa de consolidar a agroecologia como um conjunto de técnicas/tecnologias de cultivo com potencial de mitigar a crise da produção alimentar industrial, ao mesmo tempo que se garante a manutenção dos arranjos/circuitos dominantes de produção e consumo, sem contestar as estruturas de poder.

É reconhecida que a criação da legitimidade na agroecologia é um processo político no qual a ciência desempenha autoridade2121 Wit M, Iles A. Toward thick legitimacy: Creating a web of legitimacy for agroecology. Elementa. 2016; 4(115):1-24.. ‘Agroecologia’ enquanto conceito/ideia pode servir a segmentos distintos da sociedade, direcionamentos que se dão conforme a opção por determinada abordagem em uma pesquisa. Assumir a existência de ‘diferentes agroecologias’ não as iguala ou as planifica em termos de ‘validade’; atentar às origens de conceitos e definições não é, sequer, um preciosismo acadêmico. Os conceitos estão em disputa, e ignorar suas distinções ou tratá-los com superficialidade são escolhas políticas que favorecem condições de cooptação/captura da agroecologia pelos interesses tecnocientíficos dominantes.

Assim, o esforço de análise da produção teórica da saúde sobre a agroecologia não se direcionou a ‘encaixar’ os textos entre duas propostas societárias opostas, reduzi-los à binaridade regulação/emancipação, muito menos diferenciar abordagens verdadeiras das falsas; mas compreender como determinados discursos e tomadas de posição expressam ou tencionam as referidas disputas.

Em decorrência da propria heteronomia2222 Bordieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Unesp; 2003. característica do campo da saúde, desafios no diálogo com a agroecologia advêm, de um lado, das tendências de instrumentalização, regulação e normatização dominantes no campo – que reduzem a condição indissociável de ‘movimento/ciência/prática’ da agroecologia – e, de outro, do desafio de produzir conhecimento com os grupos populares/movimentos sociais ligados à agroecologia sem submeter o campo a um processo de incorporação deliberada de suas demandas. Considera-se que o modelo explicativo de determinação social do processo saúde-doença é um referencial importante para orientar a inserção da agroecologia no campo da saúde coletiva, especialmente sua atualização ‘estrutural-relacional’33 Borghi C, Oliveira R, Sevalho G. Determinação ou determinantes sociais da saúde: texto e contexto na américa latina. Trab. Educ. Saúde. 2018; 16(3):869-897..

Os intensos embates simbólicos em torno da agroecologia, as distintas formas de compreensão e pontes que vêm sendo construídas entre a agroecologia e a saúde demonstram que a disputa ainda está acontecendo sobre uma parte “não resolvida da ciência”2323 Latour B. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp; 2000.(166), de uma identidade da agroecologia ainda em elaboração.

