Estudo comparativo entre empresa farmacêutica global e instituição pública de produção e inovação em saúde

Kelly Cristina Rodrigues da Rocha Carlos Augusto Grabois Gadelha Sobre os autores

RESUMO

O cenário tecnológico no campo da saúde é um fato alarmante, mormente no contexto provocado pela Covid-19. Nessa conjuntura, a Fundação Oswaldo Cruz, por meio da Unidade de Bio-Manguinhos, e o Butantan foram protagonistas para o acesso universal, dialogando com estratégicas internacionais. No adensamento da discussão estratégica para Instituições Públicas de Produção e Inovação em Saúde (Ippis), o uso de diretrizes da Avaliação de Tecnologias em Saúde destaca-se como via de mudança paradigmática para a introdução de tecnologias no Sistema Único de Saúde (SUS) alinhada à visão de inovação de futuro em saúde consonante às demandas nacionais. Este artigo, desenvolvido metodologicamente mediante pesquisas descritiva qualitativa, bibliográfica, documental e trabalho de campo, buscou traçar simetrias e assimetrias baseado nas experiências coletadas em empresa farmacêutica global e instituição de referência nacional pública do campo de incorporação tecnológica em saúde. Como resultados, são explicitados pontos-chave para o fortalecimento técnico e político do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, por meio da revisão organizacional das Ippis quanto a aspectos de inovação e de gestão, culminado na promoção de melhorias na Política de ciência, tecnologia e inovação em resposta ao desafio da sustentabilidade, efetividade e acesso no SUS.

PALAVRAS-CHAVES
Acesso a medicamentos essenciais e tecnologias em saúde; Avaliação da tecnologia biomédica; Sistema Único de Saúde; Complexo Econômico-Industrial da Saúde

Introdução

A área da saúde é nitidamente percebida como área de grande dinamismo e absorção de conhecimento e ponto de equilíbrio entre desenvolvimento econômico e bem-estar social, tendo o Sistema Único de Saúde (SUS) como um dos maiores consumidores de inovação. Assume-se, portanto, como o elo crítico que subordina a política industrial, de inovação e gestão em saúde. Para tal, no essencial papel do Estado, o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis) atua como articulador dos fatores essenciais (conhecimento tecnológico, indústria, produtos e serviços e incorporação tecnológica no SUS) em seus subsistemas, em prol da universalização do acesso à saúde no Brasil, fortalecimento da indústria e musculatura tecnológica, como contraponto à lógica capitalista que permeia a dinâmica do sistema nacional da saúde11 Gadelha CAG, Barbosa P, Maldonado J, et al. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil: dinâmica de inovação e implicações para o Sistema Nacional de Inovação em saúde. Rev Bras Inov. 2013; 12(2):252-282., 22 Gadelha CAG, Temporão JG. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2018; 23(6):1891-1902..

Por outro lado, a ampliação do acesso no sistema de saúde por meio da introdução de novas tecnologias estabelece um progressivo aumento dos gastos públicos em saúde, principalmente na base química e biotecnológica do Ceis, alimentado pela demanda de novos medicamentos. Dessa forma, a incorporação de tecnologia e a sustentabilidade tornam-se temas centrais em países que adotaram caminhos para universalização do sistema de saúde, como Brasil e Reino Unido. Com prejuízo à sustentabilidade desse sistema, o aumento de gastos públicos, potencializado pela judicialização da saúde, a perspectiva de accountability e a sistematização recente do fluxo de incorporação de tecnologia em saúde no Brasil impõem pressão aos gestores do setor da saúde33 Guimarães R, Carvalheiro J, Elias F, et al. Política de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2019; 24(3):881-886., 44 Monteiro PHN, Alves OSF, Ianni AMZ. A gestão da incorporação tecnológica no SUS: desafios para a formação de gestores. Bol Inst Saúde. 2007; (42):29-31., 55 Silva HP, Petramale CA, Elias FTS. Avanços e desafios da política nacional de gestão de tecnologias em saúde. Rev Saúde Pública. 2012; 46(supl1):83-90..

