O desafio da formação interdisciplinar de graduandos de medicina: contribuições dos grupos Balint-Paideia

The challenge of interdisciplinary training for medical students: the Balint-Paideia groups contributions

Elisa Toffoli Rodrigues Mônica Martins Oliveira-Viana Fernanda Nogueira Campos-Rizzi Gastão Wagner de Sousa Campos Sobre os autores

RESUMO

Este artigo teve como objetivo analisar o trabalho multiprofissional na perspectiva interdisciplinar na formação de estudantes de medicina por meio de grupos Balint-Paideia. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva, exploratória e analítica, realizada com graduandos do internato de saúde coletiva de uma universidade pública brasileira. Os internos participaram de grupos Balint-Paideia durante sua imersão nas equipes de saúde da família. Os dados foram coletados por meio de grupos focais e analisados mediante construção de narrativas. Foram encontrados os seguintes núcleos argumentativos: potencialidades e os entraves para o trabalho em equipe; influência da formação baseada no trabalho para o exercício da atividade colaborativa; papel dos grupos Balint-Paideia no processo formativo e na aprendizagem de conceitos relevantes para a Atenção Primária à Saúde. A estratégia pedagógica combinando prática na Atenção Primária à Saúde, vivência interprofissional e grupos Balint-Paideia, com elaboração de projeto terapêutico singular, apesar de desafiante, tende a propiciar um olhar que transcende a clínica estritamente biomédica e as relações assimétricas, evocando os estudantes de medicina à construção de uma práxis interdisciplinar.

PALAVRAS-CHAVE
Práticas interdisciplinares; Equipe de assistência ao paciente; Atenção Primária à; Saúde; Internato e residência; Educação médica.

ABSTRACT

This article aims to analyze multidisciplinary work, through an interdisciplinary perspective in the training of medical students with Balint-Paideia groups. This is a qualitative, descriptive, exploratory, and analytical research. The participants were undergraduate students who were in the collective health internship in a Brazilian university. The interns participated in Balint-Paideia groups while staying in family health units. For data collected, we utilized focus groups. For data analyses, was employed narrative construction. The argumentative axles found potentialities and obstacles to teamwork; the work-based training influence for collaborative work; Balint-Paideia groups role in the training process and in the relevant concepts to Primary Health Care learning. The pedagogical strategy combining Primary Health Care practice, interprofessional experience, and Balint-Paideia groups, with a singular therapeutic project development, although challenging, tends to provide a transcendent view to the strictly biomedical clinic and to asymmetrical relationships, evoking medical students to an interdisciplinary praxis construction.

KEYWORDS
Interdisciplinary placement; Patient care team; Primary Health Care; Internship and residency; Educational; medical.

Introdução

A formação médica vem passando por transformações com a institucionalização das Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em saúde11 Brasil. Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Jun 2014.. Apesar de recomendada, ainda é um grande desafio a inserção dos alunos na Atenção Primária à Saúde (APS). A formação médica, em muitos espaços, ainda é pautada em um modelo hospitalocêntrico, médico centrado e com visão biomédica do processo saúde-doença22 Almeida Filho N. Reconhecer Flexner: inquérito sobre produção de mitos na educação médica no Brasil contemporâneo. Cad. Saúde Pública, 2010; 26(12):2234-49.

3 Peduzzi M, Agreli HLF, Silva JAM, et al. Trabalho em equipe: uma revisita ao conceito e a seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trab. Educ. Saúde. 2020 [acesso em 2021 out 25]; 18(supl1):e0024678. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00246.
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-44 Vilela EM, Mendes IJM. Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico. Rev Latino-am Enfermagem. 2003 [acesso em 2021 out 22]; 11(4):523-31. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-11692003000400016.
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A APS, especialmente as equipes de saúde da família e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf), é reconhecida como importante cenário de prática adequado para assegurar aspectos da formação interdisciplinar e multiprofissional, características indispensáveis ao próprio trabalho da APS e do Sistema Único de Saúde (SUS), mas ainda pouco valorizadas em graduandos da área da saúde, mesmo entre os de medicina55 Peduzzi M, Agreli HLF. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface - Com. Saúde Educ. 2018 [acesso em 2021 out 25]; 22(supl2):1525-1534. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0827.
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. A interdisciplinaridade pressupõe um eixo em comum entre as disciplinas enquanto a multidisciplinaridade prevê a justaposição delas, sem um eixo coordenador. Ambos os conceitos e aspectos formativos são indispensáveis para a formação do profissional de saúde66 Japiassu H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago ed; 1976..

A garantia de uma atenção integral que aumente a resolutividade no âmbito da APS requer a colaboração entre profissionais de diversas áreas, trabalho esse chamado de interprofissional77 Schimith MD, Cezar-Vaz MR, Xavier DM, et al. Comunicação em saúde e colaboração interprofissional na atenção a crianças com condições crônicas. Rev. Latino-Americana Enf. 2021 [acesso em 2021 out 17]; (29):e3390. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rlae/article/view/188099/173752.
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, que, apesar de se associar a várias terminologias com prefixos multi, inter e trans, direcionam-se para o reconhecidamente chamado ‘trabalho de equipe’, o qual, de acordo com Peduzzi88 Peduzzi M. Trabalho em equipe. In: Pereira I, Lima JCF. Brasil Dicionário da educação profissional em saúde. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: EPSJV; 2009. p. 419-426. e com Peduzzi e Agreli55 Peduzzi M, Agreli HLF. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface - Com. Saúde Educ. 2018 [acesso em 2021 out 25]; 22(supl2):1525-1534. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0827.
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, implica reconhecimento entre profissionais, compartilhamento, senso de pertencimento, trocas em via de mão dupla, comunicação e colaboração, em consonância com o que Campos, Cunha e Figueiredo99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. propõem como cogestão e efeito Paideia para os serviços de saúde.

