Os "daltônicos" e suas dificuldades: condição negligenciada no Brasil?

Colorblind individuals and their difficulties: a neglected condition in Brazil?

Débora Gusmão Melo José Eduardo Vitorino Galon Bruno José Barcellos Fontanella Sobre os autores

Resumos

O termo "discromatopsia congênita" ("daltonismo") designa os defeitos de visão cromática, cuja taxa de prevalência entre homens é de 6% a 10%. Este estudo investigou as percepções de discromatópsicos quanto ao diagnóstico, suas dificuldades e mecanismos de enfrentamento do problema. Foi realizada pesquisa com metodologia clínica-qualitativa, na qual participaram 13 homens universitários, compondo uma amostra intencional, fechada por saturação teórica. Os dados foram coletados por meio de entrevistas individuais semiestruturadas. Os relatos foram gravados, transcritos e compuseram um corpus investigado pela técnica de análise de conteúdo categorial temática. Os participantes relataram dificuldades objetivas e subjetivas com materiais didáticos, práticas de ensino, interações com colegas e professores, já a partir do início da socialização secundária. Posteriormente, foram referidas, sobretudo, dificuldades relacionadas à decodificação de sinais de trânsito. Os participantes desenvolveram algumas habilidades de enfrentamento dessas dificuldades, mas aguardam ações a serem desencadeadas pelos poderes públicos, dirigidas ao atendimento das suas necessidades sociais, educacionais e trabalhistas.

transtornos da visão; visão de cores; defeitos da visão cromática; pesquisa qualitativa


The term congenital dyschromatopsia (colorblindness) refers to color vision genetic deficiency, whose prevalence rate is 6 to 10% among men. This study investigated the perceptions of subjects with congenital dyschromatopsia regarding diagnosis, their difficulties and coping mechanisms of the condition. This research was carried out using a clinical-qualitative methodology, in which 13 male university students took part, consisting of a purposeful sample concluded by theoretical saturation. Data were collected by conducting semi-structured individual interviews. Reports were recorded, transcribed and a corpus was made investigated by the technique of thematic categorical content. Participants reported objective and subjective difficulties with didactic material, teaching practice, interactions with colleagues and teachers, already from the beginning of their secondary socialization. Subsequently, difficulties in decoding traffic lights were mainly reported. Participants developed some coping skills to face these challenges, but await actions to be initiated by the Brazilian government to meet their social, education and labor needs.

vision disorders; color vision; color vision defects; qualitative research


Introdução

"Discromatopsia" é um termo usado para designar qualquer tipo de defeito de visão de cores. A expressão "daltonismo" é popularmente usada como sinônimo de discromatopsia, em referência ao químico John Dalton, 1766-1844, que tinha protanopia (um tipo de discromatopsia) e foi o primeiro cientista a estudar o assunto (BRUNI; CRUZ, 2006BRUNI, L. F.; CRUZ, A. A. V. Sentido cromático: tipos de defeitos e testes de avaliação clínica. Arq. Bras. Oftalmol., São Paulo, v. 69, n. 5, p. 766-775, 2006.).

As discromatopsias podem ser congênitas, resultado de alterações genéticas, ou decorrentes de doenças sistêmicas ou oculares (BRUNI; CRUZ, 2006BRUNI, L. F.; CRUZ, A. A. V. Sentido cromático: tipos de defeitos e testes de avaliação clínica. Arq. Bras. Oftalmol., São Paulo, v. 69, n. 5, p. 766-775, 2006.). Na população geral, estima-se que as discromatopsias congênitas acometem 6% a 10% dos homens e 0,4% a 0,7% das mulheres (GORDON, 1998GORDON, N. Colour blindness. Public Health, v. 112, n. 2, p. 81-84, 1998.).

Sobre a visão de cores

A visão de cores é um fenômeno complexo, que envolve células fotossensíveis especiais, os cones. Na retina humana, existem aproximadamente cinco milhões de cones e cada um contém um tipo específico de fotopsina: vermelha, verde ou azul. A fotopsina é a proteína responsável por converter o sinal luminoso em sinal elétrico, que é conduzido pelo nervo óptico até o córtex cerebral, onde a visão cromática é interpretada. Cada fotopsina é sensível à luz com um comprimento de onda distinto. Em humanos, o mecanismo de visão de cores é fundamentalmente tricromático, pois as diferentes proporções de estimulação dos três tipos específicos de cones explicam todas as outras cores (GORDON, 1998GORDON, N. Colour blindness. Public Health, v. 112, n. 2, p. 81-84, 1998.; BRUNI; CRUZ, 2006BRUNI, L. F.; CRUZ, A. A. V. Sentido cromático: tipos de defeitos e testes de avaliação clínica. Arq. Bras. Oftalmol., São Paulo, v. 69, n. 5, p. 766-775, 2006.).

O material genético responsável pela codificação das fotopsinas pertence a uma superfamília de genes que inclui também os genes das proteínas receptoras do odor e do paladar (JACOBS, 2009JACOBS, G.H. Evolution of colour vision in mammals. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci, v. 364, n. 1531, p. 2957-2967, 2009.). No locus 7q32.1 encontra-se o gene da fotopsina do cone azul; os genes dos fotopigmentos dos cones vermelho e verde encontram-se no locus Xq28 (NEITZ; NEITZ, 2000NEITZ, M.; NEITZ, J. Molecular genetics of color vision and color vision defects. Arch Ophthalmol, v. 118, n. 5, p. 619-700, 2000.; DEEB, 2004DEEB, S. S. Molecular genetics of colour vision deficiencies. Clin Exp Optom. v. 87, n. 4-5, p. 224-229, 2004.; 2005______. The molecular basis of variation in human color vision. Clin Genet, v. 67, n. 5, p. 369-377, 2005.).