Como meio de organizar e amadurecer o processo de incorporação tecnológica no Brasil, a institucionalização da Política Nacional de Gestão Tecnológica em Saúde (PNGTS), em 2009, objetivou a sistematização dos processos de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) como elemento de subsídio estratégico. Sob a responsabilidade da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no Sistema Único de Saúde (Conitec), inserida organizacionalmente no Ministério da Saúde, está a ampliação de um olhar estrito às questões econômicas para uma visão multidisciplinar quanto à avaliação das inovações para a saúde, pois, ao incluir aspectos territoriais, epidemiológicos, culturais, condições de vida e necessidades de saúde da população, imputam uma relação de custo-efetividade à incorporação de tecnologia44 Monteiro PHN, Alves OSF, Ianni AMZ. A gestão da incorporação tecnológica no SUS: desafios para a formação de gestores. Bol Inst Saúde. 2007; (42):29-31..

As diretrizes metodológicas de ATS auxiliam a sistematização e dão rigor metodológico na identificação de alternativas relevantes, propiciando ambiente à redução de incertezas. Assim, além de subsidiarem estudos e respostas a órgãos de controle, atuam como um meio de minimizar o questionamento se novas tecnologias são parte do problema, parte da solução ou as duas coisas66 Trindade E. Desenvolvimento da Avaliação de Tecnologias de Saúde no mundo. Bol Inst Saúde. 2013; 14(2):135-142..

Dessa forma avaliar significa estabelecer um fluxo de análise e monitoramento, de forma a retroalimentar e influenciar todo o sistema e atores envolvidos. A busca por soluções custo-efetivas, principalmente por instituições estratégicas do Ceis, pode refletir na redução de assimetrias perante o mercado internacional, nos gastos públicos na aquisição de insumos e produtos importados e no fortalecimento da indústria nacional77 Silva Júnior JB, Ramalho WM. Cenário epidemiológico do Brasil em 2033: uma prospecção sobre as próximas duas décadas. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2015. (Textos para Discussão; n. 17). [acesso em 2022 fev 12]. Disponível em: https://saude-amanha.fiocruz.br/wp-content/uploads/2016/07/17-PJSSaudeAmanha_Texto0017_A4_07-01-2016.pdf.
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, 88 Takeda S, Talbot Y. Avaliar, uma responsabilidade. Ciênc. saúde coletiva. 2006; 11(3):569-571..

Países em desenvolvimento, apesar dos avanços observados no campo da ATS, enfrentam toda a sorte de desafios acerca da limitação de recursos, diversidade no padrão de morbidade, diversidade cultural, sistema político, estrutura do sistema de saúde, baixa disponibilidade de informação e dados e insuficiente capacidade tecnológica e produtiva99 Brasil. Ministério da Saúde. Avaliação de tecnologias em saúde: ferramentas para a gestão do SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2009. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).. Configura-se, portanto, um cenário no qual os principais atores no aprendizado tecnológico têm sido os grandes grupos econômicos capazes de internalizar competências para a seleção das tecnologias adquiridas no exterior, para seu uso e adaptação eficientes, acirrando o processo de cristalização de assimetrias tecnológicas e o hiato temporal entre inovadores e imitadores1010 Cassiolato JE, Lastres HMM. Inovação e desenvolvimento: a força e permanência das contribuições de Eber. In: Monteiro Filha D, Prado LCD, Lastres HMM, organizadores. Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaio em memória de Fábio Erber. Rio de Janeiro: BNDES; 2014. [acesso em 2022 fev 12]. Disponível em: https://fabioerber.com.br/2019/08/05/livro-turquesa-inovacao-e-desenvol-vimento-a-forca-e-permanencia-das-contribuicoes-de-erber/.
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, 1111 Cimoli M, Dosi G, Nelson R, et al. Instituições e políticas moldando o desenvolvimento industrial: uma nota introdutória. Rev Bras Inov. 2007; 6(01):55-85..

A emergência da avaliação entre a dinâmica tecnológica e o aumento de custos em saúde é reafirmada pela perspectiva do imperativo tecnológico daqueles que valorizam os novos lançamentos, o aumento da intensidade, a indicação e a expansão de uso de produtos de base tecnológica, como fatores geradores da alavancagem da competitividade no mercado sanitário1212 Gelijns A, Rosenberg N. The dynamics of technological change in medicine. Health Aff. 1994; 13(3):28-46.. Esse cenário torna a avaliação tecnológica uma responsabilidade das instituições como instrumento de participação na construção e no aperfeiçoamento do SUS, na aprendizagem tecnológica e no controle social, implicando o estabelecimento de um fluxo de análise e monitoramento, retroalimentando e influenciando todo o sistema e suas partes envolvidas88 Takeda S, Talbot Y. Avaliar, uma responsabilidade. Ciênc. saúde coletiva. 2006; 11(3):569-571..