Assim, ao orientar-se para a prática colaborativa e ao trabalho interdisciplinar, viabilizados por estratégias de cogestão, as equipes devem buscar o diálogo, a negociação, a redução da competição e, concomitantemente, estabelecer relações de parceria e responsabilidade coletiva, contrapondo-se ao modelo tradicional de formação, de formato uniprofissional55 Peduzzi M, Agreli HLF. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface - Com. Saúde Educ. 2018 [acesso em 2021 out 25]; 22(supl2):1525-1534. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0827.
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,1010 Campos GWS. Um Método de Análise e Co-gestão de coletivos. A constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: O Método da Roda. São Paulo: Hucitec; 2000.
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Para superar esse contexto, uma alternativa são as metodologias de ensino-aprendizagem que valorizem a escuta (de si mesmo e do outro), a capacidade de fazer contratos e compromissos no grupo e, consequentemente, a capacidade de trabalhar com o outro e com uma equipe multiprofissional1111 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2010.. O aluno necessita de uma formação que não só incida sobre a conformação de atitudes e comportamentos considerados adequados, mas também que inclua a gestão, a política e o governo de si, superando o discurso moralizante-culpabilizante e as práticas não humanizadas.

Os Grupos Balint-Paideia (GBP), presentes na proposta da Formação Paideia, apresentam-se como uma possibilidade pedagógica dentro desse contexto de acordo com Oliveira-Viana e Campos1212 Oliveira Viana MM, Campos GWS. Formação Paideia para o Apoio Matricial: uma estratégia pedagógica centrada na reflexão sobre a prática. Cad. Saúde Pública. 2018 [acesso em 2021 out 25]; 34(8):e00123617. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00123617.
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. Na Formação Paideia, interagem, de modo sinérgico, diferentes referenciais teóricos, que incluem a psicanálise, o materialismo sócio-histórico dialético, o construtivismo, entre outros, de modo a dar sustentação para as propostas de um ambiente institucional e espaço psíquico acolhedor e democrático, as quais favoreçam o trabalho interdisciplinar e a cogestão, ou gestão compartilhada - de casos e de processos de trabalho1010 Campos GWS. Um Método de Análise e Co-gestão de coletivos. A constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: O Método da Roda. São Paulo: Hucitec; 2000.. Entretanto, na presente pesquisa, a abordagem utilizada como orientadora dos GBP refere-se fundamentalmente à psicanálise e aos aspectos de sustentação e de criação/reflexão pautada em relações bilaterais de saberes, afetos e poder que favoreçam a articulação entre teoria e prática1212 Oliveira Viana MM, Campos GWS. Formação Paideia para o Apoio Matricial: uma estratégia pedagógica centrada na reflexão sobre a prática. Cad. Saúde Pública. 2018 [acesso em 2021 out 25]; 34(8):e00123617. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00123617.
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A estratégia central dos GBP é a discussão de casos concretos, baseados na realidade e na prática profissional, a partir da escolha dos alunos. Inspira-se nas proposições de Balint1313 Balint M. O médico, o seu doente e a doença. Lisboa: Climepsi; 1998., derivadas dos grupos realizados com médicos generalistas do sistema nacional de saúde inglês, na medida em que aposta na discussão de casos reais para acessar aspectos transferenciais e reflexões sobre a prática para promover a ressignificação e, por conseguinte, a formação dos participantes. Contudo, nos GBP, diferentemente dos grupos Balint, os casos podem ser clínicos, com ênfase no indivíduo ou casos de saúde coletiva ou institucionais, como os relacionados a problemas da comunidade ou intersetoriais, à promoção à saúde ou a atendimentos de grupos. Desse modo, pretende-se avançar nas discussões e proposições teórico-práticas voltadas não apenas para o autoconhecimento e melhoria da relação médico-paciente, mas também para o incremento dos coeficientes de cogestão e de autonomia, e para a ampliação da capacidade de análise e de intervenção nas dimensões tecnoassistenciais, sociossanitárias e institucionais99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013.,1212 Oliveira Viana MM, Campos GWS. Formação Paideia para o Apoio Matricial: uma estratégia pedagógica centrada na reflexão sobre a prática. Cad. Saúde Pública. 2018 [acesso em 2021 out 25]; 34(8):e00123617. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00123617.
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,1414 Cunha GT, Dantas DV. Uma contribuição para a co-gestão da clínica: grupos Balint-Paideia. In: Campos GWS, Guerrero AVP, organizadores. Manual de práticas de atenção básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 34-60.
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Assim, nos GBP aqui analisados, os alunos apresentam o caso escolhido na forma de livre discurso (não estruturada previamente, sem apresentação de slides ou algum manuscrito) para discussão em grupo. A utilização da associação livre, tal como propõe Balint1313 Balint M. O médico, o seu doente e a doença. Lisboa: Climepsi; 1998., permite que se evidencie a transferência e a contratransferência, contribuindo para um entendimento das relações intersubjetivas que se estabelecem. Os GBP também contam com apoio do professor (chamado de apoiador), que ajuda o grupo a aumentar a capacidade de compreensão do caso e a buscar a gênese dos problemas. Após a reflexão inicial nos GBP, estimula-se que os alunos discutam o caso com a equipe na qual estão inseridos e, posteriormente, rediscutam o caso nos GBP99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013..

A formação Paideia, que abrange a lógica dos GBP, pautou as reflexões sobre as intervenções cotidianas e propunha abordar a relação com o outro, o acompanhamento das dificuldades de manejo de casos reais e, também, a compreensão das relações institucionais - tudo isso agregado à valorização da dimensão técnico-científica da formação, de modo a compreender os aspectos do processo saúde-doença, como as manifestações das patologias e seus possíveis recursos terapêuticos, associado aos aspectos ‘psi’ e os relacionados com a gestão99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013.. Compreende-se que os aspectos produtivos conscientes e inconscientes são indispensáveis, sendo propulsores e limitadores nas relações de cuidado. A revivência de modelos, o deparar-se com falhas e rupturas de campos válidos e estáveis, tende a gerar oportunidades de ação e saber; porém, é perceptível a repetição de relações assimétricas.

Busca-se, dessa forma, compreender a formação como práxis, tal como entendida por Paulo Freire1515 Freire P. Pedagogia do oprimido, 70. ed. São Paulo: Paz e Terra; 2019., em que, partindo-se da conformação de relações de respeito e de coconstrução entre professor-aluno, procura articular teoria e prática em uma ação transformadora da realidade, na perspectiva emancipadora dos sujeitos. Ao contrário da formação estritamente técnica, na práxis pedagógica pretendida no bojo do referencial dos GBP, o sujeito não pode se furtar da reflexão e dos questionamentos para escolher os melhores procedimentos e condutas para situações singulares. É necessário refletir sobre o conhecimento acumulado adequando-o à peculiaridade de cada situação, ou seja, aos sujeitos envolvidos e às diferenças de valores e conjunturas99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. e engajados com o compromisso da mudança social.