Os defeitos congênitos da visão cromática são resultado de alterações nos genes codificadores das fotopsinas e são divididos em: tricromatismo anômalo (quando uma das três fotopsinas tem seu espectro de absorção de luz deslocado para outro comprimento de onda), dicromatismo (quando há ausência de um dos tipos de fotopsinas) e monocromatismo (condição muito rara caracterizada pela presença de apenas uma das fotopsinas, normalmente a azul). Nas situações de tricomatismo anômalo, o defeito de visão cromática costuma ser menos intenso (DEEB, 2004DEEB, S. S. Molecular genetics of colour vision deficiencies. Clin Exp Optom. v. 87, n. 4-5, p. 224-229, 2004.; 2005______. The molecular basis of variation in human color vision. Clin Genet, v. 67, n. 5, p. 369-377, 2005.; COLE, 2007COLE, B. L. Assessment of inherited colour vision defects in clinical practice. Clin Exp Optom, v. 90, n. 3, p. 157-175, 2007.).

Ao se nomearem as discromatopsias, por convenção, são usados prefixos gregos para primeiro, segundo e terceiro - "protos", "deuteros" e "tritos" - para determinar as cores vermelha, verde e azul, respectivamente (BRUNI; CRUZ, 2006). Assim, o tricomatismo anômalo pode ser do tipo protanomalia, deuteranomalia ou tritanomalia; e o dicromatismo pode ser do tipo protanopia, deuteranopia ou tritanopia. As situações de defeito do eixo vermelho-verde são as mais frequentes, e estima-se que 5% dos homens sejam deuteranômalos. Defeitos envolvendo os cones azuis são raros, com prevalência de cerca de 1:13.000 (COLE, 2007COLE, B. L. Assessment of inherited colour vision defects in clinical practice. Clin Exp Optom, v. 90, n. 3, p. 157-175, 2007.).

Algumas questões sociais e educacionais associadas à discromatopsia

A cor é parte fundamental dos planos comunicacionais. A significação da cor pode abranger aspectos denotativos e conotativos. No sentido denotativo, é comum usar a cor como referência direta na qualificação de objetos (por exemplo, "o carro vermelho", "a camisa verde", etc.). Os significados conotativos referem-se às associações sugeridas pela cor (por exemplo, num sinal de trânsito a cor verde informa que o cruzamento está livre para passagem). Situações nas quais a cor é usada com sentido conotativo incluem, além dos sinais de trânsito, as legendas de mapas, a identificação de fios elétricos, o reconhecimento do grau de maturação de frutas ou cozimento de alimentos (COLE, 2007COLE, B. L. Assessment of inherited colour vision defects in clinical practice. Clin Exp Optom, v. 90, n. 3, p. 157-175, 2007.). Dada importância da cor como elemento de comunicação, é esperado que defeitos da visão cromática acarretem implicações socioculturais, especificamente relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem escolar e à habilitação para dirigir veículos.

Segundo Piaget, a partir dos sete anos, durante o estágio de operações concretas, a criança descobre as relações de cor e cor-objeto, que passam então a ser explicitadas nos seus desenhos. Antes disso, o uso de cores nos desenhos infantis depende do interesse emocional e não guarda relação com a realidade (PIAGET, 2010PIAGET, J. A formação do símbolo na criança - Imitação, Jogo e Sonho Imagem e Representação. Rio de Janeiro: LTC, 2010.). Apesar da importância das cores nos processos de ensino-aprendizagem, não há qualquer evidência de associação entre nível educacional e discromatopsia, tendo um grande estudo britânico de coorte chegado a essa conclusão (CUMBERLAND et al., 2004CUMBERLAND, P.; RAHI, J. S.; PECKHAM, C. S. Impact of congenital colour vision deficiency on education and unintentional injuries: findings from the 1958 British birth cohort. British Medical Journal, v. 329, n. 7474, p. 1074-1075, 2004.). Tal estudo refutou hipótese levantada em estudo anterior, do tipo caso-controle, que havia comparado a prevalência de discromatopsia entre estudantes com deficiência intelectual e estudantes sem comprometimentos cognitivos (ESPINDA, 1973ESPINDA, S. D. Color vision deficiency: a learning disability? Journal of Learning Disabilities, v. 6, n. 3, p. 163-166, 1973.).