Em razão de a estratégia de competitividade tecnológica ser sustentada pela produção de inovações em função da dependência do avanço científico, e de as descobertas tecnológicas conferirem especificidades setoriais, no setor da saúde, observam-se claramente as assimetrias ante o mercado internacional e seus impactos na indústria nacional capitaneada pelas Instituições Públicas de Produção e Inovação em Saúde (Ippis) que atuam diretamente no abastecimento e manutenção do SUS.

Metodologia

Imersa nesse contexto da Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (CTI&S), a metodologia utilizada neste trabalho determinou-se por meio de pesquisa descritiva qualitativa documental (Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa e Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz – Bio-Manguinhos/Fiocruz) e bibliográfica, a partir dos descritores “Avaliação Tecnológica em saúde” AND “Incorporação Tecnológica” AND “Sistema Único de Saúde” OR “Sistema Universal de Saúde” OR “SUS” AND “Complexo Econômico Industrial da Saúde”; em bases científicas (Scopus, SciELO, Biblioteca Virtual em Saúde no Ministério da Saúde – BVSMS, Biblioteca Virtual em Saúde – BVS), tendo o período de coleta compreendido os últimos dez anos (período atrelado à criação da Conitec em 2011), para compreensão da incorporação e avaliação tecnológica no SUS.

Somado a isso, realizou-se um trabalho de campo, por meio de benchmarking, a fim de observar e estabelecer comparação nas perspectivas estratégicas e estrutura organizacional entre Bio-Manguinhos/Fiocruz, maior Ippis da América Latina, e um empresa farmacêutica global líder de mercado, patentes e investimento em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) com impacto direto no mercado brasileiro, haja vista o número de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) e submissões de produtos à Conitec.

Tal escolha para análise comparativa objetiva promover elementos que dialoguem entre as estratégias e os desafios de uma agenda nacional com vistas à viabilização de acesso por meio da produção local, considerando as especificidades do SUS, tendo as Ippis com papel ímpar de agente de mudança e capilarização de conhecimento dentro do SUS e do Ceis.

A pesquisa foi devidamente apreciada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), conforme parecer de número 4.230.033.

Avaliação de Tecnologias em Saúde

A ATS surgiu no contexto internacional, configurando-se como um importante instrumento no auxílio à tomada de decisão de todo o ecossistema da saúde, assim como no sistema judiciário1313 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Ciência e Tecnologia. Avaliação de Tecnologias em Saúde: institucionalização das ações no Ministério da Saúde. Rev Saúde Pública. 2006 [acesso em 2022 fev 12]; 40(4):743-747. Disponível em: https://www.scie-lo.br/j/rsp/a/H6x5qtwjYhGKPQcGPyL4Fgr/?lang=pt&format=pdf.
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.Originária dos sistemas nacionais de saúde e da dinâmica das tecnologias sanitárias, a ATS é uma disciplina aplicada pautada metodologicamente na epidemiologia e, conceitualmente, na Medicina Baseada em Evidências (MBE)1414 Guimarães R. Technological incorporation in the Unified Health System (SUS): the problem and ensuing challenges. Ciênc. saúde coletiva. 2014; 19(12):4899-4908..

A abrangência e o aumento da intensidade do avanço das tecnologias aplicadas à saúde, a partir do século XX, estão condicionados às mudanças do perfil epidemiológico e aos desafios observados na gestão pública e à articulação entre os setores responsáveis pela produção, incorporação e utilização das tecnologias nos sistemas de saúde1313 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Ciência e Tecnologia. Avaliação de Tecnologias em Saúde: institucionalização das ações no Ministério da Saúde. Rev Saúde Pública. 2006 [acesso em 2022 fev 12]; 40(4):743-747. Disponível em: https://www.scie-lo.br/j/rsp/a/H6x5qtwjYhGKPQcGPyL4Fgr/?lang=pt&format=pdf.
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. Dessa forma, a ATS como ferramenta metodológica e de gestão ganhou força devido à sua característica multidisciplinar, colaborando para equidade e acesso aos serviços de saúde, eficiência na alocação de recursos, efetividade e qualidade dos serviços e sustentabilidade financeira do sistema de saúde.