Um ponto essencial na realização dos GBP é a ênfase no manejo das relações interpessoais, do estudante com ele mesmo, com os seus colegas ou com a equipe de trabalho. As análises e as reflexões tanto das relações quanto do contexto visam à construção de intervenções onde se está inserido. Isso significa que os GBP se pautam em uma formação que estimula, além da reflexão, a intervenção conjunta e a coprodução de mudanças institucionais, o que demanda lidar com relações de poder no modo de fazer. Na prática, isso ocorre por meio da elaboração dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS)99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. inseridos na lógica do processo de trabalho orientado pela gestão compartilhada e pela democracia institucional99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013..

Nesse sentido, a realização dos GBP, associada aos Projetos de Intervenção/Projetos Terapêuticos, dentro da Formação Paideia, busca conciliar e reinventar elementos oriundos de propostas pedagógicas como as da educação permanente1616 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2009., da supervisão clínico-institucional1717 Onocko-Campos R. Sejamos heterogêneos: contribuições para o exercício da supervisão clínico-institucional em saúde mental. In: Onocko-Campos R. Psicanálise e Saúde Coletiva: interfaces. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 148-172., da aprendizagem baseada no trabalho descrita por Raelin1818 Raelin JA. A model of Work-based learning. Organization Science. 1997; 8(6):563-578. e Billett1919 Billett S. Workplace learning: its potential and limitations. Education and Training. 1994; 37(4):20-27. e da aprendizagem baseada em problemas analisada por Vernon e Blake2020 Vernon DTA, Blake RL. Does problem-based learning work? A meta-analysis of evaluative research. Academic Medicine. 1993; 6(7):550-563..

O principal elemento compartilhado por tais abordagens é a aposta na produção de subjetividade cuidadora, reflexiva e crítica. Barros2121 Barros RB. Grupo: estratégia na formação. Laboratório de sensibilidades. 2014. [acesso em 2021 out 15]. Disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2014/11/20/grupo-estrategia-na-formacao/.
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explica que pensar a formação nesse âmbito significa colocar em cena os territórios existenciais, o cotidiano de trabalho e as diferentes relações que se estabelecem nesses encontros. Já não se trata de dar informações sobre um tema, mas de possibilitar a apreensão de diferentes modos de conhecimento e pensamento, provocando mudanças em nome de novas práticas, novos objetos e novos sujeitos.

Todavia, é preciso reconhecer que persiste a dificuldade em implementar, nas instituições de ensino superior e no SUS, essas estratégias interativas de formação e que as iniciativas pedagógicas baseadas no trabalho compartilhado ainda enfrentam resistência e dificuldade operacional2222 Gonçalves DA, Fortes S, Campos M, et al. Evaluation of a mental health training intervention for multidisciplinary teams in primary care in Brazil: a pre- and posttest study. Gen Hosp Psychiatry. 2013 [acesso em 2021 out 15]; 35(3):304-308. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1016/j.genhosppsych.2013.01.003.
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23 Custódio JB, Peixoto MGBP, Arruda CAM, et al. Desafios Associados à Formação do Médico em Saúde Coletiva no Curso de Medicina de uma Universidade Pública do Ceará. Rev Bras Educ Med. 2019 [acesso em 2022 jul 3]; 42(2):114-121. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/nwjD8jVHk8VWGmqZ94HsBJy/?format=pdf&lang=pt.
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24 Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet. 2010 [acesso em 2022 jun 25]; 376(9756):1923-1958. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(10)61854-5/fulltext.
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-2525 Vieira SP, Pierantoni CR, Magnago C, et al. A graduação em medicina no Brasil ante os desafios da formação para a Atenção Primária à Saúde. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jun 30]; 42(esp1):189-207. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/sdeb/2018.v42nspe1/189-207/pt.
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. Isso demonstra a relevância de avançar na análise e na discussão sobre experiências voltadas para esses propósitos.

Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo analisar o trabalho multiprofissional na perspectiva interdisciplinar na formação de estudantes da graduação de medicina por meio de GBP.

Material e métodos

O presente estudo é uma pesquisa qualitativa, descritiva, exploratória e analítica a respeito da utilização de estratégia pedagógica de GPB com estudantes do Internato de Saúde Coletiva, durante o 12º período do curso de medicina de uma universidade pública do interior de Minas Gerais. Toma como objeto de análise a formação médica interdisciplinar e multiprofissional no cenário da atenção básica.

Os GBP funcionavam com discussão de casos clínicos, escolhidos e apresentados por uma dupla/trio de internos, a partir da vivência destes na APS; e, também, com momentos de discussão teórica. Os GBP foram incorporados como atividade curricular obrigatória para os estudantes, porém não incluída na avaliação somativa dessas atividades, para minimizar as interferências no processo de discussão dos próprios grupos. Os 42 estudantes foram divididos em duas turmas, cada uma com 12 encontros quinzenais durante o segundo semestre de 2019.

Os estudantes, ao longo dos seis meses do Internato de Saúde Coletiva, estagiaram em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), onde realizaram suas atividades em uma equipe de saúde da família e no Nasf, exceto por quatro estudantes que fizeram o estágio no Centro de Saúde Escola cujo modelo de atenção ainda era de uma UBS tradicional, embora em transição para a Estratégia Saúde da Família (ESF).

Apesar do cenário nacional de precarização da APS e importante afastamento do modelo da ESF, que se manifesta desde a mudança da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 20172626 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do SUS. Diário Oficial da União. 22 Out 2017. e se intensifica na nova forma de financiamento, com o Programa Previne Brasil2727 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019. Institui o Programa Previne Brasil. Diário Oficial da União. 13 Nov 2019., que tende a remunerar procedimentos médicos do tipo queixa-conduta e retira recursos para ações interdisciplinares, tais como os Nasf2828 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2022 jun 28]; 36(9):e00040220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Hx4DD3yCsxkcx3Bd6tGzq6p/?format=pdf&lang=pt.
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,2929 Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciênc. Saúde Colet. 2020 [acesso em 2022 jun 28]; 25(4):1475-1482. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/TGQXJ7ZtSNT4BtZJgxYdjYG/?format=pdf&lang=pt.
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, todas as equipes nas quais os estudantes estavam inseridos contavam com Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Nasf e ainda eram organizados segundo as diretrizes da PNAB (exceto as do Centro de Saúde Escola).