A literatura atual diverge quanto a recomendar ou não a condução de veículos por discromatópsicos. Alguns estudos afirmam que indivíduos com defeitos de visão cromática não provocam mais acidentes de trânsito (ZEHNDER, 1971ZEHNDER, E. Performance of drivers with impaired color sense in traffic. Schweiz Med Wochenschr, v. 101, n. 15, p. 530-537, 1971.; CUMBERLAND et al., 2004CUMBERLAND, P.; RAHI, J. S.; PECKHAM, C. S. Impact of congenital colour vision deficiency on education and unintentional injuries: findings from the 1958 British birth cohort. British Medical Journal, v. 329, n. 7474, p. 1074-1075, 2004.), outros afirmam exatamente o contrário (STEWARD; COLE, 1989STEWARD, J.M.; COLE, B.L. What do color vision defectives say about everyday tasks? Optom Vis Sci, v. 66, n. 5, p. 288-295, 1989.; WHILLANS; ALLEN, 1992WHILLANS, M.G.; ALLEN, M.J. Color defective drivers and safety. Optom Vis Sci, v. 69, n. 6, p. 463-466, 1992.). Em estudo brasileiro feito com 29 indivíduos, todas as pessoas com discromatopsias congênitas graves (dicromatismo) e metade das que apresentavam problemas moderados (tricomatismo anômalo) cometeram erros no teste da caixa de cores, sugerindo dificuldades na condução veicular e maior chance de envolvimento em acidentes, principalmente nos cruzamentos (SATO et al., 2002SATO, M.T. et al. Discromatopsias congênitas e condução de veículos. Arq. Bras. Oftalmol. v. 65, n. 1, p. 53-58, 2002.).

A despeito da prevalência da discromatopsia, não existe no Brasil qualquer tipo de política pública de saúde ou de educação que aborde o tema. O objetivo deste estudo foi conhecer as percepções de indivíduos com discromatopsia congênita quanto ao diagnóstico que receberam, suas dificuldades pessoais e também quanto aos mecanismos de enfrentamento de que lançam mão para lidar com essa condição. Desse modo, esperamos dar subsídios iniciais para ações a serem desencadeadas pelo Estado brasileiro dirigidas ao atendimento das necessidades sociais, educacionais e trabalhistas dos indivíduos com discromatopsia.

Metodologia

Trata-se de pesquisa clínico-qualitativa, cuja produção de dados foi realizada entre setembro de 2009 e maio de 2010. A população do estudo, definida por conveniência, foi de universitários com discromatopsia congênita. O número amostral foi fechado pela técnica da saturação teórica (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008FONTANELLA, B.J.B.; RICAS, J.; TURATO, E.R. Amostragens por saturação em pesquisas qualitativas: contribuições teóricas. Cad Saúde Pública, v. 24, n. 1, p. 17-27, 2008.; FONTANELLA et al., 2011FONTANELLA, B.J.B et al. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saúde Pública, v. 27, n. 2, p. 388-394, 2011.), totalizando 13 participantes com idades entre 18 e 32 anos, recrutados por meio de cartazes afixados na universidade, que convidavam indivíduos com "daltonismo" a participarem do estudo. Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSCar (parecer nº 259/2009). Todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Dos voluntários que se apresentaram, foram inicialmente obtidas informações sociodemográficas gerais. Em seguida, para identificação objetiva da discromatopsia, eles foram avaliados com auxílio do teste de Ishihara. Esse teste é composto por pranchas com números e linhas traçadas como objetos a serem identificados, e está disponível em versões com 14, 24 e 38 pranchas. Cada prancha tem sensibilidade de 85 a 95%, e o exame completo, com no mínimo 14 pranchas, tem sensibilidade próxima a 100% (DAIN, 2004DAIN, S. J. Clinical colour vision tests. Clin Exp Optom, v.87, n. 4-5, p. 276-293, 2004.; FERNANDES; URBANO, 2008FERNANDES, L.C.; URBANO, L.C.V. Eficiência dos testes cromáticos de comparação na discromatopsia hereditária: relato de casos. Arq. Bras. Oftalmol, v. 71, n. 4, p. 585-588, 2008.). Na versão com 24 pranchas, usada neste estudo, as quinze primeiras pranchas permitem identificar o defeito da visão cromática, enquanto as nove últimas são utilizadas para distinguir os defeitos do eixo vermelho-verde entre si e diferenciá-los da cegueira total de cores. Foram incluídos nessa pesquisa indivíduos que falharam na identificação de pelo menos 6 das 15 pranchas iniciais, confirmando a presença de discromatopsia congênita, ainda que não tenha sido possível caracterizar inteiramente os quadros oftalmológicos de todos os participantes, já que o teste de Ishihara não possui pranchas para mensuração de gravidade (BRUNI; CRUZ, 2006BRUNI, L. F.; CRUZ, A. A. V. Sentido cromático: tipos de defeitos e testes de avaliação clínica. Arq. Bras. Oftalmol., São Paulo, v. 69, n. 5, p. 766-775, 2006.).

A coleta de dados se fez por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas por um dos autores, graduando em Medicina e com idade próxima à dos entrevistados, capacitado previamente para essa função. Três pré-categorias consideradas importantes para a área da Saúde Coletiva foram formuladas e propostas aos participantes, com adaptação do léxico ao universo conceitual dos entrevistados: "diagnóstico", "dificuldades encontradas" e "enfrentamento de dificuldades". O modo aberto de propor o temário aos participantes, sem limite de tempo para respostas e comentários, supostamente permitiu um aprofundamento na expressão de seus significados pessoais. O áudio das entrevistas foi gravado e reproduzido em arquivos digitais, aos quais tiveram acesso os três autores. Além disso, foram feitas transcrições integrais dos diálogos, compondo o corpus. Os suportes auditivo e escrito dos dados registrados propiciaram a imersão dos pesquisadores nesse material empírico e nos possíveis significados ali contidos.