Ao considerar a agroecologia, a saúde pública, o futuro: nem avidez por uma solução pronta, única, unidirecional; tampouco a apatia, a indiferença, a paralisia. Nem a ânsia por soluções universais, muito menos garantias: mas oportunidades de experimentar, de caminhar permitindo as perguntas como guia generosas. Com olhar curioso, podemos considerar tais embates como potencialidades de uma controvérsia que ainda está ‘aberta’: um momento propício para direcionar o trabalho científico à construção de imaginários poderosos de mobilização2424 Giraldo O, Rosset P. Agroecology as a territory in dispute: between institutionality and social movements. J. Peasant Studies. 2017; 45(2015):1-20 em torno das relações entre saúde e agroecologia.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Monteiro D, Londres F. Pra que a vida nos dê flor e frutos: notas sobre a trajetoria do movimento agroecológico no Brasil. In: Sambuichi RHR, Moura IF, Mattos LM, organizadores. A política nacional de agroecologia e produção orgânica no Brasil: uma trajetoria de luta pelo desenvolvimento rural sustentável; Brasília, DF: Ipea; 2017. p. 53-83.
  • 2
    Sevalho G. O conceito de vulnerabilidade e a educação em saúde fundamentada em Paulo Freire. Interface. 2017; 22(64):177-188.
  • 3
    Borghi C, Oliveira R, Sevalho G. Determinação ou determinantes sociais da saúde: texto e contexto na américa latina. Trab. Educ. Saúde. 2018; 16(3):869-897.
  • 4
    Freitas JD, Porto MF. Por uma epistemologia emancipatória da promoção da saúde. Trab. Educ. Saúde. 2011; 9(2):179-200.
  • 5
    Oliveira RM. Pistas para entender a crise na relação entre técnicos e classes populares: uma conversa com Victor V. Valla. Cad. Saúde Pública. 2003; 19(4):175-1187.
  • 6
    Valla V. A crise de interpretação é nossa: procurando compreender a fala das classes subalternas. Educ. Realidade. 1996; 21(2):177-190.
  • 7
    Moraes DR. Entre Tiro, Porrada e Bomba: esteroides anabolizantes androgênicos, gerencialismo arriscado e os discursos médicos moralizantes. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2016. 167 p.
  • 8
    Castiel LD, Sanz-Valero J. Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica? Cad. Saúde Pública. 2017; 23(12):3041-3050.
  • 9
    Caregnato RCA, Mutti R. Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Texto Contexto - enferm. 2006; 15(4):679-684.
  • 10
    Méndez E, Bacon C, Cohen R. Agroecology as a Trans-disciplinary, Participatory, and Action-Oriented Approach. Agroec. Sust. Food Syst. 2013; 37(1):45-59.
  • 11
    Wezel A, Bellon S, Doré T, et al. Agroecology as a science, a movement and a practice. A review. Agronomy Sustainable Development. 2009; 29(4):503-515.
  • 12
    Quijano A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e a América Latina. In: Lander E, organizador. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso; 2009. p. 107-129.
  • 13
    Stotz EN, Araujo, JWG. Promoção da saúde e cultura política: a reconstrução do consenso. Saúde Sociedade. 2004; 13(2):5-19.
  • 14
    Soares LP. Agroecologia para adiar o fim do mundo? Uma análise dos olhares e dos discursos da saúde sobre a agroecologia. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2020. 176 p.
  • 15
    Schmitt C. O enfoque agroecológico e suas imbricações locais: mediações sociotécnicas e políticas de escala. In: Abordagens geográficas do urbano e do agrário. Pernambuco: Ed. Univ. UFPE; 2012. p. 87-114.
  • 16
    Organização Mundial da Saúde. Carta de Ottawa -Primeira conferência internacional sobre promoção da saúde. Ottawa: OMS; 1986.
  • 17
    Organização das Nações Unidas. Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Relatório Brundtland – Nosso Futuro Comum. Brundtland: ONU; 1987.
  • 18
    Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estudos Feministas. 2014 [acesso em 2020 nov 5]; 22(3):935-952. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2014000300013&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
    » https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2014000300013&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
  • 19
    Bourdieu P. O campo científico. In: Ortiz R, organizador. Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática; 1983. p. 122-155.
  • 20
    Carta de Salvador. Encontro de Diálogos e Convergências. Salvador: ANA; 2011. [acesso em 2020 dez 17]. Disponível em: https://agroecologia.org.br/wp-content/uploads/2013/01/carta-politica-do-encontro-nacional-de-dialogos-e-convergencias.pdf
    » https://agroecologia.org.br/wp-content/uploads/2013/01/carta-politica-do-encontro-nacional-de-dialogos-e-convergencias.pdf
  • 21
    Wit M, Iles A. Toward thick legitimacy: Creating a web of legitimacy for agroecology. Elementa. 2016; 4(115):1-24.
  • 22
    Bordieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Unesp; 2003.
  • 23
    Latour B. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp; 2000.
  • 24
    Giraldo O, Rosset P. Agroecology as a territory in dispute: between institutionality and social movements. J. Peasant Studies. 2017; 45(2015):1-20

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2020
  • Aceito
    14 Jun 2021
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br