Para a produção de dados, foram realizados Grupos Focais (GF) com os estudantes: dois realizados concomitantemente no início (GFi) e um ao final (GFf) do estágio, com a participação de 25 e 14 estudantes respectivamente.

O GF tem sido utilizado para avaliar perspectivas e experiências a partir do olhar dos próprios participantes do grupo. Recomendado para pesquisas avaliativas e reconhecido por Westphal, Bógus e Faria3030 Westphal MF, Bógus CM, Faria MM. Grupos focais: experiências precursoras em programas educativos em saúde no Brasil. In: Boletim da Oficina Sanitária do Panamá. 1996; 120(6):472-482. como técnica eficaz para planejamento e avaliação de programas educativos, o GF adapta-se aos objetivos do nosso estudo, contribuindo para a avaliação da Formação Paidéia1212 Oliveira Viana MM, Campos GWS. Formação Paideia para o Apoio Matricial: uma estratégia pedagógica centrada na reflexão sobre a prática. Cad. Saúde Pública. 2018 [acesso em 2021 out 25]; 34(8):e00123617. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00123617.
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e, por conseguinte, para a avaliação do uso do GBP.

Os GF desta pesquisa foram gravados em áudio e transcritos. Para a interpretação do material produzido nos GF, empregou-se a técnica de elaboração de narrativas, conforme metodologia analítico-reflexiva proposta por Onocko-Campos e Furtado3131 Onocko-Campos R, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saúde Pública. 2008 [acesso em 2021 jul 5]; 42(6):1090-6. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-89102008005000052.
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Na narrativa, o analista se coloca como intérprete, como tradutor do que foi dito pelo grupo. Isso significa que há a interferência da cultura, do modo de ser e pensar do analista nas narrativas. Dessa forma, a própria transcrição da narrativa, com o encadeamento de ideias e extração dos principais argumentos, já se constitui uma primeira parte da interpretação. Em seguida, as narrativas foram submetidas a uma grade interpretativa para extração dos principais núcleos argumentativos em relação ao roteiro utilizado nos GF3232 Onocko-Campos R, Furtado JP, Passos E, et al. Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2008..

Foram cumpridos os requisitos da resolução nº 466/2012 e suas complementares, tendo sido o estudo submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob o número CAAE 00849118.0.0000.5404, e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), sob o número CAAE 00849118.0.3001.5152. Todos os 42 participantes foram informados sobre os termos da pesquisa e deram anuência para sua inclusão no estudo mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados e discussão

Ao analisar as narrativas dos GF sob o olhar do trabalho multiprofissional na perspectiva interdisciplinar, foram construídos os seguintes núcleos argumentativos: a) potencialidades e entraves para a realização do trabalho em equipe, b) a influência da formação baseada no trabalho para o exercício da atividade colaborativa com equipes multiprofissionais, c) o papel dos Grupos Balint-Paideia no processo formativo do estudante de medicina para a atuação no SUS e da aprendizagem dos conceitos práticos básicos da APS a partir da vivência com profissionais de outras áreas.

Potencialidades e entraves para a realização do trabalho em equipe

As potencialidades do trabalho em equipe, como primeiro núcleo argumentativo, aparecem na narrativa inicial de forma muito vaga e abstrata, reflexo da vivência esparsa e pontual do trabalho multiprofissional que os estudantes tiveram até o 11º período do curso de medicina, mais focada no cenário hospitalar.

Apesar da grande admiração dos estudantes pelo SUS, foi difícil identificarem seus aspectos positivos, que eram relatados de forma genérica ou conceitual, como aqueles relativos aos princípios do SUS (universalidade, integralidade e equidade). Chama atenção que o trabalho multiprofissional foi um dos poucos aspectos que os estudantes conseguiram exemplificar como o ‘SUS que dá certo’.

No final do estágio, percebeu-se que os internos conseguiram identificar mais concretamente as potencialidades do trabalho multiprofissional na medida em que puderam vivenciá-lo nas UBS. Para a maioria deles, foi somente no 12º período do curso de medicina que eles puderam exercitar o trabalho multiprofissional pela primeira vez. Descrevem a atuação com diferentes categorias profissionais (enfermeiros, ACS, assistentes sociais, psicólogos, entre outros) em diversos cenários: discussões de casos, consultas conjuntas, visitas domiciliares, construção de PTS, ações no território e intersetoriais, e campanhas. Destacaram também a ampliação do cuidado em saúde mental como uma das potencialidades do trabalho interdisciplinar e multiprofissional.

O interessante é que vimos isso [o trabalho multiprofissional] acontecendo na prática, como uma discussão conjunta de caso, a articulação em rede, dentre outros. Pudemos ver casos onde foi realizada a consulta conjunta entre o médico de família, o médico especialista que faz a tutoria na unidade e a enfermeira; trabalho conjunto com a assistente social do Nasf, a qual fazia a articulação com equipamentos sociais do território [como escola]. Algumas equipes até se mobilizaram, em casos pontuais, com arrecadação de dinheiro na própria equipe ou por meio de doações para fornecer uma cesta básica para uma família extremamente vulnerável do território. (GFf).

Em relação aos entraves para o trabalho em equipe, pode-se perceber que, apesar de ser reconhecido como essencial para um bom funcionamento da atenção básica (e outros níveis do sistema), os estudantes apresentaram diferentes olhares sobre o que seria um trabalho multiprofissional satisfatório e relataram, no GF inicial, apreensão em trabalhar em equipe, pois não sabiam ao certo o papel de cada profissional.