Para análise das entrevistas, utilizaram-se integralmente todas as etapas da técnica de análise de conteúdo categorial temática, tal como proposta por Bardin em 1977 (BARDIN, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.). Operacionalmente, foram realizadas as etapas de pré-análise do conteúdo das entrevistas transcritas, exploração do material, tratamento dos resultados, inferências e interpretação. Desse modo, depois do material organizado, lido e relido, codificaram-se os dados, desmembrando e reagrupando sistematicamente as informações contidas nas unidades de registro, ou seja, nos parágrafos que continham as reflexões dos entrevistados sobre cada categoria pré-estabelecida, permitindo uma delimitação dos conteúdos considerados relevantes dessas informações. Tais conteúdos foram agrupados, por analogia, em temas, observando o critério de classificação semântica, classificando e agregando os elementos presentes nos depoimentos de acordo com seus significados. As entrevistas foram analisadas e codificadas, de forma independente e individual pelos três pesquisadores. A seguir, os aspectos convergentes e divergentes dessas análises individuais foram discutidos, desenvolvendo-se progressivamente a categorização temática final apresentada nos resultados. Por fim, os temas foram examinados e discutidos com subsídio da literatura e da experiência clínica dos autores, que procuraram empreender uma abordagem compreensiva e interpretativa dos dados.

Resultados

O quadro 1 apresenta uma caracterização geral dos participantes do estudo. Os cursos universitários frequentados pelos entrevistados foram classificados nas grandes áreas de conhecimento consideradas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Quadro 1.
Idade, área de conhecimento e tipo de discromatopsia de cada entrevistado

No quadro 2, visualiza-se a distribuição dos diferentes temas nas 13 entrevistas, em relação às pré-categorias "diagnóstico", "dificuldades encontradas" e "enfretamento das dificuldades", respectivamente. No total, foram apreendidos 23 temas, agrupados nessas três pré-categorias. Na última linha do quadro 2, é possível observar que os novos tipos de temas se concentraram nas primeiras cinco entrevistas. Isso ocorreu apesar da sondagem progressivamente mais qualificada por parte do entrevistador, ao longo das 13 entrevistas.

Quadro 2.
Temas relacionados às três pré-categorias investigadas entre

Essa dinâmica de tratamento e análise dos dados levou à interrupção da captação de novos participantes: constatou-se, com certa objetividade, uma saturação teórica dos dados, pois, ao mesmo tempo em que consideramos dispor de elementos suficientes para atingir os objetivos propostos, verificamos também que não mais surgiam novos tipos de tema, em número significativo que justificasse a continuidade da coleta de dados (GLASER; STRAUSS, 1967GLASER, B.G.; STRAUSS, A.L. The Discovery of grounded theory: strategies for qualitative research. New York: Aldine de Gruyter; 1967.; FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008FONTANELLA, B.J.B.; RICAS, J.; TURATO, E.R. Amostragens por saturação em pesquisas qualitativas: contribuições teóricas. Cad Saúde Pública, v. 24, n. 1, p. 17-27, 2008.; FONTANELLA et al., 2011FONTANELLA, B.J.B et al. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saúde Pública, v. 27, n. 2, p. 388-394, 2011.).

Pré-categoria "diagnóstico"

Os núcleos de sentido identificados em relação à pré-categoria "diagnóstico" foram organizados em nove temas. O quadro 3 fornece exemplos de frases que os contextualizam.

Quadro 3.
Exemplos de frases que contextualizam os temas relacionados à précategoria "diagnóstico".

A discromatopsia de nove dos entrevistados foi inicialmente identificada no ambiente escolar, nos ensinos fundamental ou médio. Em apenas um caso o defeito da visão de cores foi percebido no ambiente familiar, no período pré-escolar; o entrevistado relata que os pais suspeitaram em função de dificuldades no uso da cor de forma referencial direta (entrevistado 3, quadro 3). Observa-se que o fato da discromatopsia ser herdada e já existirem outras pessoas com a característica na família (normalmente avós maternos) não garantiu identificação mais precoce, como se poderia imaginar.

Dez participantes obtiveram um diagnóstico "informal", ou seja, realizaram testes na escola com professores, em casa com os pais, ou pela internet com amigos, mas nunca tiveram seu defeito de visão cromática caracterizado por um profissional de saúde. Um desses dez participantes fazia acompanhamento regular com médico oftalmologista por problema de refração, já se queixou da discromatopsia e ainda assim não foi submetido a uma avaliação específica mais aprofundada. Alguns participantes consideraram que foi importante o estabelecimento do diagnóstico para o entendimento das suas dificuldades e uma melhor adaptação, inclusive na escola.

Pré-categoria "dificuldades encontradas"

A pré-categoria "dificuldades encontradas" abrangeu nove temas, reconhecidos a partir de enunciados como os exemplificados no quadro 4.

Quadro 4.
Exemplos de frases que contextualizam os temas relacionados à précategoria "dificuldades encontradas".

Os relatos de dificuldades na escola foram comuns e dividiram-se em três tipos: dificuldades com material didático ou com práticas de ensino, dificuldades de relacionamento com colegas e dificuldades com professores. Em relação ao material e às práticas educacionais, foram citados problemas para colorir na época da alfabetização e durante as aulas de Educação Artística no ensino fundamental, dificuldades na identificação de mapas e legendas habitualmente presentes em livros de Geografia, e dificuldades com práticas de laboratório de Química. Relatou-se a sensação de constrangimento por ser alvo de brincadeiras e deboche de colegas, assim como a percepção de despreparo de professores para manejar a situação.