Sistematizada como fator estratégico em países com sistema universal de saúde, como o Reino Unido, no âmbito da administração pública, representou significativa transformação na forma de governança e formulação das políticas de gestão, por meio da coordenação de atividades técnicas com vista a mitigar as interferências das vicissitudes políticas1515 Novaes HMD, Soárez PC. Health technology assessment (HTA) organizations: dimensions of the institutional and political framework. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(supl2):e00022315.. No Brasil, a institucionalização a PNGTS, em 2009, e a criação da Conitec, em 2011, marcaram a institucionalização e o caminho de amadurecimento do conhecimento em ATS. Contudo, ainda, com baixa participação das instituições estratégicas no Ceis no fluxo de incorporação tecnológica no SUS, assim como uso por elas dos produtos da Conitec, requerendo um olhar mais amplo nas avaliações realizadas por essas instituições1616 Brasil. Ministério da Saúde, Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Balanço Conitec: 2012-2014. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. [acesso em 2022 fev 11]. Disponível em: http://conitec.gov.br/images/Artigos_Publicacoes/BalancoCONITEC.pdfAgência.
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Benchmarking: análise comparativa

O modelo de mercado célere e competitivo da indústria farmacêutica exige das empresas do setor largos investimentos com concentração nas multinacionais. Dado esse cenário, o enfoque do benchmarking e análise comparativa realizados, considerando as especificidades dos modelos jurídicos, concentrou-se nas informações sobre a organização interna e como oportunizam conhecimentos inerentes ao fluxo de incorporação e ATS, objetivo este considerado sensível e estratégico pela empresa consultada. Resguardado o sigilo, as respostas concedidas possibilitaram traçar paralelos estratégicos e organizacionais e as relações com os respectivos sistemas de saúde e agências de ATS. A indústria selecionada para pesquisa é uma das maiores empresas farmacêuticas de pesquisa e líderes de patentes no mundo (quadro 1). Essa companhia multinacional possui divisão de imunobiológicos que a posiciona entre as maiores pesquisadoras e fabricantes de vacinas do mundo. Globalmente, em 2019, essa indústria investiu £ 4.6 bilhões em P&D, com 6 estudos em andamento, sendo 3 em mieloma múltiplo, 2 de câncer de cabeça e pescoço e 1 de câncer de pulmão, envolvendo 59 centros de pesquisa e 144 participantes.

Quadro 1
Ranking dos principais grupos econômicos do setor farmacêutico (R$)

Possui escritórios em mais de 115 países, além de centros de pesquisa importantes no Reino Unido, nos Estados Unidos da América, na Espanha, na Bélgica e na China; bem como uma rede de produção extensiva, em cerca de 70 locais em todo o mundo. Está presente no Brasil há mais de 100 anos, envolvendo-se em grandes projetos com o governo brasileiro por meio de parcerias com instituições estratégicas de Estado e do Ceis (Fiocruz desde 1985 e de Bio-Manguinhos desde 1998).

Comparativamente, no aspecto dimensão, Bio-Manguinhos conta com o Complexo Tecnológico de Vacinas (CTV), um dos maiores centros de produção da América Latina, instalado no campus da Fiocruz em Manguinhos e com previsão de expansão com a unidade de Pesquisa, Desenvolvimento e Produção Industrial, em Eusébio/CE, e o Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (Cibs), em Santa Cruz/RJ (terreno de 580 mil metros quadrados). Sua abrangência mundial possui atuação destacada no cenário internacional pela exportação do excedente de sua produção para mais de 70 países em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef ). Ainda, desde 2001, atua no fornecimento da vacina contra a febre amarela como Instituto pré-qualificado na Organização Mundial da Saúde (OMS) e, desde 2008, na distribuição da vacina meningocócica AC para agências das Nações Unidas. Apesar de sua abrangência, os esforços realizados em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) somam o investimento de 3,2% da receita total do Instituto entre 2015 e 2019, conforme figura 1, sendo ainda insuficientes para atender às inúmeras demandas da sociedade1818 Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos. Relatório de Atividades 2019. Rio de Janeiro: Bio-Manguinhos; 2020..

Figura 1
Evolução de investimento em P&D de Bio-Manguinhos

No aspecto governamental, a empresa pesquisada possui relação consolidada com o sistema de saúde onde está sediada, por meio de projetos conjuntos sustentados pela crença de que a forte relação com seu governo estreita laços para melhor compreensão do sistema de saúde, proporcionando melhor qualidade de longevidade em seu país. Segundo eles, tais esforços são extensíveis ao Brasil para a promoção de eficiência tecnológica e redução de custos no SUS por meio de parcerias com o governo brasileiro. Tais parcerias são revisadas periodicamente por um Comitê Diretivo de forma a manter alinhamento com o escopo original e alertas em eventuais necessidades.