Japiassu66 Japiassu H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago ed; 1976. discute os conceitos de multidisciplinar e pluridisciplinar para então esclarecer a interdependência dos saberes, a interdisciplinaridade. Os dois primeiros conceitos geram agrupamento de saberes, não há um acordo metodológico para a construção do objeto comum. Para esse autor, um projeto de trabalho interdisciplinar é reconhecido pela intensidade de trocas entre os pares e pela integração das disciplinas. Dessa forma, a preocupação com o papel de cada profissional denuncia a não compreensão da complexidade do objeto saúde e expõe mais uma vez a fragilidade da formação reduzida ao modelo biomédico.

A experiência anterior dos alunos havia sido pautada em uma lógica médico-centrada, o que também configura um dos entraves para o trabalho em equipe. Há uma desvalorização de qualquer tipo de saber dos profissionais não médicos, refletindo na delegação de funções para os demais profissionais, sem discussão de caso ou construção conjunta de projetos terapêuticos. Parece reproduzir a assimetria de poder na divisão social do trabalho, que Peduzzi et al.33 Peduzzi M, Agreli HLF, Silva JAM, et al. Trabalho em equipe: uma revisita ao conceito e a seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trab. Educ. Saúde. 2020 [acesso em 2021 out 25]; 18(supl1):e0024678. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00246.
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denunciam como ponto a ser superado para a efetivação da interdisciplinaridade.

Muitas vezes só delegamos a função para os trabalhadores das demais categorias profissionais. Por exemplo, no hospital a gente só entrega a prescrição para os enfermeiros e pede para eles executarem o que está descrito, tipo medicação, curativo ou outro. E isso se repete com outros profissionais, como fisioterapeutas, psicólogos e nutricionistas. (GFi).

Na prática em saúde, os trabalhadores devem lidar com a multiplicidade de saberes e de poder de cada profissional, bem como com as diferenças de paradigmas, o que torna importante saber lidar com conflitos em vez de evitá-los ou de tentar consensos em todas as situações. É preciso exercitar a capacidade de fazer pactuações99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013.. Os estudantes, no GF inicial, identificam bem esse conflito e encaram que deveriam envolver a amorosidade em sua resolução.

Os GBP, por sua vez, foram espaços coletivos em que os estudantes puderam refletir sobre casos clínicos, respeitando as diversas opiniões, e incluindo a complexidade das relações humanas, que ultrapassam burocracias e lugares instituídos, embora sejam influenciados por essas estruturas. A experiência de lidar com essa complexidade permitiu aos estudantes identificar o aspecto intersubjetivo do cuidado, do qual faziam parte ativamente, resultando em novas percepções sobre a própria identidade profissional. Além disso, os estudantes foram estimulados a participar de espaços coletivos nas unidades de saúde (reuniões de equipe) com intuito de ampliar a discussão do caso a partir de visões diferentes de mundo, da equipe e de usuários, tentando construir contratos e elaborar projetos comuns.

A vivência dos estudantes na APS evidenciou relações burocratizadas que dificultaram a construção de um cuidado conjunto entre profissionais, estudantes e usuários. A burocratização das ações foi também considerada um dos entraves ao trabalho em equipe: “Quando havia reunião de equipe [nas UBS], pouco se viu a discussão de casos, mas sim a discussão de demandas administrativas/burocráticas” (GFi). A racionalidade técnica e normativa, herança do paradigma gerencial hegemônico na saúde, reflete em ações que endurecem as equipes, dificultam o diálogo entre os próprios trabalhadores, e destes com os usuários, e apagam os sujeitos em suas particularidades99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013..

Além disso, a relação de poder hierárquica vivenciada pelos internos, predominantemente no ambiente hospitalar, mas também nas UBS, foi relatada como outro dificultador para o trabalho multiprofissional. Os estudantes ficaram extremamente mobilizados com esse tema durante os GF, descrevendo o assédio que sofreram durante o curso de medicina, e denunciaram a cultura de competição e de individualismo, que prioriza o trabalho do médico em detrimento do trabalho de outros profissionais. Essa discussão tornou-se mais branda no grupo final, quando os estudantes ressignificam o papel do médico na equipe multiprofissional a partir do estágio na UBS.

Quando somos questionados sobre como vivenciamos a relação de poder durante o estágio do Internato de Saúde Coletiva, a primeira reação nossa é de alívio! Alívio ao pensar que pudemos vivenciar uma relação de poder na UBS bem diferente da do hospital, com bem menos hierarquia. Alívio ao pensar que nós médicos não precisamos ser os únicos detentores do saber, como era o papel da maioria dos chefes lá no hospital. Além do mais, podemos compartilhar as decisões com os usuários, já que aprendemos na prática que o paciente também tem responsabilidade no cuidado. (GFf).

É interessante notar como essa construção social do ‘médico todo poderoso’ abriu espaço para que os estudantes dialogassem com profissionais de outras categorias e vice-versa, o que indica uma possibilidade de reestruturação psíquica que tende a se orientar para um fazer/saber colaborativo.

A própria experiência multiprofissional e as relações transferenciais que nela se estabelecem parecem ter auxiliado na aprendizagem do trabalho colaborativo.

Alguns de nós nos sentimos mal de pensar que no hospital o comum era não levarmos em consideração a informação do enfermeiro, que tem 5 anos de faculdade. E é bom pensar que na Unidade [na maioria delas] até os ACS, que não tem formação técnica específica, são valorizados. (GFi).

Toda relação é imersa e sustentada por um ambiente que, se adequado, permite a atualização de amadurecimentos potenciais do sujeito3333 Freller CC. Pensando com Winnicott sobre alguns aspectos relevantes ao processo de ensino e aprendizagem. Psicologia USP. 1999 [acesso em 2021 out 26]; 10(2):189-203. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65641999000200012.
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. Os estudantes se surpreendem, o tempo de formação do profissional parecia validar ou invalidar seu conhecimento; agora a premissa parece questionável, cinco anos de formação é comum a quase todas as graduações em saúde, exceto ao curso de medicina. Identificando a valorização dos ACS em algumas unidades, logo, os alunos se aproximam da compreensão de que o trabalho multiprofissional interdisciplinar não se reduz apenas a saberes constituídos formalmente, envolve saberes populares e avançadas tecnologias humanas, como a relação entre pares.