Em alguns casos, as dificuldades no processo ensino-aprendizagem persistiram na Universidade. Um dos entrevistados relatou dificuldades em laboratórios de Química, principalmente para desenvolver experimentos que envolviam titulação com mudança de cor da substância. Outros dois relataram problemas no reconhecimento de ligações elétricas identificadas com fios coloridos. Além disso, alguns entrevistados relataram incômodos e vergonha diante de colegas que demonstram curiosidade excessiva.

Fora do ambiente escolar, as dificuldades mais relatadas foram relacionadas à decodificação de sinais de trânsito e à distinção de semáforos e luzes de pedágio. Um dos entrevistados descreveu uma situação de risco pela qual passou (entrevistado 10, quadro 4). Apesar de terem apontado dificuldades no exame médico do Departamento de Trânsito, todos os participantes que tentaram conseguiram habilitação para dirigir veículos. Um deles, porém, não dirige à noite; dois não são capazes de identificar a sinalização semafórica quando a luz solar incide diretamente sobre sinal; quatro disseram usar apenas a posição das luzes para interpretar o semáforo.

Dez entrevistados consideraram que existem profissões que não podem ser exercidas por pessoas com discromatopsias, em função das dificuldades. Foram citadas como proibitivas, em suas opiniões, as ocupações de piloto de avião e algumas funções exercidas por engenheiros, nas quais o reconhecimento das cores vermelha e verde pode ser importante por questões de segurança. Dois entrevistados omitiram seus problemas de visão de cores durante seleção de emprego. Um deles se candidatava a vaga numa gráfica e achou que, ao saberem do defeito, poderia ser preterido. O outro, identificado em um teste de triagem em concurso público, "treinou" para responder os nomes das cores na ordem que julgava que seriam perguntadas em um segundo teste.

Pré-categoria "enfrentamento de dificuldades"

Com relação à pré-categoria "enfrentamento de dificuldades", foram apreendidos cinco temas, contextualizados por meio das citações apresentadas no quadro 5:

Quadro 5.
Exemplos de frases que contextualizam os temas relacionados à pré- 1243 categoria "enfrentamento de dificuldades".

A maior parte dos participantes conta ou contou com ajuda de familiares e amigos nas tarefas cotidianas relacionadas, por exemplo, às questões estéticas de vestuário. Houve relatos de se ter recorrido a colegas para ajuda em trabalhos escolares que envolviam o reconhecimento de cores. Um dos entrevistados relatou dificuldades para usar o site de matrícula da Universidade, no qual são atribuídas cores distintas às disciplinas de acordo com o período da grade curricular. Apesar disso, prevaleceu a ideia de que, sendo a discromatopsia um "defeito menor", ela não interferiu ou modificou as suas vidas.

Houve menções ao desenvolvimento de habilidades de enfrentamento (coping skills, conceito da psicologia cognitiva) para lidar com cores de forma autônoma nos ambientes profissional ou escolar. Três participantes trabalhavam com aplicativos de edição imagem usando a cor a partir da escala hexadecimal pelo sistema RGB (sistema cor-luz ou sistema aditivo red-green-blue).

Conversar sobre o tema com outras pessoas com discromatopsia apareceu como um recurso para enfrentamento das dificuldades. Alguns participantes referiram trocar experiências com amigos e parentes que também têm o problema e participar de fóruns de discussão sobre o assunto em redes sociais pela Internet.

Defendeu-se frequentemente a importância de mudanças e adaptações na sociedade para favorecer pessoas com defeito de visão cromática. Indicaram, por exemplo, ser necessário alterar os sinais de trânsito, incluindo sinais sonoros para pedestres; modificar formulários oficiais que contêm vias de páginas com cores diferentes; adequar livros didáticos, especialmente os de Geografia.

Discussão

Sobre a produção discursiva dos participantes

Os participantes discorreram aparentemente à vontade sobre as três categorias aqui abordadas. Todos apresentaram fácil expressividade verbal, com digressões explicativas sobre suas experiências e ideias, o suficiente para sustentar entrevistas que consideramos em profundidade. Deve ter colaborado para isso o alto nível de escolaridade dos sujeitos e uma sensação de suficiente familiaridade com o assunto, de modo a considerarem dispor de elementos ideativos para organizarem suas falas.

Acreditamos também que o fato do entrevistador ser um estudante universitário com perfil social semelhante ao dos participantes contribuiu para que as entrevistas tenham se dado, de modo geral, em um clima de camaradagem, o que teria aberto espaço para um diálogo permeado por relatos de experiências pessoais.

O diagnóstico e as dificuldades no contexto escolar

Sendo a cor habitualmente usada como identificador de instrumentos na educação infantil, reconhecer um lápis de uma cor específica numa caixa com muitas unidades de formatos idênticos pode ser uma tarefa impraticável para pessoas com defeitos de visão cromática. De fato, no nosso estudo, as situações de diagnóstico entre os 6 e 11 anos frequentemente estiveram associadas a dificuldades para colorir e pintar durante a alfabetização. Os entrevistados relataram esses mesmos problemas entre os 12 e 18 anos em disciplinas como Geografia, Educação Artística e Química. Três participantes, a despeito de perceberem dificuldades para lidar com a cor desde a infância, reconheceram-se como indivíduos com discromatopsia somente após os 18 anos.