Tratando-se de Bio-Manguinhos, sua relação com o SUS é expressa em sua missão e seus valores, contribuindo para a melhoria dos padrões da saúde pública brasileira por meio de inovação, desenvolvimento tecnológico, produção de imunobiológicos e prestação de serviços para atender prioritariamente às demandas de saúde do País, conforme observado em seu portfólio (figura 2) e PDP (quadro 2). Para acompanhamento dessas parcerias, Bio-Manguinhos conta com instâncias de decisão e áreas para acompanhamento da evolução das parcerias, como a Coordenação de Transferência Tecnológica (Cotec) – embora, ainda, em fase de consolidação de papéis e processos institucionais –, a área de Gestão de Projetos (Gepro) e a Assessoria Planejamento e Organização (Asspo), responsável pelo acompanhamento estratégico e orçamentário.

Figura 2
Portfólio de Bio-Manguinhos

Quadro 2
PDP vigentes

No eixo relativo à estrutura organizacional, voltado à prospecção, incluindo o cenário brasileiro com submissão à Conitec, a pesquisa coletou na empresa multinacional estudada a existência da uma área de Farmacoeconomia responsável pela condução das propostas de ATS posicionada dentro do departamento médico. As discussões relativas a esse tema acontecem de forma conjunta com os departamentos de acesso, voltado às incorporações tecnológicas em sistemas de saúde e à área de relações governamentais e marketing. Como resultado dessa estrutura, observa-se a expansão no mercado brasileiro, a exemplo de sua atuação na área de onco-hematologia com portfólio formado por 15 opções terapêuticas em desenvolvimento clínico, além do investimento em diversas frentes, incluindo imuno-oncologia, epigenética, letalidade sintética e terapia gênica. Iniciativa essa alicerçada no vasto mercado brasileiro cujo avanço da incidência de câncer em países emergentes possui a perspectiva de aumento em até 78%, alcançando aproximadamente 998 mil novos casos por ano no País até 20402121 Associação Nacional de Hospitais Privados. OMS divulga projeção de câncer mundial até 2040, dados não eram atualizados há 6 anos. São Paulo: ANAHAP; 2018. [acesso em 2022 fev 12]. Disponível em: https://www.anahp.com.br/noticias/noticias-do-mercado/oms-divulga-projecao-de-cancer-mundial-ate-2040-dados-nao-eram-atualizados-ha-6-anos/.
https://www.anahp.com.br/noticias/notici...
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Sua estrutura, diretamente ligada à P&D, considera grupos menores, mais ágeis e com maior poder de decisão na busca por compostos de uma determinada doença, possibilitando um ambiente para criação de moléculas ou biofármacos que se tornarão novos medicamentos no futuro.

Aqui, acentuam-se as diferenças entre as duas instituições no que tange à consolidação institucional no uso das metodologias em ATS como ferramenta a suportar prospecções e diretrizes estratégicas para investimento em P&D. Bio-Manguinhos possui em sua estrutura formal o Núcleo de Análises Econômicas e Financeiras (Nafe), inserido no Departamento Administrativo (Depad), responsável por Estudos de Viabilidade Econômica (EVE) para novos produtos; e a Divisão de Novos Negócios (Dinne), no Departamento de Relações com o Mercado (Derem), responsável pela captação e avaliação de oportunidades de parcerias e transferências de tecnologia.

Soma-se a essa estrutura a atividade de prospecção, ainda em amadurecimento, com atuação recente no caso de sucesso para seleção e pactuação do contrato de encomenda de tecnologia assinado com a empresa AstraZeneca para a produção da vacina Covid-19, e a atividade utilizando a MBE inserida na assessoria clínica. Ainda que as atividades estejam estabelecidas, observa-se baixa coordenação entre os fluxos organizacionais com reflexo na estrutura formal, impossibilitando que o Instituto usufrua estrategicamente dos conhecimentos e dos benefícios das metodologias de ATS, a exemplo da empresa farmacêutica global pesquisada.

Por fim, quanto à relação da empresa com a agência de ATS do País, a empresa consultada afirma fazer uso dos produtos/estudos publicados pela agência em seu planejamento estratégico e atua como consultora participante do fluxo nacional de avaliações e incorporações tecnológicas. Afirmam, ainda, reconhecer a existência cada vez maior da conexão entre as principais agências reguladoras mundiais, a exemplo do National Institute for Clinical Excellence (NICE), balizadora mundial das diretrizes de ATS.