Afirmam ainda que “Às vezes achamos mais fácil lidar com profissionais de outras categorias, que nos tratam como ‘médicos’ [...] podiam falar abertamente, pois não havia hierarquia...” (GFi), referindo-se à pirâmide de poder dentro dos hospitais, na qual os estudantes de medicina são considerados ‘profissionais de saúde’ mais confiáveis aos enfermeiros do que os médicos. Nota-se que é na relação multiprofissional que os estudantes se reconhecem valorizados e que identificam lugares estruturalmente forjados para e pela categoria médica. Assim, na relação com os diferentes e na reflexão sobre as relações de poder, surge a possibilidade de mudança, construindo uma práxis interdisciplinar.

Entende-se que, no ambiente hospitalar, mesmo cientes da assimetria que afeta diretamente aos estudantes, ela era repetida, atualizada nas relações com profissionais de outras áreas, que comumente não a levavam em consideração. Após a experiência multiprofissional de cunho integrativo88 Peduzzi M. Trabalho em equipe. In: Pereira I, Lima JCF. Brasil Dicionário da educação profissional em saúde. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: EPSJV; 2009. p. 419-426. na APS, alguns internos atualizaram suas relações com o fazer-saber dos profissionais enfermeiros e de outros.

Por vezes, os estudantes se referem aos aspectos clínicos do cuidado concomitantemente à importância da aprendizagem para além da clínica, favorecida pela vivência no estágio na APS e pelo encontro com profissionais de outras categorias. Há evidências do reconhecimento do próprio trabalho como parte de um processo integrado que inclui a intersubjetividade dos diversos atores envolvidos e diversas áreas de saber.

Um desafio na APS é a construção de espaços de gestão coletivos e democráticos, operando com a lógica da cogestão e do apoio nas relações interprofissionais3434 Oliveira Viana MM, Terra LSV. Formación Paideia en atención primaria: análisis de la democracia institucional y las relaciones de poder en las práticas laborales em salud. Salud Colectiva. 2021 [acesso em 2021 set 20]; (17):e3298. Disponível em: https://doi.org/10.18294/sc.2021.3298.
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. Nas UBS onde os internos estagiaram, apesar de haver um espaço protegido semanalmente para a reunião de equipe, os estudantes relataram que as decisões eram centralizadas na figura do(a) coordenador(a) da equipe, representado(a) pelo(a) enfermeiro(a): “[...] E isso fica tudo concentrado no papel da enfermeira pois não há corresponsabilização das decisões” (GFi).

A influência da formação baseada no trabalho para o exercício da atividade colaborativa com equipes multiprofissionais

O local de trabalho é um importante campo de aprendizagem do estudante. Existem diversas ferramentas e abordagens que podem ser empregadas para aprimorar a aprendizagem baseada no trabalho, garantindo o treinamento de profissionais de saúde capazes de prestar cuidados eficientes, eficazes e seguros aos pacientes1818 Raelin JA. A model of Work-based learning. Organization Science. 1997; 8(6):563-578.,1919 Billett S. Workplace learning: its potential and limitations. Education and Training. 1994; 37(4):20-27.,3535 Morris C, Blaney D. Work-based learning. In: Swanwick T. Understanding Medical Education. 2. ed. 2013. p. 97-109. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://doi.org/10.1002/9781118472361.ch7.
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. Aqui entra a análise do segundo núcleo argumentativo: a influência da formação baseada no trabalho para o exercício da atividade colaborativa com equipes multiprofissionais.

Um dos fatores que impactam na aprendizagem no local de trabalho é a duração e o tempo de um estágio. Estágios mais longos e integrados são mais benéficos que aqueles muito curtos, os quais dificultam a imersão na cultura do serviço, da equipe e da especialidade3535 Morris C, Blaney D. Work-based learning. In: Swanwick T. Understanding Medical Education. 2. ed. 2013. p. 97-109. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://doi.org/10.1002/9781118472361.ch7.
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. A oportunidade da imersão dos estudantes durante seis meses na mesma equipe de saúde da família foi reconhecida por eles como um diferencial positivo para o aprendizado, refletindo na integralidade do cuidado inerente ao poder “iniciar um pré-natal e ainda ter a oportunidade de consultar o binômio” (GFf).

Uma dificuldade na aprendizagem baseada no trabalho é a falta de padronização do que vai ser ensinado, já que o local de trabalho nem sempre oferece oportunidades equânimes. Além disso, existe uma tensão na educação médica entre o que seria promover um ensino médico de excelência e como dar respostas a questões instrumentais do mundo do trabalho, considerando as necessidades da população, dos trabalhadores e dos empregadores3535 Morris C, Blaney D. Work-based learning. In: Swanwick T. Understanding Medical Education. 2. ed. 2013. p. 97-109. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://doi.org/10.1002/9781118472361.ch7.
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. Como cada grupo de quatro ou cinco estudantes estagiaram em UBS diferentes, essa variedade dos cenários foi identificada como um fator que influenciou no aprendizado deles sobre o trabalho multiprofissional.

Os GBP contribuíram para uma troca sobre essas experiências distintas nos ambientes de trabalho, já que seus participantes comparavam, identificavam razões, possibilidades, falhas, características da comunidade, da gestão e até mesmo do modo de se integrarem a cada realidade. Deve-se apostar em cada cenário sem expectativa de que sejam iguais, considerando suas singularidades, assim como cada pessoa dá um sentido específico ao que vê, escuta, sente e faz. Como em um movimento dialético, influenciamos o nosso local de trabalho e somos influenciados e moldados por ele3535 Morris C, Blaney D. Work-based learning. In: Swanwick T. Understanding Medical Education. 2. ed. 2013. p. 97-109. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://doi.org/10.1002/9781118472361.ch7.
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.