Apenas as formas mais graves da anomalia costumam ser identificadas precocemente. Estudo realizado na Austrália com 103 indivíduos mostrou que 8% das pessoas com tricomatismo anômalo e 49% dos dicromatas foram identificados na escola primária. Já 28% dos indivíduos com tricomatismo anômalo e 22% dos dicromatas foram reconhecidos durante o ensino secundário (STEWARD; COLE, 1989STEWARD, J.M.; COLE, B.L. What do color vision defectives say about everyday tasks? Optom Vis Sci, v. 66, n. 5, p. 288-295, 1989.).

Lidar com a discromatopsia no dia a dia do ambiente escolar alterou as relações interpessoais de alguns entrevistados, tendo havido relatos de penalização por professores durante as avaliações e mesmo acusações de indolência por terem-se esquivado de tarefas escolares que envolviam pintura em público. Uma possível falta de preparo dos professores para suspeitar da possibilidade de um aluno ter um defeito de visão cromática gerou situações vexatórias, tendo contribuído para um sentimento de falha do sistema escolar. Embora a discromatopsia não pareça comprometer o grau de escolaridade alcançado pelos acometidos, obtivemos relatos de desconforto, vergonha e ansiedade no ambiente escolar, sentimentos aparentemente comuns entre pessoas com discromatopsia (COLE, 2004______. The handicap of abnormal colour vision. Clin Exp Optom, v. 87, n. 4-5, p. 258-275, 2004.).

São cogitadas algumas iniciativas para contribuir com a prevenção desses sentimentos penosos entre os discromatópsicos. Por exemplo, a Sociedade Britânica de Pediatria recomenda que todas as crianças sejam triadas para presença de distúrbio de visão cromática, por meio do teste de Ishihara aos 11-12 anos, antes disso a investigação deve ser conduzida apenas nas crianças que manifestem dificuldades para usar a cor (POLNAY, 1995POLNAY, L. Health Needs of School Age Children. London: British Paediatric Association, 1995.). Como as discromatopsias congênitas não são progressivas e não têm tratamento, a validade desse tipo de rastreio tem sido questionada (CUMBERLAND et al., 2004CUMBERLAND, P.; RAHI, J. S.; PECKHAM, C. S. Impact of congenital colour vision deficiency on education and unintentional injuries: findings from the 1958 British birth cohort. British Medical Journal, v. 329, n. 7474, p. 1074-1075, 2004.; CUMBERLAND et al., 2005______. Impact of congenital colour vision defects on occupation. Arch Dis Child, v. 90, n. 9, p. 906-908, 2005.). Embora talvez fosse útil para a prevenção de desconfortos subjetivos como os presentes nos relatos que obtivemos, uma revisão sistemática que incluiu 61 estudos sobre o assunto concluiu que não há evidências suficientes para recomendar a triagem populacional antes que sejam realizados estudos de custo-efetividade, randomizados e controlados (NEW ZEALAND HEALTH TECHNOLOGY, 1998NEW ZEALAND HEALTH TECHNOLOGY ASSESSMENT. Colour vision screening: a critical appraisal of the literature. 1998. Disponível em: <http://nzhta.chmeds.ac.nz/publications/nzhta7.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2014.
http://nzhta.chmeds.ac.nz/publications/n...
). De qualquer forma, os professores devem estar preparados para identificar crianças suspeitas de portarem discromatopsia e encaminhá-las para uma avaliação adequada. A detecção do defeito de visão cromático pode orientar as práticas de ensino e levar a uma adaptação das técnicas pedagógicas (LEWIS et al., 1990LEWIS, B. A.; REITZAMMER, A. F.; AMOS, J. F. Color vision defects: what teachers should know. Reading Improvement, v. 27, n. 1, p. 31-33, 1990.; GORDON, 1998GORDON, N. Colour blindness. Public Health, v. 112, n. 2, p. 81-84, 1998.; LOGAN; GILMARTIN, 2004LOGAN, N.S.; GILMARTIN, B. School vision screening, ages 5-16 years: the evidence-base for content, provision and efficacy. Ophthalmic Physiol Opt, v. 24, n. 6, p. 481-492, 2004.).