Neste ponto, pontua-se, novamente, relevante diferença entre as duas organizações da indústria farmacêutica. Na apresentação de seus processos, Bio-Manguinhos demonstra uso incipiente dos estudos publicados pela Conitec e atuação recente no fluxo institucional de avaliação e incorporação tecnológica na Comissão Nacional, por intermédio, até o presente momento, do envolvimento na consulta pública e submissão para ampliação de uso dos produtos Rituximabe e Betainterferona. Sua atuação no fluxo nacional de avaliações e incorporações tecnológicas é como produtor responsável pelo abastecimento do SUS a partir da divulgação da lista de produtos estratégicos publicitada pela Conitec.

Para melhor visualização, contidos no quadro 3, foram resumidos os aspectos gerais dos eixos da análise comparativa entre a empresa farmacêutica global e a Ippis observadas.

Quadro 3
Análise comparativa entre uma empresa farmacêutica global e uma Ippis

Conclusões

O emprego dos conhecimentos em ATS nos modelos de gestão subsidiando estratégias torna cada vez mais evidente o descolamento entre os países líderes tecnológicos e os periféricos. O papel estratégico da inovação ganha destaque como cerne das políticas industriais contemporâneas e fator endógeno da dinâmica econômica no modo de produção capitalista. Tais políticas criam ações e abrem espaços em prol à sustentabilidade e efetividade do SUS, assim como a consolidação do Ceis.

A formalização e a instrumentalização do conhecimento metodológico da ATS visam à promoção do aprendizado, do crescimento e da interlocução com as instâncias inerentes ao fluxo de incorporação e ATS, que traduzir-se-á em independência e construção de novas redes de conhecimento e atuação. Portanto, o convite para a discussão do tema é de grande relevância para o Ceis e suas instituições estratégicas, vislumbrando a inovação.

Inegavelmente, a criação da Conitec constitui um amadurecimento da institucionalização da ATS no sistema de saúde brasileiro, representando um aspecto central no complexo processo de tomada de decisão que rege o financiamento e o acesso a produtos farmacêuticos no SUS.

No entanto, a falta de política e de clareza no modelo de atuação das Ippis no fluxo de incorporação e ATS, a vulnerabilidade industrial e tecnológica nacional, com predominância dos grandes conglomerados econômicos, baixo investimento em P&D e necessidade de melhor qualificação e uso adequado das metodologias de ATS, apresentam impacto direto na estratégia de atuação das instituições que compõem o Ceis. Tais impactos estão relacionados com monitoramento do ambiente externo tecnológico, político-governamental, capacidade instalada, aprendizagem orientada à inovação e estrutura colaborativa, que são importantes fatores de coordenação que podem levar ao sucesso de inovações sustentáveis.

Utilizada como Ippis de comparação, Bio-Manguinhos, apesar de muitos avanços, ainda busca consolidação de uma melhor estrutura organizacional e modelo institucional que propicie alavancar a incorporação e o desenvolvimento tecnológico, bem como disseminação dos conhecimentos em ATS, vinculando-o à produção para ampliação do acesso universal. Enquanto líderes de mercado, a exemplo do benchmarking realizado, possui modelo de gestão ágil e flexível condizente com as necessidades impostas pela inovação, notório foco em P&D e um maduro conhecimento e atuação em ATS, como ferramenta de gestão, oportunizando o preenchimento de lacunas tecnológicas em outros países, como em sua atuação no Brasil.

A institucionalização da visão de incorporação assentada nas metodologias de ATS com vistas ao atendimento à estratégia de Estado para o SUS é observada nesta pesquisa como claro diferencial. Utilizada como ferramenta de gestão, propicia amplitude de conhecimento implicando a internalização de uma concepção não restritiva a fazer novos produtos, mas na promoção de estímulo a parceiros a apresentar caminhos tecnológicos mais vantajosos para o País e para o Ceis, com o relevante papel das Ippis, em atendimento às necessidades sociais, redução da vulnerabilidade do SUS e garantia da sustentabilidade estrutural do acesso universal à saúde.

  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
  • Suporte financeiro: este artigo contou com apoio financeiro dos projetos Fiocruz/Fiotec ‘Desafios para o Sistema Único de Saúde no contexto nacional e global de transformações sociais, econômicas e tecnológicas – CEIS 4.0’ e ‘Ciência, Tecnologia e Inovação em saúde para a sustentabilidade do SuS’

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2022
  • Aceito
    19 Abr 2023
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