Os estudantes aprendem a partir de todo o contexto que os envolvem: o clima do ambiente de trabalho pode ser estimulante ou disfuncional, produzindo efeitos diversos na aprendizagem singular. O aprendizado também pode se dar tacitamente, por meio da observação do outro, por imitação ou pela identificação de um ‘modelo’, sendo que bons professores clínicos são mais reconhecidos por suas características pessoais ou relacionais, envolvendo aspectos não cognitivos, como atitudes, comportamentos e transmissão de valores1818 Raelin JA. A model of Work-based learning. Organization Science. 1997; 8(6):563-578.,1919 Billett S. Workplace learning: its potential and limitations. Education and Training. 1994; 37(4):20-27.,3535 Morris C, Blaney D. Work-based learning. In: Swanwick T. Understanding Medical Education. 2. ed. 2013. p. 97-109. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://doi.org/10.1002/9781118472361.ch7.
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A possibilidade de pertencimento e de se envolver de forma ativa com o paciente é uma consequência do acolhimento das equipes aos estudantes. Encontramos menções sobre quase nenhuma experiência de trabalhar com outras categorias profissionais antes do internato de saúde coletiva e que, apesar de cuidar dos mesmos pacientes, se sentiam distantes desses profissionais. Fica o questionamento: como envolver de forma significativa os estudantes na equipe? Considerar que a aprendizagem se dá em ‘comunidades de práticas’3535 Morris C, Blaney D. Work-based learning. In: Swanwick T. Understanding Medical Education. 2. ed. 2013. p. 97-109. [acesso em 2021 out 20]. Disponível em: https://doi.org/10.1002/9781118472361.ch7.
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é essencial para compreender o papel da equipe nesse processo, bem como o papel exercido pelo próprio internato de saúde coletiva e pelos GBP.

O papel dos Grupos Balint-Paideia no processo formativo do estudante de medicina para a atuação no SUS

Um dos objetos dos GBP é o desvelar-se do próprio inconsciente atuante por meio das relações transferenciais, nas quais condutas e interlocutores apontam para pistas sobres valores e desejos. Compreender a aplicabilidade dos GBP nesse processo formativo do estudante de medicina constitui-se o terceiro núcleo argumentativo. Em roda, estimula-se que os participantes desses grupos

[...] apurem sua sensibilidade para estar em contato com o outro e seu sofrimento [...] e propiciar que desenvolvam a capacidade de se analisarem permanentemente nessas relações99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013.(197).

A sensibilidade é a primeira condição para a concretização da interdisciplinaridade, que está fundamentada na compreensão do ‘humano’44 Vilela EM, Mendes IJM. Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico. Rev Latino-am Enfermagem. 2003 [acesso em 2021 out 22]; 11(4):523-31. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-11692003000400016.
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. Equipes de saúde da família que trabalham considerando a intersubjetividade no cotidiano de suas ações têm resultados mais positivos, com exercício diário da interdisciplinaridade no trabalho multiprofissional, já que conseguem ampliar escuta e diálogo, essenciais para um bom acolhimento; construir maior vínculo entre trabalhadores e usuários; e, também, desenvolver sentimento de compromisso dos trabalhadores, estimulando práticas mais integradas3636 Santos DS, Mishima SM, Merhy EE. Processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família: potencialidades da subjetividade do cuidado para reconfiguração do modelo de atenção. Ciênc. Saúde Colet. 2018 [acesso em 2021 out 21]; 23(3):861-870. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/s9bmJspgCcykVW6gddLytdG/?lang=pt&format=pdf.
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.

Os internos reconheceram a importância da subjetividade no processo de trabalho e, ao mesmo tempo, sentiam-se desconfortáveis em expor seus afetos na discussão dos casos durante os GBP, o que parece reforçar a necessidade aventada por Barros2121 Barros RB. Grupo: estratégia na formação. Laboratório de sensibilidades. 2014. [acesso em 2021 out 15]. Disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2014/11/20/grupo-estrategia-na-formacao/.
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sobre processos formativos pautados na (re)significação subjetiva.

A discussão dos Projetos Terapêuticos Singulares, nos Grupos Balint Paideia, abriu espaço para lidarmos com a nossa própria subjetividade. [...] Nos GBP pudemos expor nossos próprios sentimentos, principalmente a frustração, e como reconhecer e/ou lidar com isso. Alguns de nós nos sentimos incomodados ao sermos questionados a expor nossos sentimentos nos GBP. Estamos mais acostumados a ser práticos, fazer as coisas, a ‘colocar a mão na massa’, e nos incomoda um pouco ter que refletir sobre nós mesmos ou teorizar sobre os casos. (GFf).

Os internos identificaram que ‘colocar a mão na massa’ significa parte da praticidade da identidade médica; os GBP os fizeram notar que são pessoas sensíveis, e isso tende a permitir a humanização do cuidado. A atenção no que sentiam e faziam gerava incômodo. O incômodo, por sua vez, potencializava a reflexão e a valorização do compromisso profissional com os atendidos.

A aprendizagem dos conceitos práticos básicos da APS a partir da vivência com profissionais de outras áreas

A aprendizagem de dispositivos da APS, como PTS, clínica ampliada e apoio matricial, ficou evidente com o decorrer do estágio, e sua análise representa o último núcleo argumentativo.

Os GBP estimulam que os seus participantes construam o PTS na prática, com trabalhadores do serviço. Para tanto, precisam aprender a lidar com a equipe, considerando os conhecimentos e práticas das diferentes disciplinas ou das diversas categorias profissionais99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013.. Para a maioria dos estudantes, foi a primeira experiência de fazer PTS no curso de medicina. Além disso, consideraram o PTS importante para ampliação da clínica e do trabalho interdisciplinar em equipe multiprofissional, sendo encarado como uma ferramenta que pode ser utilizada no trabalho deles enquanto médicos, independentemente da especialidade ou local de atuação destes.

A formação de sujeitos capazes de analisar e intervir na realidade permanece um desafio na formação de profissionais de saúde99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013., porém, os GF indicam que os entraves inerentes à utilização de dispositivos mais potentes para que a práxis interdisciplinar ocorra, tal com o PTS, agregam dificultadores da ordem também da organização do trabalho das equipes. Além disso, ao relatar que tiveram dificuldade de envolver a equipe na construção dos PTS, os estudantes questionam sua própria capacidade, enquanto futuros profissionais, de utilizá-los na prática clínica.

Um dos entraves de fazer PTS no Internato de Saúde Coletiva foi a falta de articulação com a equipe multiprofissional e a falta de reunião de equipe nas UBS. Muitas vezes nós internos ficávamos sobrecarregados para acompanhar o paciente, tínhamos que ficar motivando ou correndo atrás da equipe, porque senão ninguém se envolvia com o caso. Dessa forma, não conseguimos nos ver fazendo vários PTS na nossa vida profissional, pois ficaria muito pesado. (GFf).