Outras dificuldades e suas repercussões

Os participantes frequentemente mencionaram problemas relacionados à decodificação de sinais de trânsito e à distinção de semáforos e luzes de pedágio. O direito das pessoas com discromatopsia à obtenção da carteira de habilitação é objeto de controvérsia nos Tribunais de Justiça Estaduais no Brasil. Nos casos de indivíduos com discromatopsia que foram reprovados no exame para obtenção ou renovação da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e recorreram à Justiça, existe jurisprudência tanto favorável quanto contrária ao direito de conduzir veículos. Até recentemente, a Resolução nº 267, de 2008, do Conselho Nacional de Trânsito (BRASIL, 2008______. Conselho Nacional de Trânsito. Resolução nº 267, de 15 de fevereiro de 2008. Dispõe sobre o exame de aptidão física e mental, a avaliação psicológica e o credenciamento das entidades públicas e privadas de que tratam o art. 147, I e §§ 1º a 4º e o art. 148 do Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: <http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/RESOLUCAO_CONTRAN_267.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2014.
http://www.denatran.gov.br/download/Reso...
), obrigava os candidatos à CNH a identificarem as cores verde, vermelha e amarela, mas não explicitava a que tipo de teste eles deveriam ser submetidos para avaliação. Entendeu-se que havia nessa resolução um desconcerto normativo, inclusive porque a utilização do sinal amarelo no trânsito é facultativa, existindo opções de semáforos que desprezam essa coloração (BORN, 2002BORN, R. C. O direito assegurado dos daltônicos à obtenção da carteira de habilitação. Jus Navigand, v. 7, n. 55, 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2757>. Acesso em: 12 mar. 2014.
http://jus.com.br/revista/texto/2757...
). Em novembro de 2012, a Resolução nº 425 (BRASIL, 2012a______. Conselho Nacional de Trânsito. Resolução nº 425, de 27 de novembro de 2012a. Dispõe sobre o exame de aptidão física e mental, a avaliação psicológica e o credenciamento das entidades públicas e privadas de que tratam o art. 147, I e §§ 1º a 4º e o art. 148 do Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: <http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/%28Resolu%C3%A7%C3%A3o%20425.-1%29.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2014.
http://www.denatran.gov.br/download/Reso...
) revogou a Resolução nº 267, determinando que candidatos à direção de veículos devem ser capazes de reconhecer as luzes semafóricas em posição padronizada, prevista no Código de Trânsito Brasileiro de 1997 (BRASIL, 1997______. Conselho Nacional de Trânsito. Resolução nº 267, de 15 de fevereiro de 2008. Dispõe sobre o exame de aptidão física e mental, a avaliação psicológica e o credenciamento das entidades públicas e privadas de que tratam o art. 147, I e §§ 1º a 4º e o art. 148 do Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: <http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/RESOLUCAO_CONTRAN_267.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2014.
http://www.denatran.gov.br/download/Reso...
). A dificuldade das pessoas com discromatopsia com os sinais de trânsito é especificamente abordada no Projeto de Lei 9/2013 (BRASIL, 2013______. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, nº 9 de 2013. Altera o Anexo II da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, para dispor sobre o formato da sinalização semafórica. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=110499>. Acesso em: 12 mar. 2014.
http://www.senado.gov.br/atividade/mater...
), que atualmente tramita no Senado brasileiro. Esse projeto pretende modificar o Código de Trânsito Brasileiro (BRASIL, 1997______. Conselho Nacional de Trânsito. Resolução nº 267, de 15 de fevereiro de 2008. Dispõe sobre o exame de aptidão física e mental, a avaliação psicológica e o credenciamento das entidades públicas e privadas de que tratam o art. 147, I e §§ 1º a 4º e o art. 148 do Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: <http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/RESOLUCAO_CONTRAN_267.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2014.
http://www.denatran.gov.br/download/Reso...
), incluindo o sistema de símbolos geométricos nos sinais de trânsito.

Indivíduos com discromatopsia também podem ter dificuldades para aprovação em concursos públicos, quando há teste de identificação de daltonismo como parte do exame médico. Nesse sentido, é pitoresca a comercialização do "Kit antidaltonismo para passar em concurso público". Facilmente encontrado em páginas de busca na internet, o kit é composto por um CD com as pranchas pictóricas usadas no teste de Ishihara e um método que anuncia "ensinar" indivíduos com discromatopsia a identificar as figuras em até 3 segundos, sem precisar decorar a sequência de pranchas usada comumente nos exames de triagem.

Nas situações de reprovação em concursos públicos, existe jurisprudência dando ganho de causa ao candidato e, inclusive, obrigando a indenização por nomeação tardia, desde que a pessoa comprove plena capacidade visual para o exercício do cargo. Recente acórdão expedido pelo Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa, por unanimidade de votos, a um indivíduo com discromatopsia parcial, reprovado em concurso para agente penitenciário, que comprovou ser apto para o exercício das atribuições (BRASIL, 2012b______. Superior Tribunal Federal. Ação Cautelar 2940 MG. Relator: Min. Ayres Britto, Data de Julgamento: 27/03/2012b, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-150 DIVULG 31-07-2012 PUBLIC 01-08-2012. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22085222/questao-de-ordem-na-medida-cautelar-na-acao-cautelar-ac-2940-mg-stf>. Acesso em: 12 mar. 2014.
http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudenc...
).

Em 2009, um tribunal de justiça brasileiro expediu mandado de segurança sobre a situação de um indivíduo com discromatopsia que se inscreveu em concurso público concorrendo às vagas destinadas aos portadores de necessidades especiais e logrou aprovação em todas as fases da seleção, tendo sido impedido de tomar posse por não ter sido considerado portador de necessidades especiais. Na ocasião, o tribunal considerou que, embora a discromatopsia constituísse uma limitação visual, não ocasionava consideráveis dificuldades de integração social que justificassem a compensação com ações afirmativas (BRASIL, 2009).