A vivência do trabalho multiprofissional nas unidades de saúde, com todos os seus desafios, aliada à reflexão da prática dos estudantes nos GBP, a partir dos casos apresentados, foram importantes para aumentar a compreensão do valor da clínica ampliada e do apoio matricial.

Exercer a clínica ampliada implica aprender que ela só é possível a partir de uma integração disciplinar no trabalho em equipe55 Peduzzi M, Agreli HLF. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface - Com. Saúde Educ. 2018 [acesso em 2021 out 25]; 22(supl2):1525-1534. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0827.
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, compreendendo que todos os profissionais de saúde ‘fazem clínica’, e incluindo aspectos biopsicossociais nas intervenções terapêuticas1111 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2010.. Esses aspectos foram reconhecidos pelos estudantes.

Os alunos também relataram que a forma mais comum de compartilhamento do cuidado até o 11º período do curso foi por meio de referência e contrarreferência, um sistema tradicional pautado na impessoalidade, na burocracia e na baixa capacidade de reconhecimento do itinerário terapêutico do usuário3434 Oliveira Viana MM, Terra LSV. Formación Paideia en atención primaria: análisis de la democracia institucional y las relaciones de poder en las práticas laborales em salud. Salud Colectiva. 2021 [acesso em 2021 set 20]; (17):e3298. Disponível em: https://doi.org/10.18294/sc.2021.3298.
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. Essa experiência foi diferente da vivenciada pelos estudantes no hospital, já que, na UBS, puderam vivenciar, mesmo que de forma incipiente, uma lógica pautada no apoio, com utilização de diversas ferramentas, como atendimento conjunto, discussão de casos em equipe, visita domiciliar, PTS, atividades de formação para a própria equipe, entre outras.

Considerações finais

Ao analisar o trabalho multiprofissional na perspectiva interdisciplinar na formação de estudantes da graduação de medicina por meio de GBP, notou-se que este permanece como aspecto desafiador e que seus avanços parecem se concentrar na APS, em detrimento de outros pontos da rede, na medida em que os alunos tendem a opor a formação em saúde coletiva à do ambiente hospitalar. Ademais, o enfoque em um campo de práticas real, concreto e dinâmico emerge como atributo essencial para novas aprendizagens, da ordem da complexidade, já que os aproxima das vidas envolvidas e do funcionamento institucional: são experiências verdadeiras e não controladas, embebidas de subjetividade e fonte de muitas inquietações motivadoras para o aprendizado.

Outrossim, se o contexto da APS parece figurar como ambiente propício para uma formação voltada ao trabalho interdisciplinar, o emprego dos GBP, ao levar em consideração a intersubjetividade inseparável das condutas humanas, parece constituir um dispositivo interessante para realizar essa formação. Isso porque, com ele, os estudantes são estimulados a identificar: a complexidade do processo saúde-doença-sociedade; a importância do trabalho na atenção básica; as lacunas do saber médico que podem ser minimizados no entrelaçar cooperativo com outros saberes e práticas; a divisão social do trabalho e sua reprodução subjetiva que centraliza alguns conhecimentos em detrimento e desvalorização de outros e, sobretudo, a gama de possibilidades de aprendizagens significativas pautadas na vivência nas UBS.

Por seu turno, a formação baseada no trabalho, assim como nos GBP, requer criticidade e criatividade dos estudantes e docentes, precisando buscar a fundo a teoria e associá-la à realidade, inventando modos de aplicá-la de forma compartilhada. Nesse ponto, o emprego de elaboração de PTS como parte inerente ao GBP mostrou-se um recurso importante.

Essa possibilidade crítica oferecida pelo estágio e pelos espaços de discussão e reflexão, promovida com o auxílio dos GBP, facultou aos estudantes a identificação e a reflexão sobre potências/limitações da teoria e sobre as dificuldades da equipe, as emergências que geram o novo e requerem construções interdisciplinares.

Assim, o envolvimento ou não por parte de profissionais, as dificuldades inerentes à organização da rede de atenção do município, as disputas profissionais, a assimetria médico-paciente, as angústias e as onipotências entraram em cena nas discussões do PTS no GBP.

Nesse ensejo, a formação oportunizou a reflexão, também, sobre a interdisciplinaridade na APS, que, se por um lado, constitui seu diferencial, por outro, permanece como tarefa desafiadora e pouco privilegiada pela estrutura dos serviços. A percepção dos alunos é de que a resolutividade na APS se associa, bastante, ao fato de se tratar de um trabalho em equipe, feito por meio de acolhimento, discussão de caso, articulação de cuidados de forma colaborativa, fortalecimento de rede familiar e institucional.

Ao associar os GBP com o contexto da APS, cria-se, ao que parece, um terreno fértil para que os estudantes possam se debruçar sobre as relações que se estabelecem no ambiente de trabalho, considerando suas transversalidades e identificando pontos de convergências e de divergências entre saberes, demandas, práticas e modos de subjetivação. Contudo, foram identificados entraves à formação e à interdisciplinaridade na APS, tais como as relações de poder e as inconsistências na efetivação do SUS e de seu projeto de uma atenção integral.

Por fim, o estudo permitiu compreender que a estratégia pedagógica, combinando prática na APS, vivência interprofissional, e a utilização de GBP, com elaboração de PTS, tende a propiciar que se transcenda a clínica estritamente biomédica e as relações assimétricas, permitindo temperar necessidades, conquistas e potencialidades. No caso aqui apresentado, tratou-se de um olhar que abalou as divisões disciplinares e de evocar a construção de uma práxis interdisciplinar.

Os achados da pesquisa levantam reflexões de como a experiência interfere no manejo do estresse e da emoção do trabalho em equipe e na relação com os pacientes, bem como na saúde e valorização do trabalhador. Além disso, surge o questionamento sobre quais aprendizados da vivência interdisciplinar serão duradouros e realmente incorporados na prática desses médicos após a graduação. Seria relevante investigar, além disso, quais aspectos os impactam em longo prazo, a ponto de mudar suas práticas. Abrem-se, portanto, perspectivas relevantes para investigações futuras acerca do tema.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2021
  • Aceito
    08 Ago 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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