Em 2011, decisão de um tribunal de justiça baiano obrigou uma empresa de ensino a adaptar o material didático oferecido em curso de educação complementar, tornando possível a apreensão das informações por parte de um aluno com discromatopsia. A decisão foi fundamentada na Constituição Federal de 1988 e na Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, tendo sido considerado que a empresa estava promovendo a exclusão social de pessoas portadoras de deficiência sensorial (VIEIRA, 2011VIEIRA, T.O.C. Cerca de 15 milhões de brasileiros, são acometidos pelo daltonismo em menor ou maior grau [entrevista]. Jornal Direitos, out.-nov., 2011. Disponível em: <http://www.jornaldireitos.com/ver_jornal_cad2.php?edi=11-10-2>. Acesso em: 12 mar. 2014.
http://www.jornaldireitos.com/ver_jornal...
). Essa parecer ter sido a primeira vez, no Brasil, que um indivíduo com discromatopsia é oficialmente tratado como "deficiente", o que vai ao encontro do que foi expresso por cinco dos participantes da presente pesquisa, que se consideraram portadores de um tipo de deficiência. Em algumas falas, a discromatopsia foi comparada a outros defeitos sensoriais (cegueira e surdez) e físicos, embora com relativização da gravidade, sendo a alteração na visão de cores descrita como menos limitadora e menos suscetível ao preconceito.

Independentemente de terem considerado ou não a discromatopsia uma deficiência, pelo menos sete participantes defenderam a necessidade de adaptações que favorecessem as pessoas com distúrbio de visão de cores. Por terem considerado a discromatopsia rara na população geral, alguns justificaram a ausência de regulamentação sobre o assunto. Como de fato não é rara, parece-nos que a percepção da discromatopsia como um problema comum e prevalente legitima a reivindicação por mudanças, entendidas como medidas de inclusão e avanço social.

Limitações do estudo

Dentre as limitações do presente estudo, observamos que os defeitos de visão cromática dos participantes não foram quantificados. Assim, não pudemos correlacionar a gravidade da discromatopsia e os resultados. Além disso, a amostra do estudo é muito homogênea; a inclusão de mulheres, bem como indivíduos de outras faixas etárias e diferentes graus de escolaridade, provavelmente resultaria em discursos mais dessemelhantes.

Consideramos também que o processo de saturação ocorreu, como é usual nas pesquisas qualitativas, dentro das limitações da técnica de coleta de dados empregada (entrevistas individuais), das possibilidades de interação cognitiva e cultural entre entrevistador e participantes, e dos limites interpretativos dos autores. Outras técnicas de coleta, entrevistadores e analistas provavelmente levariam a resultados diferentes quanto ao número, forma de designar e de interpretar os temas agrupados nas pré-categorias. No entanto, o atributo de confiabilidade dos instrumentos qualitativos não é o primacial nesse tipo de método, mas sim o atributo da validade. De todo modo, procuramos reforçar a confiabilidade do trabalho empreendido ao zelar por sua transparência, fazendo constar explicações e demonstrações das técnicas e procedimentos realizados, permitindo aos leitores avaliar a razoabilidade de todo o processo investigativo.

Considerações finais

Esta pesquisa procurou dar voz a uma parcela da população com importantes (embora sutis) dificuldades de adaptação ao cotidiano escolar e de trabalho, em função de suas variações peculiares de percepção de cores. Foi mencionada pelos entrevistados uma gama de dificuldades objetivas e subjetivas desde os primeiros anos de suas socializações secundárias, na escola e com os amigos. Embora as pessoas com discromatopsia desenvolvam espontaneamente mecanismos de enfrentamento dessas dificuldades, várias iniciativas parecem caber ao poder público.

A discromatopsia é uma condição prevalente, em relação à qual ainda não existe qualquer tipo de política pública de saúde ou educação no Brasil. O defeito pode ter implicações diretas no processo de ensino-apredizagem em todos os níveis educacionais, como se depreendeu dos dados coletados. Portanto, espera-se que os professores do ensino fundamental, sobretudo, estejam capacitados para identificar prováveis alunos com defeito de visão cromática e promover adequação de medidas pedagógicas e de orientação em saúde escolar. Espera-se igualmente que os sistemas públicos de saúde e educação se organizem e estabeleçam diretrizes sobre como lidar com a condição.

Embora o entendimento sobre as facetas trabalhistas do assunto ainda não esteja pacificado pelos Tribunais Superiores brasileiros, há perspectivas positivas em algumas áreas. Por exemplo, o Projeto de Lei 9/2013 poderá ser aprovado e sancionado brevemente, prevendo-se o prazo de dois anos para a adequação da totalidade dos semáforos. Essa poderá ser uma primeira medida legal para benefício direto das pessoas com discromatopsia. No entanto, ainda são esperadas outras frentes, tais como a adequação dos livros didáticos aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático do Ministério da Educação.11 D.G. Melo e B.J.B. Fontanella conceberam o projeto de pesquisa, orientaram a coleta de dados, trabalharam na interpretação dos resultados, na redação e na revisão final do artigo. J.E.V. Galon elaborou o projeto de pesquisa, coletou os dados, contribuiu com a interpretação dos resultados, com a redação e a revisão final do artigo.

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    D.G. Melo e B.J.B. Fontanella conceberam o projeto de pesquisa, orientaram a coleta de dados, trabalharam na interpretação dos resultados, na redação e na revisão final do artigo. J.E.V. Galon elaborou o projeto de pesquisa, coletou os dados, contribuiu com a interpretação dos resultados, com a redação e a revisão final do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2014
  • Aceito
    28 Set 2014
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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